Para uma leitura de «Cadáveres às Costas», de Miguel Real

CARLA LUÍS
Universidade da Beira Interior, LabCom.IFP, ALLC, IFP


Dado à estampa em março de 2018, Cadáveres às Costas, o mais recente Romance Histórico de Miguel Real, publicado pela editora Dom Quixote, prende o leitor do início ao fim da história. Tirando uma “radiografia” ao edifício ósseo do País e registando, num longo e divertido relatório de 492 páginas (distribuídas por oito tópicos, seis aparições e dois epílogos), os males de que padece, onde pontificam, como é apanágio das suas obras, contextos históricos e traços típicos da mentalidade portuguesa, imprescindíveis à inteligibilidade do diagnóstico, Miguel Real isola o problema crónico de Portugal: a dificuldade em cicatrizar as feridas do passado. Condenado a viver com tantas maleitas, lá se vai arrastando com a ajuda de alguns analgésicos que, embora não curando, procuram disfarçar o sofrimento.

Conjugando exemplarmente duas insignes figuras da literatura universal, Gil Vicente e William Shakespeare, esta obra encontra um apreciável equilíbrio entre o humorístico e o sério. Por um lado, em jeito do “ridendo castigat mores” vicentino, Miguel Real esboça algumas personagens tipo, ou típicas, que se alastram na sociedade contemporânea, criticando, por seu interposto, certos vícios da mesma; por outro lado, ao sabor da obra prima de William Shakespeare, King Lear, o autor em apreço aborda tópicos dignos de uma reflexão mais filosófica, posto que somos colocados quer diante de conceitos como o poder, a família, a educação, quer de outros que entram mais na esfera do ser, da natureza humana, da condição humana, por assim dizer (o envelhecimento, a depressão, a morte…). Destacamos ainda neste apartado as virtudes e os defeitos do ser humano que habitam as sociedades modernas (a fidelidade, a paixão, a indecisão, os vícios, a mentira, a avareza, o oportunismo, a ignorância, a inveja, a traição, a luxúria, etc.), tão bem captados e plasmados nas personagens selecionadas para as duas histórias paralelas que, a dada altura, se cruzam. Tudo isto enquadrado numa moldura histórico-cultural altamente relevante para o nosso autoconhecimento e plasmado numa linguagem extremamente rica, sendo que, ao sabor queirosiano, somos presenteados com uma vetusta descrição de ambientes, de indumentárias, de objetos, de rostos, etc., que se alastra a todo o romance.

E passamos, sem mais delongas, a concretizar a leitura acima debuxada, mas não sem antes recordarmos que esta breve apresentação de Cadáveres às Costas constitui apenas e tão somente uma proposta de leitura. Não se pretende, nem tal seria possível, esgotar o incrível manancial de tópicos dignos de destaque e de uma atenção mais apurada. Com efeito, é nossa intenção, por via das parcas notas delineadas nas páginas que se seguem, trazermos à colação algumas ideias, que estarão, por certo, circunscritas aos nossos universos de referência e gostos pessoais.

Convicto de que o povo português, por razões históricas, que remontam a mitos, providencialismos, messianismos seculares, espécie de húmus da nossa cultura, é um povo de “espiritualidade lírica, amorosa, comunitária, disponível para a crença em milagres” (Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa, Lisboa, Planeta, 2017, p. 100), Miguel Real toma como mote para a história deste romance o tema das aparições de Fátima. A miraculada é, desta feita, a matriarca D. Consolação, o mais antigo membro da família Peralta Perestrêllo, já centenária (p. 24), que, cem anos depois da “primeira aparição de nossa senhora na Cova da Iria” (p. 24), concretamente no dia 13 de maio de 2017, vislumbra a imagem da irmã Lúcia no seu quarto, que lhe transmite uma mensagem secreta. Após esta visita, e apesar de há muito acamada, consegue erguer-se e dar uns passinhos (p. 43), facto que surpreende todos à sua volta. E instala-se a dúvida sobre o sucedido: será milagre ou não? Ou tal facto encontra explicação na ciência? Quiçá pela voz do Neurologista? (pp. 140 e 141).

