PAULO MENDES PINTO


Por caminhos de significados antigos
As heranças pagãs do papado

Numa época em que tanto se fala sobre o facto de o actual Papa resignar, ou não, devemos equacionar o peso que tal função tem.

Será possível um Papa resignar? Obviamente, e num campo estritamente teórico, tratando-se o Vaticano de uma forma próxima de "monarquia absoluta", o Papa tem a possibilidade de fazer praticamente tudo o que lhe aprouver decretar. Mas, quais as bases mentais da função? Seria mesmo viável, a nível de estruturas de mentalidade, ter um Papa a resignar?

É necessário ir bem fundo na nossa formulação religiosa para perceber o que está na base, o que está por detrás, em que heranças o papado se fundamenta mentalmente.

A designação «papa» (vinda do grego) começou a ser usada no cristianismo por volta do século III. Nesta altura, era aplicada a todos os bispos num sentido de paternidade espiritual. Só no século VI se escrevem as primeiras obras teológicas a restringir a nomenclatura «papa» ao Bispo de Roma, e só no século VIII esse processo estará finalizado.

Ora, e é aqui que a análise comparada nos interessa, paralelamente, desde o século IV, quando o cristianismo se começa a tornar dominante no Império Romano, o Papa também passa a ser nomeado como Pontífice; mais propriamente, o Sumo Pontífice, em latim Pontifex Maximus .

Quem é este Sumo Pontífice na religião romana, no paganismo (como os cristãos designavam todos os cultos que não o cristão)?

É exactamente no século IV, quando o Papa passa a ter esta designação, que a função "pagã" com este mesmo nome é extinta.

Tal como hoje, tratava-se da mais importante função religiosa de Roma. O Pontifex Maximus era como que a junção num só homem de todos os princípios máximos dos valores e das condutas mais identitárias dos romanos.

O Sumo Pontífice dirigia todos os mais importantes colégios sacerdotais e, em especial, era o centro de toda a relação com o sagrado. O nome pontifex virá, em princípio, da junção de "ponte + facere" e era, desta forma, o responsável por fazer as pontes com o divino. Ele era o elo principal e fundamental da relação com o sagrado, tal como o seu descendente mais de dois mil anos depois. Só ele podia ilibar de determinadas condutas religiosa e civilmente consideradas negativas (alguns crimes de sangue, por exemplo), como só ele podia libertar presos ou escravos apenas com um toque.

Mas, mais que esta preponderância funcional, o Sumo Pontífice "pagão" era o responsável pela regulação do tempo e do calendário (tal como o calendário que hoje usamos foi implementado por um Papa); a função implicava ainda a gestão da lista de divindades que deviam e podiam ser cultuadas na cidade (tal como o Vaticano actualmente gere a lista de beatos e santos de altar); o Sumo Pontífice era ainda o responsável pelas fórmulas religiosas, orações, preces e rituais, que se diziam em Roma (tal como agora em que os textos rituais católicos passam pelo mesmo crivo de validade).

Para além disto, o Pontifex Maximus detinha uma lei própria, a ius pontificium , que era um paralelo à própria lei civil da cidade, que era compilada e tinha uma validade plena - um Direito Canónico.

Por fim, e apenas para salpicar a descrição, o Pontifex Maximus vestia-se de branco imaculado e transportava normalmente consigo um báculo ...

Muito do nosso inconsciente colectivo reside nestes dados com milénios de consolidação a nível das imagens que temos daquilo a que damos mais valor. A herança de mais de dois milhares de anos de uma função não a deixa simplesmente no campo do humano. Imaginemos o peso que tem nos ombros quem veste esta pele? Será que esse peso deixa imaginar, sequer, a figura da resignação?

Paulo Mendes Pinto

 

( paulopinto@mail.vis.fl.ul.pt )
Docente em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona