LUÍS COSTA:::::::::::::

Bom Natal

1
 
ESTOU sentado no café. bebo um chá de limão
para aclarar os pensamentos. 
pois passei a noite dentro de um sonho obscuro. 
sem portas. nem janelas. sem sol nem luar.
 
bebo o meu chá, vagarosamente, como se pudesse
parar o tempo no simples gesto de beber. 
bebo e olho através da janela do café. bebo e olho 
e vejo vistamente um homem, um homem sentado a uma esquina.
 
não tem braços, nem pernas: o mar estendido à sua volta
como um cão magro. o mar, sujo, mas fiel. 
o rosto barbudo, nobre e altivo como a tristeza. 
e ouço como o homem canta, ouço como canta uma canção 
muito antiga, numa língua muito antiga.
 
uma canção de miséria e terror. e fala dos seus 
membros perdidos. algures perdidos. fala. das dores 
que ainda lhe provocam dores, das feridas que chegam 
da carne à alma, da casa que já não pode habitar.
 
e também das crianças que deambulam, cegas, pelas 
ruas do amanhecer em busca da turbina da luz. 
dos animais degolados. dos avós olvidados na solidão
das portas. e das mães que choram os seu filhos e esperam
pacientemente por notícias de Deus.
 
com os olhos cegos, revirados para o vazio, canta e
canta e o sal sobe-lhe aos ventrículos. sobe. arrebata-lhe a voz.
e eu: olho-o. olho-o.
entristecido, mas maravilhado. olho-o.
e lembro-me de homero com o seu búzio miraculoso 
numa das mãos.
 
 
2
 
SONHOU que deus era uma ferida.
aberta. uma ferida. fresca e aberta.
nas vísceras do animal.
 
e um murmúrio libertava-se.  
ao fundo. nas trevas. um murmúrio.  
inacessivel. talvez.
pássaro ou fumo. ouro. talvez.
talvez um nome. um flash.
 
como uma cavilha enferrujada.
entre o cântico do martelo e a suavidade
da carne.
 
*
 
ABRIU os olhos e escreveu:
deus talvez seja a fechadura
de uma chave que nunca chegou a existir.  
 
Luís COSTA

Luís Costa nasce a 17 de Abril de 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Com a idade de 7 anos tem o seu primeiro contacto com a poesia, por meio de  Antero de quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.

Depois de passar três anos  num internato católico, em Viseu, desencantado com a vida e com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo.  Aprende autodidacticamente o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de Francês, bem como alguns princípios da língua latina. Lê, lê sem descanso: os surrealistas, a Geração de 27, Mário de Sá-Carneiro, Beckett, E. M. Cioran, Krolow, Homero, Goethe, Hölderlin, Schiller, Cesariny, Kafke e por aí adiante. Dedica-se também, ferverosamente, ao estudo da filosofia, mas uma filosofia viva. Lê os clássicos, mas ama, sobretudo, o poeta/ filósofo Nietzsche, o qual lera pela primeira vez com a idade de 16 anos : "A Origem da Tragédia" e o existencialista Karl Jaspers.

Mais tarde abandona Portugal rumo à Alemanha, pais onde se encontra hoje radicado.