Sem surpresa, na presente história, não se trata nem da reforma antecipada de um governante, nem da divisão do reino em três partes, mas sim da forma como as pessoas que rodeiam a matriarca, não só familiares, como também certos membros da igreja, procuram tirar dividendos do suposto milagre ocorrido. Por outras palavras, neste caso concreto, o poder consiste não tanto no pecúlio a herdar, mas está mais focado no milagre propriamente dito e nas diferentes formas de se fazer uso deste acontecimento. Com efeito, os três netos de D. Consolação, filhos da artificial Mafalda (“pestanas postiças”, “montra de outro e prata no corpo”, p. 43) e do delirante “classista” Bartolomeu (p. 53), os dois mais velhos, Martim, interesseiro e balofo morgado, Barão e deputado (pp. 44 e 45), Constança, a “jornalista metediça” (p. 44) e presunçosa, e a mais nova, a indecisa, Sancha, fruto dos novos tempos, ora artista plástica (pintura, olaria, p. 103), ora “vegetariana”, ora carnívora”, ora “budista” (p. 103), “não era nada, nada fazia na vida e pouco interesse manifestava sobre o que fosse” (p. 103), recordam-nos, de alguma forma, as três filhas de King Lear, de William Shakespeare, Regan, Goneril e Cordélia. Os dois mais velhos, em ambas as histórias, tentam imediatamente aproveitar-se da situação (embora Regan e Goneril sejam muito mais pérfidas); ao passo que as mais novas, envoltas no vocábulo “nada”, que é tudo, são mais autênticas, transparentes e verdadeiramente conectadas aos seus ascendentes, Rei Lear (mesmo depois de expulsa do reino, Cordélia perdoa o pai e ampara-o na velhice e na loucura) e avó Consolação (é a neta Sancha, a “neófita”, p. 403, que a acompanha e, a certa altura, trata dela, considerando-se a herdeira do segredo), respetivamente.

Enfim, descontando a mais nova, Constança e Martim, como já se disse, pensam logo em tirar partido da situação. A primeira seria pela notícia privilegiada que, na qualidade de jornalista, escreveria para um jornal sensacionalista (p. 46); o segundo, pelo aproveitamento político que, porventura, lhe traria acrescento de popularidade (p. 46), futurando inclusive o slogan perfeito: “o deputado da igreja” (p. 46). Note-se que nenhum deles acredita no sucedido. Martim defendia inclusivamente “um cristianismo moral como instaurador das regras sociais de convívio, não um cristianismo supersticioso, carregado de milagres em velhinhas centenárias” (p. 47). Apesar de Sancha, o rosto do “bem” (p. 369), mostrar-se inicialmente confusa (p. 104), decidindo não acreditar em nada, entretanto, evolui o seu pensamento e passa “a acreditar com algum entusiasmo arrebatado, até obstinado nas aparições de Lúcia e nas visões da avó” (p. 403), autoconvencendo-se inclusivamente de que “após a morte da avó, caberia a ela um papel preponderante na mensagem revelada por Lúcia” (p. 403); seria, portanto, a sua “continuadora” (p. 403). Vagueando entre vários “eus”, encontra agora um sentido para a sua existência. Como é sabido, os reformistas ingleses do século XVI, que terão influenciado Shakespeare, apreciavam a clareza com base na figura de Jesus Cristo, identificando-a com as qualidades de essência, sinceridade e genuinidade. Por conseguinte, valorizavam uma retórica que primasse pela transparência, que privilegiasse o sentimento, a verdade, a autenticidade, predicados curiosamente aplicáveis, de algum modo, a Cordélia e a Sancha (note-se que esta última considera o comportamento de Constança “indecente”, p. 46, rasgando duas páginas escritas pela irmã); isto em detrimento da retórica balofa, da artimanha, da trapaça, da teatralidade, caraterísticas dos irmãos de ambas, que pensam de uma forma, mas ludibriam o próximo com falas repenicadas de falsidades.

