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JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
Fernando Botto Semedo
«Primavera de cinza» - Uma leitura
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O mais recente livro de Fernando Botto Semedo («Primavera de cinza») vem provar que, tal como desde sempre, a Poesia não hesita em chamar todas as coisas pelos seus nomes e continua a ser um grito contra as sombras, o esquecimento e a morte. Perante um mundo triste porque dominado pelo ódio, pela mentira e pela injustiça, o poeta canta, teimosamente: «Por entre tudo a minha alma renasce / em todos os instantes onde consigo / reencontrar Deus a esta luz / tão silenciosa e íntima.»

Mas para cantar neste mundo é preciso evitar o ódio: «Não consintas que o ódio te consuma. / Ele impedir-te-á sempre a visão resplandecente / das cidades da alma do inefável / e o rosto branco das crianças / quando elas passam como um bênção pelas alamedas / queimadas pelo Outono e são um Natal eterno / sementeira infinita da infância do real.»

Mas para cantar neste mundo é preciso ser como os pássaros: «Os pássaros cantam sem razão numa alegria infinita / de estarem vivos na sua simplicidade e pobreza / e tudo estremece como um coração gigantesco que / em ternura irradia o sangue verde do mistério / da existência, o sangue verde que sinto circular / em mim, árvore humana que arde, verde eterno / na minha efémera festa continuada.»

O poeta coloca-se no mundo entre duas direcções: de um lado os que nunca amaram; do outro as crianças e os amantes. As cores do mundo desaparecem «com origem em homens doentes cuja ocupação é destruir» por isso o poeta procura outro mundo, embora dentro deste mundo: «Sob o sol do esquecimento correm todas as crianças / e todos os amantes, libertos da doença da matéria / e correm pelas searas infinitas de trigo azul».

A voz do poeta está entre o passado («Julguei sempre que o passado não tinha cores») e o futuro : «O sol secreto desta tarde é um coração pleno / de uma Primavera onde todos os sentimentos / são o puro branco da alma dos poemas intactos / que o Deus das crianças, dos órfãos, dos atormentados / concretiza numa desmedida esperança». A voz do poeta está entre a morte e a vida. A morte é a cinza: «Tudo passou. Este poema é cinza de nada. / Jamais retornará esta luz / e o sol é já gelo. / É isto que os mortos desejam que nós saibamos». A vida é o oposto da cinza: «Olho o dia e vejo as árvores baloiçando / ao vento e as crianças brincam / e a sua alegria é um incêndio de Esperança e de Devir / e os amantes passam no pólen da aragem.»

A infância está presente em memória. Seja em Alvega («Paredes velhas a abrir rachas e com o estuque a desfazer-se pela mão do tempo») seja em Alcobaça: «Os casulos dos bichos-da-seda vão para o forno do fogão. / Eu, que vos alimentei e amei, sou agora vosso carrasco.»

Como todo o poeta moderno, Fernando Botto Semedo, reflecte por escrito e por extenso sobre a sua arte poética. Seja para recordar os seus poemas manuscritos que destruiu e «cantam cantigas de amigo e sonetos de Antero» seja para lembrar a sua esferográfica («Tudo tem uma alma. Assim as esferográficas. / Há bocado finou-se uma, que era a que me escrevia os poemas.») seja ainda para se situar (irónico) a si mesmo na Literatura Portuguesa: «Agradeço a Deus a sua existência e a sua fraternidade na minha solidão / de poeta menor de finais de século.»

Mas a poesia deste autor perante o mundo não é apenas frágil, fugaz e fraca. Tem ao mesmo tempo uma força que derrota o esquecimento desse mesmo mundo. Afirma o poeta: «Estas palavras e esta tinta não poderão ser apagadas, porque existe uma oculta memória de amor, que as resguardará para sempre»

José do Carmo Francisco