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DANIEL FILIPE
Pátria lugar de exílio

Neste ano de 1962

não como Hazim Hikmet no avião de pedra

mas na minha cidade

livre de ir onde quiser

e no entanto prisioneiro

neste ano de 1962

exatamente

em Lisboa

Avenida de Roma número noventa e três

às três horas da tarde

 

Neste ano de 1962

encostado a uma esquina da estação do Rossio

esperando talvez a carta que não chega

um amor adolescente

meu Paris tão distante

minha África inútil

aqui mesmo

aqui de mãos nos bolsos e o coração cheio de amargura

cumprindo os pequenos ritos quotidianos

cigarro após o almoço

café com pouco açúcar

má-língua e literatura

 

Aqui mesmo a mão sei quantos graus de latitude

e de enjôo crescente

solitário e agreste

invisível aos olhos dos que amo

ignorado por ti pequeno empregado de escritório preocupado

com um erro de contas

incapaz de dizer toda a minha ternura

operária de fábrica com três filhos famintos

 

Aqui mesmo envolto na placidez burguesa

higienicamente limpo e com os papéis em ordem

vestido de nylon dralon leacril

com acabamentos sanitized

e lugar marcado junto ao aparelho de TV

eu

enjoado de tudo e contemporizando com tudo

eu

peça oleada do mecanismo de trituração

eu

incapaz de suicídio descerrando um sorriso-gelosia

eu

apesar de tudo vivo apesar de tudo inquieto

eu

neste ano de 1962

exatamente

não ontem mas precisamente às três horas da tarde

pela hora oficial

exilado na pátria

(fragmento)