PAULO MENDES PINTO - HERANÇAS ANTIGAS: O CAMINHO DO SEXO COM CRIANÇAS
Nesta semana, como em dezenas de semanas anteriores a esta, muito se tem falado sobre pedofilia. O caso Casa Pia tem por demais ocupado milhares de páginas dos nossos jornais e revistas, e centenas de horas de emissões radiofónicas e televisivas.

No entanto, e apesar de tanto se ter escrito e falado, quase nada se tem feito para compreender a base cultural do fenómeno. Quase sempre se tem reduzido a questão ao foro do psiquiátrico e do psicológico, apenas encontrando nesta prática sexual desviante matéria judicial.

Obviamente, para nós, a prática é altamente desviante e reprovável, mas para a compreender devemos ter em conta algumas heranças mentais e religiosas. Não se trata de desculpabilizar, nem sequer de aligeirar, mas sim de procurar dados profundos da nossa civilização que, como seria inevitável, fizemos por esquecer e por enterrar bem fundo.

O célebre caso Ballet Rose é apenas um último toque num universo em que a prostituição, em especial no século XIX, era exercida por menores. Em muitas casas da especialidade, das mais variadas capitais europeias, eram célebres os leilões da virgindade de jovens de muito tenra idade que, depois de leiloadas para a sua primeira vez, eram postas no trabalho rotineiro. A nossa expressão «meninas», ou a sinónima brasileira «rapariga», denotam bem a idade em que se praticava a prostituição: crianças ou jovens.

Mas as heranças são muito anteriores. Centram-se na prostituição sagrada que era dedicada aos deuses em muitos dos templos das religiões antigas da bacia do Mediterrâneo. Era frequente a entrega de jovens (de ambos os sexos) para a prostituição ritual. Apesar de legalmente banida, ainda hoje existe em algumas regiões da Índia, onde as devadássi (assim se chamam as prostitutas sagradas) são entregues pela família ao serviço das deusas.

Se essa prostituição está lá muito longe, nos dados que dificilmente recuperamos da memória colectiva, mais próximo de nós, porque era prática entre muitos dos filósofos gregos em que enraizamos a nossa cultura e civilização, está a prática da pederastia na Grécia e Roma antigas.

Sim, era como que uma instituição genericamente aceite a existência de relações sexuais entre um mestre e o seu discípulo ainda imberbe. Esta situação relativamente normal está profundamente atestada em literatura coeva e ricamente ilustrada em cerâmica também da época.

Mas ainda mais próximo de nós está a idade de casamento de muitos dos nossos monarcas. Os casamentos na ordem dos treze / quinze anos de idade foi prática nas nossas casas dinásticas (D. Afonso V é um dos casos de maior precocidade).

Claro que temos de equacionar o que se entendia por menoridade. Só a generalização das ideias relativas aos direitos da criança – no fundo, o inventar da infância – fez avançar o limite da maioridade. Por exemplo, um monarca podia reinar muito antes da idade com que actualmente se pode ser Presidente da República (35 anos, e não os 15 com que se subia ao trono ainda no século XVIII, isto é, mais do dobro!).

De facto, os meandros da herança antiga do sexo com crianças passou por uma valorização, essencialmente, de dois aspectos: 1) a pureza de uma idade ainda longe das formas adultas; 2) um dado fisiologicamente incontornável: o corpo pode gerar descendência (quer os rapazes, quer as raparigas) antes da idade actualmente considerada adulta.

Neste misto de simbolismo, que faz apelo ao ainda puro, ao ainda sexualmente inactivo, e de efectiva maturidade sexual, reside uma herança que agora nos é amarga de digerir.

Só o tempo cimentará esta nossa visão que, queiramos ou não, é relativamente nova.

Paulo Mendes Pinto
(paulopinto@mail.vis.fl.ul.pt)
Docente em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona


PORTUGAL - 2002/