Paralaxe da lua morena

NELSON DE PAULA


Antes da música de fundo, os letreiros aramaicos decoram a parede, dando oportunidade ao pai de santo de exercer sua arte.

Nzinga* que usa sua acompanhante como assento, para impressionar o homem branco, parece mesmo uma referência surreal.

A composição da cena pode ter toques eróticos e referências de catálogo, tais como os bigodes molhados do intendente lusitano.

Mas, o que é mais impressionante, ainda, é ela abandonar a vassala, ainda na mesma posição de quatro, com o argumento de que não vai sentar de novo no mesmo banco, já tem muitos outros.

Provavelmente a pobre coitada lá ficou por uns bons pares de dia, até que os senhorios arrumaram alguma outra boa ocupação para ela e, talvez, para a postura de apoios.

Duas baforadas no cachimbo e estamos lendo um livro de receitas, dos mais tradicionais da culinária brasileira.

Uma das mais promissoras páginas é o modo de preparo do suculento bispo, muito bem temperado, para depois arder em fogo brando no moquém.

Não há referência ao êxtase masturbatório das fêmeas adultas. Nem mesmo é citada a deliciosa sopa das partes repartida entre as velhas e as crianças.

Mas, o fato de estar lá, no tão puro livro de delícias caseiras, é, no mínimo intrigante.

Unidas pelo mesmo colonizador, tais culturas, negra e vermelha, adquirem um peso atemporal e consanguíneo.

Portais dimensionais entreabertos, dão passe livre a todo tipo de entidade, inclusive os íncubos estimuladores da criação, montados em poderosos cavalos árabes, não castrados, para conservar o ímpeto.

Aí vem o conceito de cabresto.

Esta ferramenta foi pródiga na missão de manter na rota, reduzir velocidade e estancar justamente a força do ímpeto.

Nada mais impróprio para os sonhos.

É o que transforma o tacape ritual do morubixaba*, irmão visceral das zarabatanas entorpecentes dos gigantes de ébano das savanas.

Brinca Tarzan*, quando os chama de pigmeus. Traído pelo subconsciente inglês, prefere reduzir à quase nada os monumentais guerreiros.

As más línguas diriam que o lorde estava muito mais interessado nos mastros, do que nas setas.

Mero detalhe – mas, muito bem referendado na roda do terreiro de aruanda, quando o saci* pego na peneira, para felicidade geral das damas de honra, parece ter duas pernas.

Não remete este estudo aos porões dos navios negreiros, já que o mesmo ente acorrentado, submeteria pelos cabelos diversas sinhás.

Mas, desses porões, sai o cantochão do banzo*, a saudade que mata.

Estranho, como esse sentimento maltratou o opressor.

O sentimento do fundo da alma, foi como uma peste – trucidou os corações gelados dos mercadores, incapazes de sentir tais emoções.

Condenados a ser meros espectadores, não perceberam que haviam visitado as mesmas florestas, sem nunca ter percebido o dinamismo vital que delas emanava.

Da mesma foram, possuíram milhares de negras e índias, sem desfrutar dos humores portentosos de suas entranhas.

Felizes dos que beberam do sumo certo e participaram do vodu constituinte, que gerou sonhos miscigenados, articulados entre os urros dos gorilas e os mórbidos cheiros das catacumbas da inquisição.

Deus e o Diabo sempre conviveram na terra prometida. Mais do que isso, foram cúmplices em cada transe.

A edificação de um novo céu, composto de estrelas aleatórias, que mudam a sua configuração a cada intervalo entre sonho e vigília, faz com que o pai de santo também altere seu status de mediador, para patrocinador.

Pela sua arte, as forças do zodíaco instauram a escada para a hiperconsciência, cósmica – mas não cosmológica.

Não é à toa que se dá a este fenômeno o nome de incorporação*, já que se trata de dar corpo ao ente de outra dimensão.

Em outros termos, de atribuir consistência ao sonhável.

O bom xamã* não pode se limitar ao sonho já tido, deve ir muito além, sonhando o que não foi sonhado.

Então, transforma o real.

Dá forma ao até então intangível.

Não devemos nos esquecer que pisamos o solo sagrado do terreiro*, onde mãe África fincou os seus tentáculos e onde os índios devolutos urinaram sangue, para marcar o território.

É lá que os atabaques* chamam os mortos e todos os outros duendes e elementais.

A música é o encantamento. Pouco ou quase nada se fala da música surreal.

Nada a ver com o dodecafonismo ou com o experimentalismo vanguardista, embora neles presente.

Estamos ouvindo o lamento primordial, a evocação soberana dos senhores do sol e dos rios.

A cada gemido, uma sombra.

Talvez apenas o pé descalço do caçador de cabeças. Ou a máscara ritual recém roubada do altar asteca.

Ou curupira*. Ou a mula sem cabeça*.

Soltando fogo pelas ventas.

Permite-se, neste momento, o poeta sonhar que pode montar a fera e voar com ela até os anéis de saturno.

E lá encontrar os amuletos dos seus babalaôs*.