Não podemos, de igual modo, deixar de fazer notar que os reformistas criticavam severamente o clero da Igreja Católica, acusando os seus membros de manipular os fieis através da prática de um teatro fraudulento, induzindo-os em crenças falsas. Na obra em análise, as figuras do guloso (antevendo o belo doce amarelo-gema-de-ovo que iria saborear, p. 58) Cónego Formigão, já nosso conhecido d’A Voz da Terra, (4.ª ed., Alfragide, D. Quixote, 2012 [1.ª ed., Matosinhos, Quidnovi, 2005], p. 76), e do Bispo Passarinho corporizam os defeitos acima descritos, sendo que ambos procuram tirar partido do alegado milagre operado. O primeiro, “interesseiro, mas não supersticioso” (p. 77), mesmo duvidando do milagre, não hesita em tirar dividendos desta situação, carregando, a curto trecho, “dois cheques volumosos na carteira, ia mudando de opinião sobre a veracidade da aparição” (p. 110); o segundo, teatral, profere “uma frase de estalo registada em foto-vídeo” que, mais tarde, seria “vendida em exclusividade ao mais importante seminário português” (p. 370). A dada altura, de olhos postos no potencial do acontecimento em causa, este último, aconselhado pelo cónego Formigão, sublinha inclusive “a nova matriz de espiritualidade obrada pelo milagre sucedido” (p. 111). Com o avançar da história, ambos, com a ajuda de Martim, contribuem para transformar o Parque Eduardo VII no Santuário de Lisboa, que viria a ser o “Santuário da Humildade” (p. 481). Portanto, assistimos, não inocentemente, à união de facto entre poder religioso e poder político, “religião e política de mãos dadas” (p. 481), ironicamente, sintetizada na designação da conferência de imprensa: “Humildade” (p. 481). Entramos, por conseguinte, no imaginário deste, e de outros cenários, pela força da palavra, pela riqueza da expressão, que Miguel Real nos oferece. Neste caso concreto, bastava a descrição das vestes de ambos para mergulharmos imediatamente no ambiente teatral, que denuncia o aparato montado, senão vejamos: “o bispo Passarinho, sua reverência, vestia profanamente, fato escuro, camisa roxa, cabeção creme, a seu lado Martim, trajado do uniforme de deputado, corpo de gordura flácida, um barril de carne, porém oco, refegos a brotarem sob a camisa azul monogramada, gravata verde, nó volumoso, jaquetão azul” (p. 481).

Ainda de olhos postos na igreja reformista que agitou profundamente a sociedade britânica do século XVI, com reflexos óbvios na obra de Shakespeare, e, ao que parece, também neste romance de Miguel Real que agora se apresenta, recordamos que condenava as imagens, as indumentárias, os rituais, as cerimónias e os espetáculos da Igreja Católica Romana, considerando-os teatrais e vazios de sentido. Além do trecho acima transcrito, mais focado na indumentária, refira-se que temos, de igual modo, eco dos outros tópicos. Salientamos, meramente a título de exemplo, a voz do jovem “ateu” (p. 48), que se ergue perante “a decoração de falso luxo da capela mortuária” (p. 38), considerando-a “um perfeito cenário kitsch pós-moderno a espelhar a decadência da igreja e a degradação da morte” (p. 38), audível aquando do padecimento de seu pai. Também destacamos a opinião das duas criadas velhas de D. Consolação, vestidas de preto, quase que a mimetizar a figura dos abutres à espera da morte que, entretanto, se vai adiando. Note-se que ambas: “desconfiam das altas rodas da igreja, tão coladas aos grandes como ao poder, uma cúria de homens trajada medievalmente, ridícula nos seus panejamentos, disfarçada de rigor eclesiástico, esquecida da bondade evangélica, habituada ao luxo, à sumptuosidade e à hipocrisia. A memória das células do corpo das duas velhas recorda-lhes grilhões, cativeiros, fogueiras, as celas de conversão nas Marinhas” (pp. 20-21). Pela sugestiva expressão “memória das células”, facilmente se infere o ressentimento de ambas perante a mão pesada do Santo Ofício que haveria de ter fustigado os seus ascendentes. Deixamos ainda mais um apontamento em torno da doutrina da transubstanciação. Defendida pela Igreja Católica Romana e refutada pelos reformistas, é abordada na obra em análise aquando da comunhão espiritual que Lúcia dera a D. Consolação (p. 46) e que encheu de aroma a flor de laranjeira o seu quarto.

