«A MINHA TROPA FORAM OS ROLLING STONES»
DEFESA APAIXONADA DE PAULO BRITO E ABREU: O POETA EM PÉ
Jorge Telles de Menezes
 

A poesia do meu amigo Paulo Brito e Abreu é a poesia de um homem íntegro. Dito de outro modo, ela é a poesia de um poeta levantado. De um Poeta em Pé.

Nesta grotesca «feira de vaidades» do nosso mundo pós-moderno, no qual os «universos interiores» dos poetas estão imersos, como é difícil manter a integridade de carácter, isto é permanecer coerente com a chama prometaica que nas evagatórias ideações da juventude se soltou um dia do coração generoso de um poeta em formação. Ser coerente com a chama prometaica é, para nós poetas, ser coerente com a linguagem, a matéria primordial desta arte. Que beleza existe em ver como o Paulo não «assentou na vida» porque esta tumulteia, efervescente, como sempre é a origem da vida, nas suas veias pletóricas de palavras incorruptas. Quem está vivo não está assentado, poderia ser um lema para qualquer geração nova e rebelde. Mas o que fica, habitualmente, de todas as gerações novas e rebeldes? Uma multidão de seres assentados, que não obstante estarem vivos, reproduzem apaticamente gestos eternamente vulgares (se bem que ainda necessários) de toda a humanidade.

Objecte-se de imediato que sem esses seres assentados, quem ceifaria os cereais, cuidaria dos lares, dos filhos, quem colocaria as máquinas em movimento, quem escreveria os livros da poesia canónica, da poesia catedrática, da poesia-sinónimo-de-cartão-visita-conta-bancária-recheada-de-influências-dolce-vita-e-alma-vazia ? Sim, porque todos somos necessários ao organismo vivo de Gaia, mas o Poeta em Pé, na sua inquietação fundamental, representa o pólo positivo, antitético, desta unidade contraditória e dinâmica que é a sociedade humana. Sem a sua oposição, sem a sua luz juvenil e simultaneamente mais antiga, a sociedade avançaria muito mais lentamente. Porque quanto mais jovens forem as gerações no mundo, tanto mais velhas elas são, na realidade, pois que verdadeiramente jovens foram as gerações que fundaram o mundo, parafraseando aqui, a propósito, a lição da famosa «Querelle des Anciens et des Modernes». Para beber, então, da fonte da eterna juventude, visitemos os clássicos como o faz, sabiamente, o nosso amigo Paulo.

Que vozes fecundas de vida projectam a sua luz sobre o firmamento desta poesia? Que arquitectos construíram as traves e a abóbada destes versos? Desde já, precisemos: falamos de um único livro, que leva por título uma declaração ironicamente moderna: «A Minha Tropa Foram os Rolling Stones». Para sermos cronologicamente mais precisos, diremos, de preferência, que essa declaração é ironicamente pós-moderna. Porque os clássicos de Paulo Brito e Abreu são os grandes modernos - Rimbaud, Baudelaire, Sá-Carneiro, Gomes Leal - mas ele surge depois de essa modernidade, mesmo nas suas vozes herméticas ulteriores, estar inelutavelmente ultrapassada, visto as circunstâncias históricas e subjectivas da sua afirmação se terem já desvanecido com a marcha dos tempos. Ele nasce depois de essa modernidade estar transformada, paradoxalmente, tal como tantos outros «velhos clássicos», numa fonte de juvenilidade.

