PAULO MENDES PINTO

A RELIGIÃO NA ESCOLA
UM DESAFIO PARA A DEMOCRACIA E PARA A CIDADANIA (4)

4. O nascimento do estudo científico das religiões
O campo universitário foi o que mais cedo se abriu ao estudo científico das religiões. Esse aparecimento muito deve a um conjunto de novas visões dos Textos Sagrados que surge no século XIX em alguns meios culturais mais dinâmicos. Trata-se de um longo processo em que os textos antigos foram totalmente revisitados, equacionando-se a sua génese e a sua autoria.

Nesta nova leitura e enquadramento - que incluiu os textos tradicionalmente atribuídos a Moisés (o Pentateuco), entre outros - a marca de inovação reside no fim do paradigma que tomava os conteúdos desses textos num sentido literal; Uma literacidade que era cada vez mais relativizada e posta em causa pelos avanços, quer da Crítica Textual e Literária, quer das Ciência Naturais, Geologia e Biologia, que lançavam novas bases para o conhecimento da antiguidade do Homem, da Terra e do Mundo.

Toda a necessidade de confronto entre a(s) tradição(ões) cristã(s) e as restantes formas de saber agora visíveis, quer sejam os novos dados científicos, quer sejam as tradições culturais e religiosas exteriores e ao cristianismo, criou uma profunda dinâmica de investigação, tradução e teorização no campo da compreensão, da comparação e da relativização dos fenómenos religiosos.

Um passo fundamental foi dado pelas chamadas «Vidas de Jesus» -biografias que tomavam o criador do cristianismo na sua dimensão histórica-, um modelo literário relativamente em voga na segunda metade do século XIX. Antes, em 1785, já Hegel redigira uma Vida de Jesus que seria descoberta apenas em 1907; Mas o ponto alto deste estilo encontra-se, efectivamente, na obra de Renan, La Vie de Jésus, de 1863, que lhe custaria o seu lugar no Collège de France.

Ao jeito comteano de fragmentação das ciências, o meio do século XIX viu nascer uma História das Religiões autónoma, quer da História, quer da Teologia. O seu objectivo era o estudo comparado das diferentes tradições religiosas da humanidade. A base desta nova ciência do humano encontrava-se nos embriões de outras nascentes ciências, como a Linguística, a Antropologia Cultural, a Psicologia e a Sociologia.

Desta forma, a História das Religiões afirmou-se mais que por uma metodologia de trabalho própria, por uma reunião de metodologias diversas sobre um mesmo objecto.

A Ciência da Religião, como surge grafada numa das primeiras obras que o século XIX criou sobre mitologia comparada - em que Max Müller usou o termo «Relogioswissenschaft», rapidamente traduzido para as línguas latina como «Ciência da Religião» (Max MÜLLER – La Science de la Religion. Paris: Librairie Germer Baillièrre, 1873) - surgia claramente numa acepção iluminista do saber, flanqueda e validada por um largo grupo de conhecimentos que na Ciência da Religião tinham um observatório válido e supostamente eficaz para a análise científica das religiões.

Nascida no campo da rejeição às suas antecessoras, a Filosofia e, em especial, a Teologia, a Ciência da Religião tinha enforme conceptual positivista e era, acima de tudo, apologética e cientifista. O estudo científico apresentava francas bases apriorísticas: ou procurava demostrar a superioridade do cristianismo face às restantes religiões, ou almejava exactamente o oposto, demonstrando as faces perniciosas da religião, no seu geral, e do cristianismo, de forma mais específica.

O sentido cientifista das explicações tinha como modelo teórico o da evolução científica em que as formas às religiosas se faziam corresponder níveis de evolução diferentes numa lógica cronológico-axial: haviam as «formas elementares», os «princípios germinais» e as «formas acabadas».

