LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO QUARTO
 

33
«Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos antigos
Que contra vossas pátrias com profano
Coração vos fizestes inimigos:
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns tredores houve algũas vezes.

34
«Rompem-se aqui dos nossos os primeiros,
Tantos dos inimigos a eles vão!
Está ali Nuno, qual pelos outeiros
De Ceita está o fortíssimo lião
Que cercado se vê dos cavaleiros
Que os campos vão correr de Tutuão:
Perseguem-no com as lanças, e ele, iroso,
Torvado um pouco está, mas não medroso;

35
«Com torva vista os vê, mas a natura
Ferina e a ira não lhe compadecem
Que as costas dê, mas antes na espessura
Das lanças se arremessa, que recrecem.
Tal está o cavaleiro, que a verdura
Tinge co sangue alheio; ali perecem
Alguns dos seus, que o ânimo valente
Perde a virtude contra tanta gente.

36
«Sentiu Joane a afronta que passava
Nuno, que, como sábio capitão,
Tudo corria e via e a todos dava,
Com presença e palavras, coração.
Qual parida lioa, fera e brava,
Que os filhos, que no ninho sós estão,
Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara,
O pastor de Massília lhos furtara,

37
«Corre raivoso e freme e com bramidos
Os montes Sete Irmãos atroa e abala:
Tal Joane, com outros escolhidos
Dos seus, correndo acode à primeira ala:
– «Ó fortes companheiros, ó subidos
Cavaleiros, a quem nenhum se iguala,
Defendei vossas terras, que a esperança
Da liberdade está na nossa lança!

38
«Vedes-me aqui, Rei vosso e companheiro,
Que entre as lanças e setas e os arneses
Dos inimigos corro e vou primeiro;
Pelejai, verdadeiros Portugueses!»
Isto disse o magnânimo guerreiro
E, sopesando a lança quatro vezes,
Com força tira; e deste único tiro
Muitos lançaram o último suspiro.

39
«Porque eis os seus, acesos novamente
Dũa nobre vergonha e honroso fogo,
Sobre qual mais, com ânimo valente,
Perigos vencerá do Márcio jogo,
Porfiam; tinge o ferro o fogo ardente;
Rompem malhas primeiro e peitos logo.
Assi recebem junto e dão feridas,
Como a quem já não dói perder as vidas.

40
«A muitos mandam ver o Estígio lago,
Em cujo corpo a morte e o ferro entrava.
O Mestre morre ali de Santiago,
Que fortìssimamente pelejava;
Morre também, fazendo grande estrago,
Outro Mestre cruel de Calatrava.
Os Pereiras também, arrenegados,
Morrem, arrenegando o Céu e os Fados.

41
«Muitos também do vulgo vil, sem nome,
Vão, e também dos nobres, ao Profundo,
Onde o trifauce Cão perpétua fome
Tem das almas que passam deste mundo.
E por que mais aqui se amanse e dome
A soberba do imigo furibundo,
A sublime bandeira Castelhana
Foi derribada òs pés da Lusitana.

42
«Aqui a fera batalha se encruece
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;
A multidão da gente que perece
Tem as flores da própria cor mudadas.
Já as costas dão e as vidas; já falece
O furor e sobejam as lançadas;
Já de Castela o Rei desbaratado
Se vê e de seu propósito mudado.

43
«O campo vai deixando ao vencedor,
Contente de lhe não deixar a vida.
Seguem-no os que ficaram, e o temor
Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.
Encobrem no profundo peito a dor
Da morte, da fazenda despendida,
Da mágoa, da desonra e triste nojo
De ver outrem triunfar de seu despojo.