:::::::::::::::::::::LUÍS COSTA::::::::::::
A BOBA OU A VERDADE E O MITO

E mais, mal vós sabeis que por causa
minha recebeu morte D. Inês de Castro

Maria Miguéis

O seguinte estudo debruça-se sobre a peça (monólogo) de Maria Estela Guedes, “A boba “, que se encontra actualmente em ensaio no Teatro Experimental de Cascais ( TEC ) e que brevemente será estreada .

Ao escrevermos este ensaio, aceitámos o desafio que a própria Estela nos colocou, num e-mail, se não estaríamos interessados em escrever alguma coisa sobre ela. Caso estivéssemos, ela enviar-nos-ia um livro da sua autoria, recentemente publicado no Brasil.

Nós aceitamos. E poucos dias depois o livro encontrava-se na nossa caixa do correio. O seu título: Tríptico a Solo, dado à estampa no Brasil pela editora Escrituras com prefácio e organização do poeta brasileiro Floriano Martins. Este livro reúne, como o próprio título deixa entrever, três livros: 1. Ofício das Trevas, 2. Diário de Lilith, 3. A boba.

Lemos o livro e gostámos de todas as partes. No entanto ficámos indecisos: não sabíamos bem se deveríamos escrever sobre o livro todo, que são três livros, ou se deveríamos escrever sobre uma das partes, ou seja, sobre um dos livros. Depois de pensarmos bem, resolvemos escrever sobre o monólogo a “Boba.“ Mas afinal por que razão esta escolha (embora tivéssemos reflectido) ? Isso nem nós próprios o sabemos bem. Talvez por causa da temática que ela trata: o mito e o problema da verdade histórica. Talvez por causa do seu registo surreal, ou talvez por que a Boba se assemelhe um pouco a nós, ou seja, identificámo-nos com o seu carácter de ser assimétrico e revoltado.

Queremos ainda deixar aqui bem claro que, ao escrevermos este breve estudo, não temos intenções de defender qualquer tese. Pretendemos simplesmente fazer uma leitura deste texto. Uma simples leitura, livre, poética e subjectiva, entre muitas outras possíveis.

*

O que é a verdade e o que é a não verdade? Haverá quem responda que os factos relatados nos manuais de história são sempre verídicos, ou seja, verdades. Pois o historiador, homem atento, que analisou os factos, estudando textos, relatos de cronistas, escritores etc. ( sejam estes testemunhas directas desse tempo, ou não ), procura, sobretudo, a verdade. E certamente que encontra sempre uma verdade, muitas vezes em forma cronológica ( como se os acontecimentos históricos seguissem um curso predeterminado ), uma verdade que ele vai consolidar e compilar ( talvez ), numa tese bem defendida ( um bom argumento é já uma boa verdade ), e que por isso pode, de uma maneira ou de outra, ser considerada como um facto histórico, que o é à sua maneira, verdadeiro. Mas quererá isto dizer que os critérios psicológicos e os interesses pessoais, que regeram as figuras históricas dessa altura, terão sido rigorosamente aqueles que os historiadores supõem? Não teria havido, lá no fundo dessas personagens históricas, sobretudo, motivos de ordem narcisista que ultrapassariam os interesses sociopolíticos? Poderão os historiadores algum dia olhar para dentro do coração das figuras que fizeram a história ? Neste aspecto o historiador só poderá adivinhar. Aqui só as próprias personagens históricas nos poderiam dizer, com toda a certeza, por que razões haviam cometido determinados actos.

Devemos dizer ainda que mesmo sobre certos acontecimentos históricos, considerados incontestáveis, há, por vezes, diversas interpretações e profundas divergências entre os vários historiadores que os analisam. Foi precisamente por esta razão que o grande historiador Jacob Buckahrdt deu ao seu livro “ Die Kultur der Renaissance in Italien “ o subtítulo “ Ein Versuch “(um ensaio). Diz-nos ele acerca desta obra (no prefácio), o seguinte:

“ neste vasto mar em que nos aventuramos, os caminhos e as direcções são muitas, e facilmente poderiam os mesmos estudos que foram efectuados para este trabalho, não só conhecerem, nas mãos de outra pessoa, uma outra forma de uso e tratamento, mas até levarem a conclusões essenciais bastante diferentes das aqui apresentadas.” ( 1 )

Quem nos pode garantir que as fontes em que o historiador se apoia ou apoiou sejam fidedignas? A verdade como real- verdade histórica é seguramente um problema innextricável. E então quando se tratam de acontecimentos mitificados, como no caso da tragédia inesiana, a problemática da verdade histórica, torna-se ainda mais complexa, torna-se verdadeira poesia.

E não será sob esta perspectiva que a escritora Maria Estela Guedes nos apresenta a sua peça: “A Boba “ ? Tudo nos leva a crer que sim. É ela mesma que nos diz:

“ Uma coisa é o que está escrito e outra o que aconteceu. Sem desprimor para Fernão Lopes, por exemplo, nada garante que tenham de facto acontecido os factos que ele regista na “ Crónica de D. Pedro I , minha principal fonte historiográfica. Ele nem sequer é contemporâneo do que narra. Eu acredito na probidade do velho cronista, porém quem garante que sejam fidedignas as suas fontes?” ( 2 )

Ao revisitar o mito inesiano, o maior mito trágico português, senão de toda a península ibérica, que ao longo dos séculos foi romantizado, Estela Guedes procura, recorrendo a escritos de outros autores (fictícios e históricos) que sobre esse tema se debruçaram, desmistificá-lo e criar assim uma nova verdade, uma verdade, capaz de pôr, como ela própria afirma, o mito a nu. Uma nova verdade talvez fictícia, porque ficcional, ou surrealizante, mas que bem poderia ter sido ou terá sido mesmo a verdadeira realidade, a qual talvez se encontre soterrada sob o entulho histórico, e que para a personagem deste monólogo a “boba“ é a sua verdade essencial. Uma possível verdade que ela vai construindo e partilhando com o leitor ou espectador ao longo da peça.

A nossa interlocutora tem dúvidas quanto à veracidade da história oficial de Inês e Pedro, e por isso a questiona, visto que ninguém pode ter a certeza se aquilo que se escreveu, se passou realmente, ou se não terá havido antes uma falsificação dos factos por interesses de poder. Como ela argumenta no seu tom de paródia e crítico:

“ A história, diz Agustina, a cronista, é uma ficção controlada. E eu que o diga, eu que o bobe. controla quem tem poder para que se divulgue e publique só isto e aquilo. Controla quem manda escrever cartas fundadoras, séculos depois da falsa data de redacção. Controla quem manda forjar falsas declarações de casamento, controla quem manda assentar falsos registos de baptizado, controla quem falsifica dados biográficos, controla quem inventa macroscincos, unicórnios e sereias.

Controla-se para quê? Para mandar, está visto. “ ( 3)

Para criar a sua possível verdade, pois encontramo-nos no domínio da criação poética, da imaginação criadora, a Miguéis usa aquilo que ousaremos chamar ensaísmo dramático, isto é, ela apresenta o seu ponto de vista: “ eu sou a causa da tragédia “ e vai-o cimentando por meio de citações tiradas de obras de outros autores sejam cronistas, como no caso do Fernão Lopes, sejam poetas como Camões, Herberto Helder, ou ficcionistas como Agustina Bessa-Luís ou António Cândido Franco etc. As fontes a que ela vai beber são, como se observa, muitas e diversificadas. Quanto à construção do texto podemos aqui falar de uma técnica de reciclagem. Isto porque o tecido deste texto, como acabamos de dizer, vai sendo costurado a partir de passagens de outros textos ( remendos ) que Miguéis vai comentado ou parafraseando.

Mas agora perguntará o leitor: Não existirá aqui uma tentativa de falsificação dos factos, por parte da autora desta peça? Só podemos responder que - Não! e isto porque esta verdade é somente uma das muitas possibilidades, leituras, entre outras, do mito inesiano.

Partindo, como já dissemos, dos vários textos que sobre este mito se escreveram, Estela Guedes recria uma nova verdade, que imana da realidade poética, a mais profunda realidade de qualquer mito...

Como bem o vê, no prefácio, a este monólogo, Eugénia Vasques, a Boba, embora sendo um produto da era dos computadores, deve muito ao Romantismo. Esta anã leva-nos, de facto, a pensar em figuras grotescas à maneira de E. T. A. Hoffman, ou de um Nicolau Gogol. Características notadas também no plano linguístico, na “ tensão existente entre o grotesco e a linguagem escatológica ( para nós de um humor burlesco, crítico e surrealizante) de Miguéis e o lado sublime do mito inesiano.“ ( 4 )

E não é a própria boba que se caracteriza da seguinte maneira?

