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JOÃO RASTEIRO
A dança das mães

Na beleza incurável das feridas
alimentam-se mães sem trégua.
Nos rios secos, batem e batem os corações
alimentados em sangue frio e espesso.
Que é lívido. Que procura as raízes.
O coração é um bicho estranho, que vai
caminhando gota a gota. E as feridas incautas
aproximam-se das mães, imprudentes ao peso
de cada sopro. O amor eternamente feroz.
E as feridas das mães, são cada vez mais belas.
O medo caminha violentamente mais perto,
no corpo, na cara, nas vértebras e no ventre
onde se abriga com seu volúvel volume,
o silencioso amor de mãe.
Sob a folhagem da água, mães cansadas
da aridez que as toca, incendeiam-se através
dos filhos. E os filhos, esse chumbo cravado
nas asas, esse projecto que sobre o mar se estende,
alimenta as feridas pelos tendões.
As mães debicam sobre a areia a sua rota clara,
até ao fim do mundo. Como pela última vez.
Sobre a montanha, um filho incorpora-se na beleza
incurável das feridas, enquanto mães tacteiam
a pedra, até ser flor.
Por vezes sangram e cantam, secam os olhos,
arrancam os sexos e em permanente luta, corpo
a corpo, o amor estende-se, mas os gestos
são frios, neste caminhar obsceno
de pessoas sem frutos. Há-de caber numa gota,
 todo o tempo, todo o amor, de uma vida sem história.

João Rasteiro

 
. Segnalazione di Merito, del Premio Internazionale de Poesia "Publio Virgilio Marone" - Itália 2003

. In: No Centro do Arco, Palimage, pg. 41/2, Viseu, 2003