Enfim, perante a metáfora das aparições, mote inaugural do presente romance, e pelas achegas de Miguel Real voltadas para a forma como a religião tem sido conduzida, ao longo dos tempos, por alguns responsáveis, mormente das mais altas esferas do poder, parece-nos legitimo afirmar que, não se colocando em causa a fé genuína, despida de interesses, certas interpretações demasiado severas em torno da religião, neste caso a católica, impostas aos seguidores (ameaçados com as penas infernais), que desembocam quer em ancestrais práticas austeras, rígidas cerimónias desusadas, hierarquias invioláveis, certos abusos de poder, perseguições, onde naturalmente pontifica o monstro da Inquisição (tratado em várias obras), têm contribuído para as tais amarras que nos prendem ao passado e que, de algum modo, dificultam a evolução do pensamento.

Sem surpresa, a par da história da aparição acima mencionada surge uma outra que nela se vai entroncar, neste particular, a de um jovem universitário, de 20 anos (p. 415), que,  com o intuito de se isolar para escrever um romance histórico, coloca em suspenso o indesejável curso de Direito, e a indesejável “sala mortuária do pensamento” (p. 84), que seu pai, antropólogo brilhante (p. 39), o obrigava a frequentar e arrenda uma assoalhada do sótão do solar (estilo francês e pombalino) daquela família, de onde vê, em jeito garrettiano, “«uma nesguita do Tejo», oblíqua à cabeleira da estátua do Marquês de Pombal” (p. 40). Como se percebeu, o seu pai, era professor universitário, de renome internacional, contudo, sempre ausente, algures entre uma viagem e um congresso, um artigo e um livro. A fazer lembrar o Feitiço da Índia (Lisboa, D. Quixote, 2012), e o terceiro beijo que o narrador nunca recebeu do seu pai, também aqui se regista a ausência de um “último beijo” (p. 38), físico, “face a face” (p. 38), desta feita, de derradeira despedida, antes da morte prematura do seu progenitor, causada pelo acidente de viação havido. Quiçá possamos, lendo nas entrelinhas, identificar um problema grave de que a sociedade contemporânea tem vindo a padecer: a ausência de tempo para a família. Isto é, com as exacerbadas exigências das carreiras profissionais, os pais, muitas vezes reféns do trabalho interminável e inadiável, acabam por dedicar menos tempo aos seus filhos (e restantes membros da família) do que gostariam. Tal ausência produz reflexos nocivos na formação da personalidade dos jovens, que crescem algo desamparados, com referências intermitentes, por vezes, órfãos de pais vivos. Outro tanto se poderia dizer dos idosos que são, muitas vezes, depositados em lares ou abandonados à sua sorte.

Mas retomando o novelo da história, note-se, todavia, que, apesar de doloroso, o padecimento do pai foi uma espécie de “grito do Ipiranga” (p. 39), posto que o narrador desta história abandonou, de imediato, o curso de Direito para se dedicar às Letras. Sentindo-se tentado a enveredar pelo romance histórico, congregava na sua biblioteca pessoal as seguintes referências literárias: Marguerite Yourcenar, Catherine Clément, Fernando Campos, João Aguiar, Sérgio Luís de Carvalho, Henequim, Paulo Moreiras, Mário de Carvalho, Norberto Morais, João Paulo Oliveira e Costa, Deana Barroqueiro, João Morgado (pp. 31-32).