“ Eu sou anormal. Ah, sim, eu sou um monstro. Eu sou o monstro... (... ) Eu sou o Monstro, mas não por dizer monstruosidades. Sim por estar por detrás delas. ( 5 )

O grotesco e o anormal foram sempre uma espécie de revolta contra o oficial, contra a rotina, contra a lei vigente, a hipocrisia do poder, o burguesismo barato, o status quo, uma espécie de Albatroz à la Baudelaire, que devido à monstruosidade das suas asas, não é capaz de voar. O que é que este albatroz pode fazer a não ser insurgir-se contra um sistema apertado demais para as suas asas? E aqui podemos muito bem lembrar o caso do anão Oskar Matzerath., no romance de Günter Grass, “ Die Blechtrommel “, que, como forma de revolta e contestação contra o mundo hipócrita dos adultos, decide não mais crescer. Ele é a voz do revoltado, do marginal, daquele que não pode aceitar as condições do sistema em que nasceu. Não será precisamente isto que também acontecerá no caso da nossa Boba? Pois quem é ela a não ser uma anã marginalizada que ao modo romântico quer dar voz aos excluídos da terra, aos freaks do universo: os anormais e os monstros? ( 6)

Uma anã que reclama para si um direito à História:

“ Sou anã, chego tão-só às vossas perninhas... / e não vos regalais com isso?/ Não é por vos chagar à foz e aos baixios/ que deixo de ter alma,/ nem por isso de ser sujeito do que digo/

e por tudo isto, como os outros anormais, também tenho direito à História.” (7 )

Miguéis tem ciúmes de Inês. Estes ciúmes são uma forma de revolta e contestação contra a beleza estereotipada e perfeição física feminina do mito inesiano, que a inferiorizam e excluem deste mundo, fazendo dela um monstro. Pois nela nada disso existe, ela não passa para lá de uma condenada, objecto de uso e abuso sexual por parte de D. Afonso e D. Pedro. Ela nada possui, nem beleza, nem nobreza, nem liberdade, nem riqueza. Este castigo existencial provoca nela um desejo de revolta. Revolta que ela vai poder consumar graças à sua imaginação poética, forma mais nobre de liberdade. Esta é a única forma de se evidenciar, de ultrapassar as correntes da sua condição, de ter um lugar na História, uma espécie de “ compensação “, como diriam os psicólogos. E é por isso mesmo que ela resolve ser a causa da morte de Inês, a desmistificação do mito ( “ eu sou a causa da tragédia, fui eu quem tramou tudo “ ), a qual é a personificação da beleza e perfeição (integração e aceitação no mundo), coisas que permanecerão sempre aquém e além da Miguéis. Miguéis é assim uma espécie de Lúcifer, anjo revoltado, sinónimo do poeta, a poeta par excelence. Por este modo, Miguéis destrói (desconstrói) e ao mesmo tempo recria uma nova verdade essencial para ela ( poética ) do mito inesiano. O ciúme e a revolta são as armas de Miguéis, as armas com que ela vai reciclar o mito, transportá-lo para o século XXI. No ciúme e na revolta Miguéis descobre uma potência universal, existente em todos os homens, que lhe permite reconstruir, à sua maneira (humorística, trágico/cómica ) a tragédia inesiana.

E assim podemos dizer que, por meio do sentimento de ciúme ( freudiano?) e a revolta, a verdade do mito inesiano se rejuvenesce, refresca, recria e universaliza nesta peça, pois o ciúme e a raiva de Afonso IV e o ciúme e a revolta da boba, que são a causa da morte Inês de Castro, são aqui a verdade, verdade tanto mítica como histórica capaz de criar e recriar lendas e mitos. E porquanto possível no caso inesiano e talvez mesmo a verdadeira causa dessa tragédia como nos deixa crer Agustina Bessa Luís na seguinte passagem:

“Na realidade, porque é que uma mulher como Inês, educada para impressionar um rei, formosa e inteligente como tinha que ser o modelo da circe galega, não podia causar estragos na alma de D. Afonso antes de atacar as resistências do infante?
( 8)

E como em 1956 Godin da Fonseca dizia ( citamos a Miguéis ) :

toda a tragédia se deveu a paixões e ciúmes entre pai e filho. O pai é que se tinha embeiçado por D. Inês, Pedro só dormia com ela para cegar o pai de raiva.” ( 9 )

Ainda no que diz respeito à questão da verdade histórica é a própria Estela Guedes que também escreve:

“ Mas eu, pessoalmente, nem estabeleço grandes distinções de valor entre a informação histórica e a romanesca. “ (10 )

E ainda

a história, seja a de Fernão Lopes seja a de uma ficcionista como Agustina Bessa-Luís, diz que a história é uma ficção.“(11)

Por isso a verdade desta Boba é tão real como a própria verdade existente nos textos históricos e de ficção que são o material de construção deste monólogo.

