SONETOS - GLAUCO MATTOSO

I - DUAS ALUSÕES PORTUGUESAS:

SONETO 142 ÉPICO (1999)

Lusíadas, Ilíadas, são lidas
por sílabas, por notas, pelo ouvido.
Livradas dos limites, seu sentido
transcende a narração de heróicas lidas.

Não lido com aquilo que tu lidas,
embora tantos livros tendo lido.
Em vez de mero Homero, tenho sido
a reencarnação de nulas vidas.

De heróico já me basta o metro antigo
que tu me deste em sonho, como forma,
e, assim, comprometido estou contigo.

Soneto, oitava, nona, nada é norma.
Mas a mediocridade do que digo
em saga da cegueira se transforma.

SONETO 326 PATERNAL (1999)

Por que Deus nunca é mãe? Por ser severo?
O homem necessita autoridade.
Só ama a quem receia, essa é a verdade.
Por isso amava um Pai, temia um clero.

Não é o rigor paterno que venero,
mas sim a sapiência duma idade
que já conhece Cristo, Buda e Sade,
Homero e Judas, Sócrates e Nero.

Camões na poesia sirvo e amo,
"mas não servia ao pai, servia a ela",
pois sou filho bastardo desse ramo.

Em meio a numerosa parentela,
me sinto até caçula quando chamo
Bocage de titio, mana a Florbela.

II - DUAS ALUSÕES BRASILEIRAS:

SONETO 240 BARROCONCRETO (1999)

Silvícolas cultivam terra aguada.
Ar puro, mar azul, fartura quente.
O verde acolhe os olhos e, silente,
desdobra-se na sílaba molhada.

A mata a vaga alaga, e lá se nada.
Na grota sobra a luz sobrevivente.
Da guerra brota a cruz da nossa gente.
Brasil, assim a missa sela e brada.

Semeia o grão, a prole, até a colheita.
Rebanhos cria, acorda proletário.
Saqueia, pilha e dorme. Come e deita.

Nascente, o afluente, o tributário.
O rio poluído, a paz suspeita.
O traço de Brasília, agreste aquário.

SONETO 500 VICIOSO (2002)

Poema lembra amor, que lembra carta,
que lembra longe, e longe lembra mar,
que lembra sal, e sal lembra dosar,
que lembra mão, e mão alguém que parta.

Partir lembra fatia e mesa farta;
fartura lembra sobra, e sobra dar;
dar lembra Deus, e Deus lembra adiar,
que lembra carnaval, que lembra quarta.

A quarta lembra três, que lembra fé;
fé lembra renascer, que lembra gema,
a gema lembra bolo, e este o café.

Café lembra Brasil, que lembra um lema:
progresso lembra andar, que lembra pé,
e pé recorda alguém que faz poema.

III - DUAS ALUSÕES PRÉ-HISTÓRICAS:

SONETO 303 TERRESTRE (1999)

Estranha essa mania de quem mata
a fome deglutindo terra crua!
Não há predileção que a substitua
nem prévia providência que a combata.

Chamou-se geofagia essa insensata
tendência primitiva, que recua
ao tempo das cavernas, quando a lua
pedia ao lobisomem serenata.

Não chego a ser geófago, nem morro
de amores pelo gosto da poeira.
Também não fico uivando sobre o morro.

Apenas me sujeito, na cegueira,
a ser mais maltratado que cachorro,
lambendo o pó dos pés da terra inteira.

SONETO 670 LASCADO [a Arnaldo Antunes] (2003)

Em vez do brontossauro que já aturo,
é dum tiranossauro que ora corro!
Já tive um mastodonte por cachorro,
mas nem com meu mamute estou seguro!

Só pode ser castigo! Neste obscuro
inferno pré-histórico percorro
meu trágico caminho, sob o jorro
de intensos temporais, passando apuro!

Do céu o pterodáctilo me ataca!
Na terra o megatério me ameaça!
Um antropopiteco sofre paca!

Nem deixam que um poema em pedra eu faça!
Vou ter que usar a pena como faca,
salvando, entre os poetas, minha raça!


GLAUCO MATTOSO é um dos mais prolíficos sonetistas da língua portuguesa e, talvez, um recordista em seu país: compôs mais de seiscentos sonetos, nos quais a erudição se mistura à vulgaridade e a tradição sincroniza-se à pós-modernidade. Nascido na cidade de São Paulo em 1951, participou da resistência intelectual à ditadura militar entre os anos 70 e 80, quando representou o "underground" brasileiro com sua poesia simultaneamente concretista e escatológica. Portador de glaucoma congênito (moléstia da qual tirou o nome literário), perdeu gradativamente a visão nos anos 90 e atualmente dedica-se à revitalização do soneto como gênero capaz de incorporar transformações lingüísticas, políticas e comportamentais, inclusive sua revolta pessoal contra males físicos e sociais. Sua franca expressão das paixões desumanas (entre as quais o sadomasoquismo) valeu-lhe o qualificativo de "poeta da crueldade". Seu endereço na rede virtual é:

http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso