Pessoa hispânico

JÚLIO CONRADO


O que fazer com um diamante lapidado que conta com cento e trinta anos de Eternidade?  (incluindo, claro, os anos de descaso identitário). Eis a resposta de um grupo de mulheres letradas que não deixou passar a data sem uma grande festa tanto mais ruidosa quanto é verdade serem essas mulheres, em esmagadora maioria, falantes do castelhano. E todos nós sabemos quanto um bruáá espanhol num café, num estádio ou numa manifestação política é esmagador face ao tímido sussurro português num idioma que se diz falado por nada menos do que duzentos milhões de seres humanos mas que mal se faz ouvir. Se a nossa Maria Estela Guedes também se dispôs neste livro a ver em que estado estava o seu espanhol… Nada a opor não fosse dar-se o caso de a tal jóia lapidada ser portuguesa. E a voz cuja sonoridade o livro difunde trazer maioritariamente a marca da língua de Cervantes. Estaremos perante uma tentativa de colonização do nosso território idiomático-cultural a partir desta apropriação de data aniversariante tão expressiva por um exército de mulheres empenhadíssimo em tornar mais terno o eterno repouso do incompetente amador quando dispunha de uma arma tão infalível para derrubar até as reticências das de coração mais duro – a sua portentosa poesia?  Pare-se de uma vez por todas de fazer do improvavável namoro do tímido Pessoa com a timorata Ofélia, e da infelicidade que lhes subjaz, uma espécie de Romeu e Julieta ao invés. Estes arriscaram tudo, os nossos não arriscaram nada. No fundo, foi tudo teatro, concordo.

Entretando, não vá descobrir-se um secreto pingalim patrioteiro que raramente uso e dar-lhe trabalho com a obra que me puseram nas mãos,  eis-me a enviar para o Além os parabéns a Pessoa congratulando-me por ter tantas e tão bonitas mulheres nas mãos apaixonadíssimas sobretudo pelo teu Bernardo Soares  que me parece ter sido o figurão que mais as desassossegou. E o que elas palmilharam de Lisboa, graças a ti, sem jamais cá terem posto os pés, mas pisando à mesma calçada portuguesa e elogiando a tua pose sentada à porta da Brasileira que foi uma maneira airosa de o Lagoa Henriques se despedir da cidade das sete colinas. Deixou-te sentadinho, sem nada que fazer senão enxotar os turistas que se acercam de ti para ficarem na fotografia,  para teu e dele descanso. Já o outro, o do quadro dos Irmãos Unidos fez-te um retrato a fossares que nem um doido para acabares A Mensagem, ou a Tabacaria, ou fosse o que fosse, enquanto o teu prosapioso retratista pintor se preparava para ir até à Gare Marítima de Alcantara besuntar as paredes com tintas de cores fortes alusivas à raça, à epopeia, à expansão, e essa coisa toda. Chamava-se Almada Negreiros – em dois nomes  cabia um desígnio universal. Mas voltando às senhoras “pessoanas” que é o que verdadeiramente importa neste caso se não lhes presto o elogio lexical é porque eu próprio não vou além de um tortuoso portugnol, percebo o suficiente para ter a humildade de reconhecer o mérito da engenhosa ideia, os talentos experienciais e maduros que a puseram em marcha, a variedade de soluções com que os heterónimos inspiraram as contistas, as paisagens lisboetas a partir do que delas deixou Pessoa escrito, apetece dizer à maneira de Eliot: Boa noite, boa noite, doces damas.

Claro que não me irei embora sem saudar, nome após nome, as escritoras que deram forma e voz a tão ambicioso e belo projecto: Verónica Aranda (Madrid), Silvia Arasi (Argentina), Agustina Marìa Bazterrica (Buenos Aires), Liliana Diaz Mindurry (Buenos Aires), Josefina Estrada (Cidade do México), Filipa Falcato (Reguengos de Monsaraz, Portugal), Anunciada Fernandès de Cordova (Espanha, Madrid), Milene Fernandez Pintado (Cuba, Havana), Maria Garcia Esperón (Cidade do México), Maria Estela Guedes (Portugal, Britiande), Gabriela Guerra  Rey (Habana, Cuba), Ángela Hernandez Núnez (Republica Dominicana), Rebeca Hernandés Alonso (Espanha), Gizela Kosak Rovero (Caracas), Ethel Krauze (Cidade do México), Maria Elena Llana (Cienfuegos, Cuba), Diana Obando (Bogotá), Anacristina Rossi (Costa Rica), Fnny Rubio (Espanha), Consuelo Sánchez Naranjo (Madrid), Mar Sancho (Valladolid, Espanha), ;arifé Santiago Bolãnos (Espanha), Karla Suárez (Havana, Cuba), Tanya Tynjala (Perú), Vivian Watson (Venezuela) e ainda as grandes obreras do volume, até eu estou contaminado, Mayada Bustamante e Gabriela Guerra, que se encarregaram, respectivamente da selecção e da edição, tendo ambas nascido em Cuba. Não esquecendo, evidentemente, a brilhante ilustração de Helena Liz.

Parabéns Fernando Pessoa lá no apartamento cósmico onde moras, espero que numa rua com uma tasca à esquina, subitamente desassossegado por tantas e tão lindas admiradoras e rivais da tua Ofélia, que podias tu mais ambicionar da generosa Eternidade interestelar que te agasalhou, segue mas é o conselho da tua compatriota Estela Guedes disfarçada de Álvaro de Campos num livro com tantas e tão belas mulheres perdidas de amor por ti: o usted corta inmediata y fríamente esa relation com la señorita Ofélia ou yo me voy a la India con A. A. Crosse en el proximo barco. No recibirá de mi ni un poema más.

Despeço-me aqui pois para mais não dá o meu portugnol.

 

Los Cuentos que Pessoa no Escribió.
Edição Huso, Madrid, 2018


In As Artes entre ass Letras, Porto, verão de 2019