Se é verdade que a Miguéis destrói, por um lado, uma possibilidade poética do mito ( o lado amoroso, sublime ) ela cria, ou recria, por outro lado, uma nova possibilidade poética desse mesmo mito ( apoiado no ciúme, na vingança e no sarcasmo ), que emana da própria capacidade criativa que ela investiu no seu monólogo ensaístico. A grande vencedora desta peça é, ao fim e ao cabo, a poesia. E por isso mesmo, embora talvez não parecendo, a Boba acredita tal como a sua autora, Estela Guedes, que:

“ a poesia mostra, ela tem luz própria, é ela a estrela. Tudo o mais são planetóides.”( 12)

Mas então afinal o que é que nos fica da verdade histórica ou da questão que colocámos no inicio deste texto? Neste caso fica-nos o próprio mito, a verdade-mentira do mito inesiano, talvez a nu ( a suas múltiplas verdades-mentiras possíveis ), reciclado poeticamente por uma anã chamada Miguéis, a qual, por meio da releitura remendada desse mesmo mito, transcendeu, tal como todos os mitos, o tempo e o lugar histórico, pois que “de então para cá tenho sofrido períodos de boa fortuna. É como calha. Assim atravessei os tempos de D.João e de D. Sebastião ao Ultimato, e do Ultimato ao fim da Monarquia. E pelo meio lá tive que gramar os séculos da inquisição...” ( 13 ), e é assim capaz de se afirmar historicamente e falar a um público da era cibernética.

Por estas coisas podemos afirmar, e com isto terminamos, em uníssono com Fernando Pessoa, que “ o mito “ ( apesar da tentativa de desconstrução e desmistificação aqui efectuada ) “ é “ ( ainda e também neste caso ), “ o nada que é tudo. / O mesmo Sol que abre os céus/ É um mito brilhante e mudo- / o corpo morto de Deus, / vivo e desnudo.” E ( ... ) “ Assim a lenda escorre/ A entrar na realidade, / e a fecundá-la decorre./ Em baixo, a vida, metade/ De nada, morre.” ( 14 )

 

Luís Costa, Fritzlar Janeiro de 2008

Nota: agradeço à minha amiga e companheira de caminhadas poéticas, Helena, a ajuda que me prestou na correção deste texto e também alguns palpites que me deu.
Notas:

1)“ Die Kultur der Renaissance in Italien, ein Versuch “, Jacob Burckhardt, Sonderausgabe 2004, für Nikol Verlaggsgesellschaft mbH& Co.Kg

2) “ Questões de erro e de Verdade na Boba “ texto de Maria Estela Guedes, na Revista digital “ TriploV “

3) “ A boba, “ pág. 216, no livro “ Tríptico a Solo “, Maria estela Guedes, Escrituras São Paulo, 2007

4) Auto-Retrato da Boba ou A Noite e o Medo, prefácio de Eugénia Vasques na primitiva edição, “ A Boba “, Apenas Livros Editora, Lisboa, 2006, disponível na Triplov

5) “ A Boba “, pág. 227, no livro “ Tríptico a Solo “, Maria estela Guedes, Escrituras São Paulo, 2007

6) Auto-Retrato da Boba ou A Noite e o Medo, prefácio de Eugénia Vasques na primitiva edição, “ A Boba “, Apenas Livros Editora, Lisboa, 2006, disponível na Triplov .

7) “ A Boba “, pág. 213, no livro “ Tríptico a Solo “, Maria estela Guedes, Escrituras São Paulo, 2007

8) “ Advinhas de Pedro e Inês “, Agustina Bessa- Luís, extracto disponível na Triplov.

9) “ A Boba “, pág. 216, no livro “ Tríptico a Solo “, Maria estela Guedes, Escrituras São Paulo, 2007

10) “ Questões de erro e de Verdade na Boba “ texto de Maria Estela Guedes, na Revista digital “ TriploV “

11) “ Tríptico a Solo “, pág.10, Maria estela Guedes, Escrituras São Paulo, 2007

12) ibidem, pág. 16

13) ibidem, pág. 230

14) Fernando Pessoa, “ Mensagem “, poema “ Ulisses “, no Jornal de Poesia: http://www.revista.agulha.nom.br/fpesso02.html

Luís Costa nasce a 17 de Abril de 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Com a idade de 7 anos tem o seu primeiro contacto com a poesia, por meio de  Antero de quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.

Depois de passar três anos  num internato católico, em Viseu, desencantado com a vida e com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo.  Aprende autodidacticamente o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de Francês, bem como alguns princípios da língua latina. Lê, lê sem descanso: os surrealistas, a Geração de 27, Mário de Sá-Carneiro, Beckett, E. M. Cioran, Krolow, Homero, Goethe, Hölderlin, Schiller, Cesariny, Kafke e por aí adiante. Dedica-se também, ferverosamente, ao estudo da filosofia, mas uma filosofia viva. Lê os clássicos, mas ama, sobretudo, o poeta/ filósofo Nietzsche, o qual lera pela primeira vez com a idade de 16 anos : "A Origem da Tragédia" e o existencialista Karl Jaspers.

Mais tarde abandona Portugal rumo à Alemanha, pais onde se encontra hoje radicado.