LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO SÉTIMO
 
Canto VII

1
JÁ se viam chegados junto à terra
Que desejada já de tantos fora,
Que entre as correntes Índicas se encerra
E o Ganges, que no Céu terreno mora.
Ora sus, gente forte, que na guerra
Quereis levar a palma vencedora:
Já sois chegados, já tendes diante
A terra de riquezas abundante!
2
A vós, ó geração de Luso, digo,
Que tão pequena parte sois no mundo,
Não digo inda no mundo, mas no amigo
Curral de Quem governa o Céu rotundo;
Vós, a quem não sòmente algum perigo
Estorva conquistar o povo imundo,
Mas nem cobiça ou pouca obediência
Da Madre que nos Céus está em essência;

3
Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,
Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós, que, à custa de vossas várias mortes,
A lei da vida eterna dilatais:
Assi do Céu deitadas são as sortes
Que vós, por muito poucos que sejais,
Muito façais na santa Cristandade.
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!

4
Vede'los Alemães, soberbo gado,
Que por tão largos campos se apacenta;
Do sucessor de Pedro rebelado,
Novo pastor e nova seita inventa;
Vede'lo em feias guerras ocupado,
Que inda co cego error se não contenta,
Não contra o superbíssimo Otomano,
Mas por sair do jugo soberano.

5
Vede'lo duro Inglês, que se nomeia
Rei da velha e santíssima Cidade,
Que o torpe Ismaelita senhoreia
(Quem viu honra tão longe da verdade?),
Entre as Boreais neves se recreia,
Nova maneira faz de Cristandade:
Pera os de Cristo tem a espada nua,
Não por tomar a terra que era sua.

6
Guarda-lhe, por entanto, um falso Rei
A cidade Hierosólima terreste,
Enquanto ele não guarda a santa Lei
Da cidade Hierosólima celeste.
Pois de ti, Galo indino, que direi?
Que o nome «Cristianíssimo» quiseste,
Não pera defendê-lo nem guardá-lo,
Mas pera ser contra ele e derribá-lo!

7
Achas que tens direito em senhorios
De Cristãos, sendo o teu tão largo e tanto,
E não contra o Cinífio e Nilo rios,
Inimigos do antigo nome santo?
Ali se hão-de provar da espada os fios
Em quem quer reprovar da Igreja o canto.
De Carlos, de Luís, o nome e a terra
Herdaste, e as causas não da justa guerra?

8
Pois que direi daqueles que em delícias,
Que o vil ócio no mundo traz consigo,
Gastam as vidas, logram as divícias,
Esquecidos do seu valor antigo?
Nascem da tirania inimicícias,
Que o povo forte tem, de si inimigo.
Contigo, Itália, falo, já sumersa
Em vícios mil, e de ti mesma adversa.

9
Ó míseros Cristãos, pola ventura
Sois os dentes, de Cadmo desparzidos,
Que uns aos outros se dão à morte dura,
Sendo todos de um ventre produzidos?
Não vedes a divina Sepultura
Possuída de Cães, que, sempre unidos,
Vos vêm tomar a vossa antiga terra,
Fazendo-se famosos pela guerra?

10
Vedes que têm por uso e por decreto,
Do qual são tão inteiros observantes,
Ajuntarem o exército inquieto
Contra os povos que são de Cristo amantes;
Entre vós nunca deixa a fera Aleto
De samear cizânias repugnantes.
Olhai se estais seguros de perigos,
Que eles, e vós, sois vossos inimigos.