NUNO JÚDICE
Por João Rasteiro

NUNO JÚDICE nasceu em 1949 (Algarve). Licenciado em Filologia Românica, na Faculdade de letras de Lisboa. É professor da Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou em 1989, com uma tese sobre Literatura Medieval. Passou alguns períodos no estrangeiro: em Berna, na Suiça, na década de 80, e em Paris, onde termina em 2003 uma estadia de seis anos como Conselheiro Cultural e Director do Instituto Camões. Poeta, ficcionista e tradutor, já com uma vasta obra, possuindo uma actividade frenética, publicou antologias, como a da poesia do Futurismo português, edições críticas, ensaios, ficção, estudos sobre teoria da literatura e literatura portuguesa, possuindo ainda uma colaboração regular, de que aliás gosta bastante, apesar de ser um pouco reservado, em antologias, revistas e até jornais, quer seja com poesia, crónicas ou crítica literária. Colaborou igualmente em acções de divulgação cultural, como as “Letras Francesas”(1989), e organizou a “Semana Europeia de Poesia” no âmbito de Lisboa Capital Europeia da Cultura(1994). Foi comissário para a área da “Literatura de Portugal como país – tema da 49ª Feira do livro de Frankfurt”(1997). Dirigiu a importantíssima revista “Tabacaria”, da casa Fernando Pessoa. Tem obra publicada em países diversos, como a Venezuela, Espanha, México, França, Bélgica, Suécia, Dinamarca, Holanda, Bulgária, Israel, República Checa, Inglaterra e Vietname. É um poeta que já recebeu alguns dos mais importantes prémios de poesia portugueses, nomeadamente o “Pen Clube”(1985), “D. Dinis” – Fundação Casa de Mateus(1990), “APE” – Associação Portuguesa de Escritores(1994), Prémio “AnaHatherly” e o Prémio da Crítica(2001) pela sua “Poesia Reunida – 1967/2000”. Recebeu ainda o prémio de poesia “Pablo Neruda” e foi finalista do Prémio Europeu de Literatura, Aristeion.

Como recentemente afirmou Nuno Júdice, no Jornal de Letras (nº 926), numa espécie de pequena Autobiografia: “Seguirei a ordem normal das coisas, entrando nesse corredor da memória que me faz voltar até à casa do Algarve,(…)Em contraste com o estreito horizonte português, uma ida a França em 1965, depois de acabar o quinto ano, para tirar um curso de história da pintura no Louvre, abriu-me o horizonte da poesia francesa, de Verlaine a Jacques Prévert, e também do teatro, graças ao Luís Miguel Cintra, meu companheiro de viagem, que me levou a espectáculos tão diversos como o Huis Clos, do Sartre, o music-hall do Moulin Rouge,(…)no fim do liceu já passava muito do meu tempo a escrever, aproveitando o tédio de algumas aulas para ir fazendo com um colega um jornal manuscrito, chamado Fédon,(…)À entrada na Faculdade de Letras descobri um ambiente plácido e neutro, que em breve iria mudar. A colaboração no “Juvenil” do Diário de Lisboa ligava-me naturalmente à esquerda,(…)As aulas que mais me marcasram foram as do prof. Cintra a quem devo ter-me aconselhado, além de poetas como Sebastião da Gama e Saint-John Perse, um autor ignorado, o Paul Géraldy de Toi et moi, com quem fiquei a saber que põe vezes se aprende m,ais a ler um poeta menor do que um grande poeta, e que me libertou da tutela neo-realista;(…)Mas tinha sempre presente a sombra imensa que então pairava sobre o país, sobretudo depois de voltar de Paris onde respirava o ar livre dessa cidade que adoptei, e que continuo a sentir como a minha segunda pátria. Tentava não separar poesia e vida; e percorria os caminhos que ainda não eram imaginários nem artificiais do poeta que me servia de modelo -Fernando Pessoa,(…)Foi também a poesia que me fez sobreviver a situações como a tropa no Verão Quente de 1975, no regimento da Carregueira, na única incorporação em que toda a gente entrou para soldado. O meu poletão era uma mistura de marginais, desertores e refractários – e achei natural que tivessem incluído um poeta nesse grupo.(…)Encontrava-me nos cafés das Avenidas novas com cineastas como o Seixas Santos ou o João César Monteiro. Desse convívio retenho a sua voz inesquecível(…)a nossa última conversa foi em Bordéus, pelos anos 90,(…)se tivesse sido em Lisboa, o tom não seria o mesmo – o país tem o dom de converter em amargura o entusiasmo de muitos dos que ultrapassam a nossa ideal mediania.(…)Borges terá dito uma vez que se escreve como se brinca. Foi assim que comecei a publicar, devido ao Fernando Assis Pacheco que me pediu um original, o que veio a dar, em 1972, A noção do poema , nos “Cadernos de Poesia” da Dom Quixote; e esse jogo com o objecto que é o livro não mais parou,(…)E isto traz-me de volta ao Algarve, que é um dos eixos por onde passa a minha memória da infância, (…)porque acredito que temos de manter uma ligação à terra de onde vimos e para onde iremos, e de onde nasce a energia que vamos encontrando para resistir(…)E é sobre o que nos prende ao mundo que o amor e a vida encontram a razão que nos impede de parar até que chegue um termo, como aconteceu ao meu velho cão que, depois de uma longa luta contra doenças várias, e de muita alegria e companhia, não resistiu a este Inverno e, com o olhar quase cego dos seus últimos anos, me deixou a ideia de que mais forte do que tudo é o desejo de viver.