Isso ocorre assim porque, de facto, o Paulo é já um pós-moderno, um poeta que cresceu numa «aldeia global», em que a arte pop, se não significa ainda «a poesia feita por todos», desse fecundo arauto do Modernismo que foi Isidore Ducasse, é pelo menos a projecção da sua fantasmagoria na realidade da «arte em massa para as massas», citando livremente o profeta pop Andy Wahrol. Os Rolling Stones são uma legenda desta cultura contestatária, decadente, kitsch e democrática que é a arte pop. O seu sombrio céu é alimentado, na fase mais criativa, pelas figuras titânicas de um Shelley ou de um Byron, esses românticos que com o seu exarcebado individualismo afrontam o estabelecido, e inauguram no espaço anglo-saxónico aquele espírito rebelde e vanguardista que é uma característica de toda a modernidade. A mítica chama prometaica da revolta, símbolo do homem em luta pela sua emancipação histórica, e que os clássicos da modernidade revolucionária, como Bakunine, tanto louvaram, é filtrada na cultura pós-moderna, entre outros, pela voz de um James Douglas Morrison, esse dionisíaco visitante do mundo, recordado com profundo afecto num poema deste livro. O artista já não deve sair para as ruas a disparar sobre a multidão - esse pensamento-cúmulo do vanguardismo segundo Dada - mas sim, sentir-se ligado, propriamente re-ligado, a um todo do qual ele é parte íntegra e positiva.

O poeta pretende hoje orar com a multidão; ele acredita nas grandes preces colectivas, ele quer ser uma voz entre uma multidão de vozes, e não mais uma voz de oposição, ou um farol de clarividência, distinguindo-se aqui dos seus elitistas antepassados modernistas e seus corrompidos sucessores. E, contudo, ele exige o direito de exprimir o seu somatismo, a sua carga única de onirismo e esperança, de forma alguma para ser visto, como os individualistas doentiamente exibicionistas desta época de modernismo moribundo, senão para que os outros se revejam na sua escrita e se libertem do seu angustiado e frio museu interior. Existe uma nota apostólica e fraterna nesta poesia: os novos revolucionários são os mais intransigentes defensores da vida e da ilimitada expansão das condições do seu desenvolvimento. Se o poeta se tornou num ser religioso, é porque ele soube religar-se à vida, e também por ser um sondador dos símbolos, os quais, no devir formalmente variado da espécie, se desenvolveram como entidades reflectoras do próprio Ser, em toda a sua universal indecifrabilidade. Historicamente lúcido, ele oporá sempre os valores da Vida ao evidente estertor do apressadamente-feito-homem-robot porque, por definição, diríamos, a Poesia é uma afirmação da abundância de vida, e por conseguinte, uma inquieta e contínua interrogação sobre a humana condição; ela é inconformista não só com o pensamento vulgar sobre o mundo, mas também com o pressuposto do paradigma científico ocidental. Ela postula um conhecimento em que o próprio lógico-matemático seja integrado numa visão ôntico-existencial, como um único aspecto mais do plurifacetamento humano.

Neste livro, o poeta joga com a tradição, insufla visão em velhas maquinarias retóricas, e lubrifica-as com os seus humores violentos. Existe na sua poesia uma violência sabotadora das barragens de ideias-feitas encobertas de farisaica moral e ilusória estética, as quais o nosso Poeta se entretém a implodir para limpar o interior do edifício, do qual, ironica e ecologicamente, mantém intactas a estrutura e a fachada. Ele revisita o soneto, por exemplo, deixando-o formalmente intacto, para cantar a Anarquia, entendida decerto como a suprema forma de organização societária, mas também, e talvez mais veementemente, como um protesto individual contra todos os asfixiadores de vida. Também a cidade de Lisboa, urbe mítica fundada por Cesário Verde - outro dos seus clássicos modernos - surge em contraluz labiríntica, nos seus corredores de loucura, sexocracia e hipócrita normalidade…

No poema «A Rapariga do Deserto ou a Minha Tropa Foram os Rolling Stones» vemos, literalmente vemos, um filme projectado à nossa frente. Sinestesias possíveis nas mentes de uma geração que soube dar um pontapé numa quantidade de «velhices e velharias» que esclerosavam a livre circulação do sangue no corpo de um povo-linguagem. O filme que vemos são as imagens de vários filmes, de «Blow-Up», «Deserto Vermelho», «Easy Rider», «Yellow Submarine», são flashs da consciência internacional(ista) do poeta de hoje. Mais do que internacional, o poeta devém cosmopolita, ouve e propaga com a sua voz, os gritos de paz que saem do coração do Império-USA; as profecias sábias e realistas de Allen Ginsberg ecoam na estética desassombrada do Paulo. Mas todas as setas de paz do poeta atingem um único corpo, para que ele se universalize, e para que ele se cumpra: Portugal. Gostaríamos de ser mais precisos, para que a nossa intenção não seja deturpada pela grosseria das vulgatas ideológicas: Portugal é, aqui, a linguagem como vontade deslimitadora daquilo que se assentou no dizer da língua portuguesa, porque não há só pessoas assentadas, há também dizeres assentados e, sobretudo, um vazio de dizeres que nunca se chegam a levantar da mais grosseira opacidade discursiva. Os seres que os enunciam estão mortos, vazios, corrompidos, des-ligados de si e do mundo, não têm fé, nem razão, vomitam discurso friamente, como frio pode ser o reflexo vazio do ecrã de um computador desligado. E as suas fibras materiais, porque neles o espírito subjugado pela ilusão dos supostos cânones do templo há muito que está morto, somente se aquecem ainda com o tilintar das moedas e a vaidade mediática. O Paulo Brito e Abreu, pelo contrário, está radicalmente vivo, é um poeta em pé, levantado, e em levantamento afronta o mundo, explana o melhor que tem para nos dar: a sua alma incorrupta, indestrutível, de verdadeiro Poeta.

Sendo um herdeiro puro da Grande Tradição Realista, o Paulo é também verdadeiramente romântico, porque a sua cabeça atenta recusa as grandes carreiras fátuas e defuntas que pretendem descobrir, hoje, tão tardiamente, no romantismo de inspiração germânica, um espelho para o estranho frio da sua alma nesta tão solarenga pátria. O Paulo não está nessa bolsa de valores. Ele nem cabeça tem para ser-poeta-condutor-de-automóvel, para ser-poeta-cumpridor-de-serviço-militar, para ser poeta-embaixador, para ser poeta-administrador-bancário, poeta-político, etc. Não. Decididamente, o Paulo é da pura geração do Não. Tem, e terá até ao fim, demasiada vontade esclarecida, demasiada pressa e sinceridade de querer viver. Mas esses tardo-vazio-românticos esquecem-se de que os verdadeiros românticos foram revolucionários no tempo deles, e não comerciantes da alma. Por isso é que esses entes desligados do ser se horrorizam com os verdadeiros românticos de hoje, os autênticos pós-modernos, e não apreciam, ou seja não dão o seu valor àquele que é, naquilo que é, como ele é, e não o aceitam assim no seu ser, como no caso do Paulo, nem me apreciam a mim também, nem a mais alguns, em cuja essência, que repetimos é a linguagem, eles nada vêem porque estão assentados a olhar para o lado do ser, do devir, da poesia, da vida. Eles olham, julgando que vêem o ser, mas o que vêem, em vez da luz da clareira da qual ele imana, é um reflexo narcísico e estéril da sua vaidade. O Paulo vê, sem sequer olhar. E se os vendilhões duvidarem disso, como hão-de fazer, porque o seu inferno é a dúvida que sentem por estarem desligados de si próprios, da história do mundo, da verdade, e apenas sub-vivem em museus-mausoléus angustiados e soterrados com o peso do seu vazio, sugiro que vão ouvir o Paulo cantar em cima de um palco esse nosso hino chamado My Generation. Mas ouçam, se ainda souberem ouvir, o Poeta em Pé, a cantar, porque o canto é essa forma primordial de re-ligação, da qual provém a essência da poesia. Ouçam-no, olhem-no, e talvez o vejam, talvez se revejam, talvez vejam então como rolam, nestes tempos, as verdadeiras pedras rolantes.

Sintra/Wuppertal, 2000

 
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