Falamos de instaurar mundos, de usar sonhabilis*, a matéria prima dos sonhos, para construir castelos, onde todos são príncipes e princesas, portanto, sem vassalos.

Tal qual o incrível espetáculo promovido por Xica da Silva*, filha de Iansã*, colocando o senhor contratador literalmente aos seus pés, para deslumbre e pavor das cortes.

Puro teatro do absurdo, teatro vivo, assumindo todos os riscos, inclusive o do próprio pescoço.

Interferência no ciclo dialético, alterando os rumos das forças sociais, política racial pura.

É óbvio que é possível remeter atualmente aos guetos, ao fundo úmido das prisões abarrotadas do Brasil, onde a boneca tenta exercer o poder de sua sexualidade, fêmea exótica para bel prazer dos suados companheiros.

Tem o seu charme. Que o diga a Rainha Diaba*, passando a navalha na cara assustada de seus desafetos.

O sacrifício da libélula não parece uma boa fórmula surrealista. Há espaço no surrealismo para o pesadelo?

Muito distante do virginal espírito onírico original, mas persistente e repetitivo, como um sonho manipulado até descolar de sua plataforma, ganhando proporções de hiper-realidade.

Mas, curiosamente, triunfante. Tal qual a festa de Dionísio, não como acontece no grande carnaval das telas de televisão, mas das quebradas, das partes de trás dos barracões, onde a dança evoca fertilidade.

Maravilhosos humores dos ajuntamentos mestiços, bodum de sovaco e vaginas molhadas de urina. Improvável berço dos  anjos, pouco iluminados só pela luz da lua.

Paralaxe morena, da rosa morena devidamente desfolhada por dedos ávidos e hábeis, mediunicamente guiados pelos veneráveis mestres iorubás*, criadores de máscaras e venenos.

Sem finalidades mortuárias, embora nitidamente com características de passagem: permissão para o personagem incorporar, com todos os seus desejos e capacidade de influência.

Cabe ao pensamento exercer sua total liberdade de usar a tenaz para arrebentar o ferrolho que ainda fere todas as Anastácias*, trucidadas pelos maus tratos dos opressores.

A revolução é acreditar em Anastácia com a boca livre, para decepar o membro do seu senhor e devorá-lo gulosamente, entre orgasmos múltiplos, até que o chacoalhar dos quadris faz crescer asas e a deusa levanta voo, molhando toda a relva com seus espirros mágicos.

 

Notas de Referências:

Nzinga: rainha negra de Angola, que enfrentou os portugueses

Morubixaba: chefe temporal de uma tribo

Tarzan: personagem de livros de Edgar Rice Burroughs, menino branco criado pela macaca Kala

Saci: entidade mitológica com uma perna só, que fuma cachimbo e só pode ser aprisionada nas rodas de vento

Banzo: saudade mórbida da pátria mãe, que acometia os negros escravizados

Incorporação: fenômeno do espírito “descer” em um corpo, utilizando-o para atuar neste plano físico

Xamã: feiticeiro que domina as técnicas de alterar os estados da consciência

Terreiro: local sagrado onde se desenvolvem as práticas religiosas da umbanda, candomblé e quimbanda

Atabaques: tambores usados em atividades religiosas

Curupira: ente fantástico, que tem os calcanhares voltados para frente e preside os maus sonhos

Mula Sem Cabeça: ser maligno, resultado do castigo de mulher que teve relações sexuais com um padre

Babalaô: o dono do altar, aquele que conhece os segredos do ifá

Sonhabilis: fluido visceral da alma que ao encontrar os neurônios produz os sonhos

Xica da Silva: escrava que aprisionou o coração do contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira

Iansã: orixá sincretizada com Santa Bárbara, as filhas de Iansã tem temperamento muito forte

Rainha Diaba: lendário traficante brasileiro, personagem principal de famoso filme homônimo

Iorubás: tribo africana, da Nigéria

Anastácia: princesa africana escravizada e martirizada com o uso de máscara no rosto por toda a vida, até morrer de grangrena

Trabalho inédito, gentilmente cedido por Alfonso Penã, dir. da revista Materika, em:
http://www.revistamaterika.com/es_materika/home.html


NELSON DE PAULA (Brasil, São Paulo, 1950) Poeta, ensayista, cuentista y artista visual. En su obra integral pretende ser un traficante de sueños, y atravesar las fronteras de las dimensiones, con lo “ilegal” debajo del brazo. Ha publicado alrededor de 40 libros de poesía y arte visual. Entre otros destacamos: O Plasma, Vozes do Aquém, Projeto para uma Revolução Fundamentalista, A Hóstia de Isis, Sete pulos na encruzilhada. Como artista plástico, participó en Bienales, expos individuales y colectivas en Brasil y el resto del mundo. Fue miembro del Grupo Surrealista de São Paulo. Participó en la expo surrealista Las llaves del deseo, Costa Rica, Cartago, 2016. Colaborador de la revista Matérika.  Reside en São Paulo.