E se por um lado podemos afirmar, ser hoje Nuno Júdice um dos três ou quatro nomes mais importantes da actual poesia portuguesa, além da sua importância ao nível da ficção, por outro lado e de certa forma, ainda é um pouco desconhecido do público em geral. É evidente que a qualidade da poesia e da literatura em geral, não está(a atribuição do Nobel é disso um exemplo claro)dependente do número de prémios ou galardões, nem do número de livros editados, mas, parece-me óbvio existir alguma injustiça,(que naturalmente, só o tempo se encarregará de consubstanciar ou não, como sempre fez com todas as obras e autores)nesse aparente desconhecimento que algum público, inclusive o da poesia, ainda demonstra em relação a Nuno Júdice e concretamente à sua extraordinária obra.

Podendo a poesia de Júdice ser considerada uma poesia pura e límpida, contrariamente a um António Franco Alexandre, possuidor de uma poesia bastante densa, ela é contudo na sua essência uma poesia que nos pode remeter a muitas abordagens em torno do poético, inclusive sobre o espaço na contemporaneidade e na sociedade pós-moderna, com o predomínio da “linguagem” consumo e capital, gosto do efémero e das experiências de vida inauditas, tornando o olhar do sujeito lírico como espelho reflector das paisagens e espaços que se cruzam de forma quase apocalíptica. A vida atribuída a essas “personagens”: cidade, aldeia, o sujeito pensante e o próprio poema, o branco e o negro, tornam assim mais complexa, uma poesia que de certa forma é uma corrente de água transparente e colorida, transbordando em direcções várias.

Uma das marcas dominantes, ou talvez a marca dominante da sua produção lírica é a persistente reflexão sobre a prática literária e as reflexões entre escrita e conhecimento no âmbito da literatura e cultura em língua portuguesa no seu “obrigatório” diálogo com a cultura ocidental(semelhante por vezes à poesia de Vasco Graça Moura). Assiste-se a uma permanente reflexão, intercruzada entre literatura e ciência, poesia e filosofia, onde o poético indaga permanentemente a função do ser, a temporalidade e a existência num mundo de uma “globalização” em que encontramos “pregados ou crucificados”. Logicamente, muitas dessas reflexões e indagações vêm impregnadas de ironia e sobretudo do fingimento pessoano, uma vez que a refiguração do mundo e da própria linguagem é encenada no próprio texto poético e literário. Poder-se-á inclusive afirmar, ser a poesia de Júdice um espaço privilegiado, onde o poeta é um voyeur profissional a observar o “mundo objectivo” e a transforma-lo através da subjectividade, estabelecendo um olhar crítico através do contraste entre o mundo exterior e o mundo interior do sujeito poético, o real e o imaginário, as palavras e no silêncio, permitindo ao leitor delinear paisagens e espaços ou correntes de “água fresca”, onde possa ser possível reaprender o sentido do que se vê, ou pelo menos reaprender um sentido outro através do espelho da água cristalina e límpida, mas que “brilha” como espelhos reflectores. Um dos espelhos recorrentes na poesia do poeta é a janela sobre a(s) cidade(s), uma vez que como afirma a professora brasileira Ida M. F. Alves:”As imagens de cidades na poesia de Nuno Júdice acabam por alegorizar a situação e a participação do poeta na sociedade contemporânea, um perseguidor de sentidos, frente ao fugaz, às perplexidades da vida urbana”.

O poeta em permanente reflexão e questionamento, através de imagens ou flash, solicitando a nossa “solidariedade” no entrecruzar de olhares pelas cidades, pelo espaço que nos alimenta e aniquila, tentando repensar o sujeito e o mundo, ou pelo menos “um mundo” que nos rodeia e é familiar. Como já referi, desde sempre emergiu na poesia de Júdice uma encenação do sujeito ficcional, daí ela estar povoada de “biografias imaginárias” de si próprio, numa recorrente e múltipla questionação do acto poético, suportado em todos os “odores dos mortos”(sem se preocupar com A angústia da influência, como nos é apresentada por H. Bloom), numa escrita que possui e suporta toda uma releitura de um imensurável saber literário, mesmo se essa “irrupção nocturna” de sombras interiores,(memórias?) do sujeito literário ou do interior da terra, seja muitas vezes interrompido e “colocado em sentido”, por interferências irónicas do quotidiano que nos envolve.