Max Müller é claro ao apontar os objectivos da sua obra, nomeadamente na abertura do capítulo com o título já sugestivo “De L’Interprétation des Religions Anciennes”: J’ai désiré surtout vous faire voir en quel sens une étude vraiment scientifique de la religion est possible, de quels matérieux nous disposons pour arriver à une connaissance sérieuse des principales religions du monde, et les principes d’après lesquels ces religions peuvent être classes - a classificação e a ordenação qualitativa dos fenómenos religiosos é, nessa época, o centro da disciplina histórica.

Nos finais do século XIX o modelo positivista vigente é posto em causa. À disciplina inglesa e francesa sobrepõe-se a alemã; isto é, a uma tradição cultural impregnada de empirismo e iluminismo e herdeira do programa que David Hume sintetizou tão bem na expressão “Estudo da Natureza Humana”, impõe-se a Religionswissenschaft, cuja componente vocabular Wissenschaft é claramente descendente da noção de ciência leibniziana e filha das Geisteswissenschaft, as “Ciências do Espírito” fundadas por Dilthey, em oposição aos modelos das Ciências da Natureza.

O confronto epistemológico então montado centrava-se no binómio explicar / compreender a religião. A estas formas de caracterizar a disciplina correspondem duas relações totalmente diferentes com as restantes ciências e com a própria concepção de ciência. No primeiro caso estamos perante a linha científica herdeira da tradição iluminista e positivista que tem como modelo as Ciências Naturais onde a explicação é o objectivo da construção do saber; No segundo caso, é a tradição científica alemã a marcar a forma de concepção da própria disciplina, possibilitando um espaço próprio para os fenómenos espirituais demarcados dos fenómenos naturais.

O modelo assente na explicação (Erklären) fundamenta-se em duas premissas face ao objecto de estudo:

  • - a religião, tomada como distinta do objecto da fé, é uma manifestação antropológica e histórica que pode, como qualquer fenómeno humano, ser analisada; A fé não é, nem pode ser, o objecto desta pesquisa porque a sua própria natureza a torna inacessível a uma pesquisa empírica;
  • - a religião, tal como qualquer outro fenómeno humano analisável empiricamente, possui uma estrutura própria; Desta forma, essa estrutura pode ser decomposta e reagrupada em grupos mais elementares – a esta forma de desvendar os fenómenos religiosos corresponde uma “verdade” que pode ser revelada ao ritmo da simplificação dos fenómenos em causa, ao ritmo da descoberta das suas formas elementares.

À Erklären opôs-se a Verstehen, a compreensão. Segundo uma célebre frase de Rudolf Otto, a religião começa por si mesma. É este o ponto de partida desta posição teórica: a autonomia absoluta da religião enquanto fenómeno. Isto é, existe uma experiência germinal, inicial, que está na base dos fenómenos espirituais e religiosos; esta experiência vale por si só, é a Erlebnis, a experiência vivida, fonte de onde brotaram todas as religiões positivas.

Participando inevitavelmente nesse longo devir do fenómeno religioso até ao momento presente, o cientista não pode explicar o fenómeno num quadro causal, mas sim compreender as suas características nesse longo processo, e as vivências respectivas. Desta aferição sobre o sentido da disciplina, a ciência resultante que se dedica ao estudo científico das religiões não tem como objecto ou finalidade a justificação da fé: enquanto objecto de estudo, a religião é tida como um fenómeno humano, como qualquer outra produção ou vivenciação cultural e mental, que não compreende nem a apologia, nem a refutação: qualquer fenómeno religioso é vivido e, como tal, é digno de todo o respeito que o investigador cientificamente formado deve dar a todos os seus objectos de estudo.

Posteriormente, criada a disciplina, desenvolveu-se em quase a totalidade do chamado mundo ocidental, de forma autónoma, o estudo científico das religiões, centrado ou na Antropologia, na História, na Sociologia ou na Linguística.

Os universos onde encontramos estes estudos variam desde faculdades e universidades públicas, até instituições idênticas pertencentes ou ligadas a grupos religiosos (aqui, o franco desenvolvimento encontra-se nos meios protestantes).

