Planta terna

MANUEL SANTOS


vício

 

uma pessoa deita-se

levanta-se

escreve

adormece

 

para dizer nada

nada para dizer

 

espera o ribeiro chuva

caem de amarelo folhas

folhas caem de amarelo

a croruja perdeu o pio

o mocho pifou

 

aguardar os melros

chegam sempre de negro

 

decifrar a cor do canto

 

folhas de anúncio de outono

como do outono caído.

desejos caídos. caídos desejos.

 

folhas secas secam

o regato sem darmos conta.

 

limpar as margens.

corre leito a chuva


planta terna

 

este aniz envelheceu na cave de meu pai.

forte aconchega o peito. das impurezas como borras.

apetece outro trago, à saúde

dos anos partilhados na planta terra.

 

soletrar sílabas do silêncio

achegar ao nada as cousas

as cousas que são tempo.

 

todos os santos ajudam outros nem tanto.

perguntar num copo de cerveja sopra  pra que lado o vento

esperar que caiam as primeiras estrelas.

se acenda um ensejo, outro cigarro

pronto para sonhos evangélicos.

sem santos sonsos.

 

certamente encontro com o écran

verás seu corpo sem celulite mamas grandes ardentes

posições provocantes até chocantes alarmantes

voz modulada do perverso ao ciciante sussurrante

adrenalina em ponto de rebuçado

“delete”


película

 

sombras desbobinam da película e do real

feitiço ou devir espelho espelhos

 

“o amador  se transforma na cousa amada”

o actor no indisciplinador dos sentidos

 

como se não houvesse mais sentido

senão a via láctea da volúpia

 

bilhete de entrada de ontem no castelo de s.jorge

Nº BCJ 201830/142839

capturei-o da mesa do café antes de apanhar o train

imaginar nome rosto sairmos na estação de santarém

subir ao castelo mouro perguntar qual gostas mais

contar batalhas reis guerreiros comuns do tempo

que se podia ser amigo sem conversão

conquistar-te apreender a tua língua e tu a minha

comboio de corda do coração

 

não se abrem as mãos

sem outras mãos

 

esborrachar amoras

beber mão a mão

 

lábios prontos para

outros lábios

 

benzeu-se desesperado três vezes.

o homem viera apressado da ponte do ribeiro

plo saibro do campo da petanca olhou para trás

para o lado como se escapasse duma perseguição

não me viu à janela aberta corri à janela da marquise

vim esconjurar no poema que o homem se salve

tinha ar de louco ou tão só pouco de susto

como simpatizo com os loucos

embora nunca tenha encontrado deus

peço nesta oração recobre a serenidade da noite

que das estrelas apagadas na borrasca desça uma

até à amplidão dos braços sedentos de outros braços

 

quando a memória do gelo

for contada aos netos que brincam

com o boneco inteligente artificial

no zoo doméstico

 

os animais selvagens

(incluindo os cavalos marinhos)

que escaparem à protecção

do partido dos animais

poderão ser partilhados

em visionamento familiar

de vídeos de caçadas

 

já noé

esse patriarca dos protectores

tivera a visionária ideia

(pois não havia ainda

imagens gravadas

nem artistas rupestres)

de armazenar

em pacífica convivência

um casal

de cada espécime animal

 

como a nossa inteligência,

gela em porporção

inversa aos glaciares

desta vez

os queridos animais domésticos

porfiamos em salvar e multiplicar

não correrão perigo

de uma bocarra escancarada

os engolir

 

e ternamente

partilharão com os netinhos

a estupidez natural

dos bonecos racionais

e dos artificiais inteligentes.


ΘSétimo Encontro Triplov na Quinta do Frade
Casa das Monjas Dominicanas
17 de novembro de 2018