Nuno Júdice é hoje uma voz entre as mais altas e originais da poesia e literatura portuguesa contemporânea, na sua permanente luta contra o indizível da palavra e da poesia. Esta é ainda o mistério, a criação e a revelação do absoluto e do sagrado que Júdice tenta com sofrimento, modelar nas formas que a língua lhe colocou à disposição ou na “liberdade” que a linguagem lhe permite e “autoriza”. É o incomensurável que ele procura dominar na convivência pertinaz de cada momento e no saborear de cada acto perante a luz que o ilumina e cega ao mesmo tempo, mesmo sabendo da impossibilidade de capturar o indefinível que nos alimenta a garganta das vozes. Por isso, como refere a poeta brasileira Vera Lúcia de Oliveira:” Nuno Júdice não despreza o recurso ao inconsciente, ao sonho, à bruma, às manhãs de Outono e Inverno, às atmosferas em que o onírico é colhido de forma profusa, impetuosa e barroca e em que os vocábulos se associam de modo aparentemente caótico, arrastando o puro e o impuro da memória”. Logo, o poeta insiste numa procura do senso íntimo e visceral de cada momento e de cada elemento, seja físico ou espiritual, essencialmente no seio da natureza, revisitada pelo poeta de forma insistente, seja através da palavra, do eco, do silêncio pertencente a essa mesma natureza. Como refere ainda Vera Lúcia de Oliveira:”O surpreendente neste poeta é que, embora sua poesia pareça debruçada sobre si mesma, sem historicidade e sem ambição de projectar-se activa e incisivamente na realidade, na verdade para Nuno Júdice a poesia tem função altamente humanizadora, de pesquisa e conhecimento da nossa essência mais íntima, é actividade cognitiva por excelência e dela não prescindimos”. Até porque a poesia é a palavra, e a palavra a linguagem que nos desafia, atormenta e domina, mesmo se o poeta prefira fingir, julgando o contrário, daí persistir, escrevendo e respirando, porque a linguagem é a vida e a morte e novamente a vida que brota.

Nuno Júdice permanentemente em busca do “espírito” da poesia, normalmente constrói o poema analisando os mecanismos de construção e relações do mesmo. É como se utilizasse uma estratégia que nos levasse a viajar por dentro do poema, como se nos fundíssemos nas suas múltiplas e complexas opções, como se aparentemente, até porque não é isso que o poeta pretende na realidade,(ou será?) caminhássemos sabedores tanto do que o autor percorreu e escolheu, como do que ele excluiu, num processo de escrita que, para além da qualidade, é bafejada pela originalidade que o “odor dos mortes” permite e bafeja, sem o qual a poesia moderna enquanto tal não poderia existir, mas metamorfoseando-se em odores outros. Toda a obra de Júdice, vista em determinada perspectiva, assemelha-se a um imenso diálogo auto-reflexivo e interrogativo, em que o poeta tantas vezes se auto-indaga, num sofrimento que se adivinha até ao último fôlego da carne:“Para quê/escrever?” e “O que fica/nas palavras/daquilo que se viveu?”, como se fossem as últimas palavras de um condenado, pois a poesia não tem, nem deverá ter nenhuma utilidade prática, ela só se explica existindo. A poesia não mudará nada deste “nosso mundo”, mas, este mesmo mundo talvez já não possa passar sem a poesia, mesmo se ainda não se apercebeu de tal facto. A poesia é apenas o eco do assombro que germina a palavra na apreensão directa da “realidade” da luz.

Concluindo, Nuno Júdice , com uma poesia aparentemente límpida, pura, equilibrada e, ao mesmo tempo inovadora, é hoje uma das vozes fundamentais da poesia e literatura portuguesa contemporânea, uma voz sempre com o fingimento sagrado e necessário da palavra que faz da circunstância e do reenvio, pretextos para a narração das vivências que nos rodeiam, através da linguagem que nos alimenta, e constrói. A palavra sempre demonstrando a ideia “de que mais forte do que tudo é o desejo de viver”. Como refere Nuno Júdice, no poema “Amor”:

Um poema, dizes, em que/o amor se exprima, tudo/resumindo em palavras.//Mas o que fica/nas palavras/daquilo que se viveu?//Um pó de sílabas,/o ritmo pobre da/gramática, rimas sem nexo…/