Em meados dos anos noventa, pela mão de Charles Marie-Ternes, foi lançado um centro de estudos transeuropeu com o fim de fazer face às necessidades actuais do estudo sistemático e consistente das religiões (tratem-se de fenómenos antigos, ou actuais). Esta instituição recebeu o nome EurAssoc – Association Europeéne pour l’Étude Scientifique des Réligions, e está sedeada em Bruxelas.

Em 1998 foi criado o CoGREE - Coordinating Group for Religious Education in Europe. Este grupo de reflexão reúne duas vezes por ano e já publicou obras essenciais no campo que aqui nos trás, nomeadamente o volume Committed to Europe's Future : Contributions from Education and Religious Education, editado por Peter Schreiner, Hans Spinder, Jeremy Taylor e Wim Westerman (Comenius-Institut, Munique, 2002.)

Especificamente sobre a reflexão do lugar e dos métodos sobre o ensino das religiões na escola, nos últimos anos surgiram várias publicações universitárias. Citemos apenas o International Journal of Education and Religion, dirigido por Chris Hermans, com o primeiro volume publicado em 2000, e o Teaching Theology & Religion, publicado pela conhecida casa editora Blackwell de Londres, dirigida por Raymond Williams. Muitas outras publicações têm editado números especiais sobre a temática, como a Propuesta Educativa da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, que no seu número 22, de Junho de 2000, se centra no dossier “Religión y educación”.

O que de essencial se deve reter deste longo fenómeno no tempo, que é o nascimento e a maturação de uma área científica autónoma é, em especial, a sua libertação dos constrangimentos religiosos, de fé, que sobre os seus investigadores poderiam recair.

Neste caso, o paralelo com as Ciências da Educação torna-se aliciante e rico em termos comparatistas. Não só esta disciplina também teve de optar entre o singular e o plural nos dois vocábulos que lhe dão nome (Ciência / Ciências da Educação), como teve de gerir a relação e a herança de um campo de saber muito próximo, a Pedagogia. Seguindo a ideia de Mazzoti para a Pedagogia (MAZZOTI 1996, p. 14.), aplicando-a à Ciência das Religiões, poderíamos tomar a Teologia como a condição reflexiva da prática. A grande diferença e problema nesta aparentemente idêntica comparação que se poderia fazer em volta da Pedagogia / Teologia e Ciências da Educação / Ciência das Religiões, é que, procurando-se um estatuto científico para a Pedagogia, parte-se da ideia base de que ela, a Pedagogia, seria, assim, uma ciência da prática educativa, a tal condição reflexiva da prática – ora, a Teologia nunca poderia ter tal papel e lugar em relação a uma Ciência das Religiões.

Mediante a caracterização anterior, duas reflexões nos parecem importantes:

  • a) A grande diferença face ao «estudo científico das religiões» radica no princípio de criação da própria disciplina. Se as Ciências da Educação se afirmaram enquanto herdeiras, pelo menos em parte e no sentido histórico, da Pedagogia, a necessidade do estudo científico das religiões entra, não poucas vezes, em ruptura clara e necessária com as tradições religiosas. Isto é, o carácter científico de uma disciplina que estude o fenómeno religioso existe na exacta medida em que não está ligada, epistemologicamente, a nenhum grupo religioso.

Passando ao plano do investigador, o Cientista das Religiões pode ser crente, mas isso não pode afectar a sua prática científica; a sua formação teológica pode enriquecer o seu pensamento, mas a sua produção científica deve afastar-se da Teologia. Ao invés, o Cientista da Educação não perde nada com a sua formação pedagógica, antes pelo contrário;

  • b) Noutro sentido, a Teologia articula-se, a nível da efectivação das crenças e dos cultos, com a fé. A teologia é, assim, um campo de criação de conhecimento, numa lógica e com um objecto muito próprio, mas ela não é necessariamente a condição reflexiva da prática. Tal papel é muito mais desempenhado, pelo menos no mundo católico, pela fé, nas suas várias dimensões, nomeadamente grandemente desenraizada de qualquer reflexão teológica, que pela Teologia.

Isto é, a Ciência das Religiões, o estudo científico das religiões, é um saber autónomo da própria fé que enquadra a vivência dos próprios investigadores.