Mas foi Bartolomeu Peralta Perestêllo, de “ascendência grosseira” (p. 27), pois descendente de um comerciante de escravos na Bahia (foi este burguês Peralta, seu pentavó, que adquiriu a propriedade, p. 30), companheiro do Franciso Félix de Sousa, d’ O Último Negreiro (2.ª ed., Lisboa, Quidnovi, 2007 [1.ª ed., Quidnovi, 2006]), que, invocando Fernão Lopes e Rui de Pina, o incentivou a tornar-se cronista da família e do solar-palacete (edifício e família, p. 31). Entusiasmado, vai, doravante, saltando de tema em tema, na certeza, porém, de que redigiria um romance histórico (p. 31). Ora vai escrever sobre a História do palacete: “um paço tornado solar, um solar tornado palacete, e duas famílias, uma aristocrata de pura raça, vertida decadente do século XVIII (os Miragaia, o Andaluzito), outra burguesa e comerciante, ascendente, de origem plebeia e escravocrata (os Peralta), ambas síntese da história de Portugal de d. Dinis à atualidade” (p. 32). Ora parte para a História de Lisboa, de como chegou aqui: uma cidade turística e cosmopolita. O fim do império e a integração europeia haviam transmudado “Lisboa numa cidade multicultural, relativista nos valores, hedonista no culto da juventude” (p. 32), etc. Ora seria pertinente escrever sobre a igreja, aplicando as ideias de seu pai, discorreria sobre “a necessidade de religião até à Revolução Industrial, quando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia tinham tornado o homem dono e senhor da natureza, substituto de um deus criador e regenerador do universo” (p. 47). Denunciaria “as intrigas pontifícias, as invejas na cúria romana, a pedofilia nos seminários, a especulação no banco do Vaticano” (p. 48). Ou então iria “unir a historiografia da família do Barão de Penha Curta e da sua casa apalaçada à proeminente escrita sobre a história de Lisboa e à história fabulosa da criação de uma identidade mítica de Portugal” (p. 61). Entretanto, “meu deus, tinha ali autênticos filões literários, a história do Andaluzito, a história do negreiro Faustino, não a vida mas a história das representações imagéticas ou míticas de Viriato, a história de Lisboa cruzada com a história do solar-palacete dos Peralta, a história da Guerra Colonial registada no diário do pai de Contente Portugal, tinha o meu pai e a minha mãe, comunistas falidos, o pai torturado, personagens fortes, redondas, com se dizia na gíria literária” (p. 124). Mas ainda não é bem isto. Pensa então escrever sobre a Guiné e a guerra colonial que favoreceriam a escrita (p. 455). Além disso, viajando para este local, teria pouca concorrência e, caso existisse alguma, seria em crioulo. Tanto se entusiasma que chega a afirmar: “Sonhei que talvez no futuro me viessem a chamar o grande escritor da lusofonia” (p. 415). Até que finalmente arriba ao tema do “dia 13 de Outubro de 2017 e o milagre no céu, que engenheiros e cientistas explicavam na televisão por via da criação de placas ionizadas na atmosfera provocadas pelo raio que ligara as duas caudas dos aviões” (p. 455). Na realidade, o seu desejo mais profundo assentaria no “cruzamento entre as aparições de nossa senhora do Rosário a Lúcia em 1917 e as aparições de Lúcia a d. Consolação em 2017, mas como fazê-lo, como escrevê-lo, que ponto central da narrativa devo eleger, em torno de personagens ou em torno de situações, em torno de vivências individuais ou de ambientes sociais, escolher como linha dorsal o sexo e a violência (Lourenço Perestrêllo), ou o misticismo de Lúcia há um século e o delírio actual de d. Consolação, provocados por um país suspenso no tempo, o tempo mítico de Salazar e o tempo europeu da democracia, ambos insatisfatórios para a autêntica realização de Portugal” (pp. 453-454). De tão revelador, este último trecho dispensa comentários.

Depois de tantas hesitações, está consciente de dispor de uma “mera escrita de um jovem que ousava dar um passo maior do que o pé” (p. 454). Sente, portanto, que quase tudo o que havia redigido, páginas dispersas, sem fio condutor, algumas de parca qualidade estética, não estavam capazes de ser submetidas à avaliação do critico literário de seu nome, por graça, Luís Martins (p. 163), como Sancha lhe sugerira a dada altura, com o intuito de o incentivar.

Através da interminável indecisão deste jovem narrador, aquando da escolha do tema para o seu iniciático romance, Miguel Real proporciona-nos uma viagem fértil em paragens relevantes para a identidade portuguesa, evocando, entre outras, imensas figuras de renome (D. Dinis, Salazar, Marquês de Pombal…), suas relações com a história das personagens, seus reflexos na cultura do país, bem como personagens e palcos lusófonos, de onde destacamos, a título de exemplo, o embalsamador português-guineense-cabo-verdiano (espécie de simbiose lusófona, p. 89), o último negreiro, Francisco Félix de Sousa, e os territórios Guiné, Índia (Goa), Angola, Brasil, Cabo-Verde (Tarrafal), etc. Além disso, descortinando-se algumas pistas em torno do árduo processo da escrita criativa, temos também eco de certas faces da sociedade contemporânea dignas de realce, que vão desde a justiça, que não funciona convenientemente; à organização social, com seculares resquícios feudais (“classes baixas”, p. 466); às profissões que mudam de nome, mas não o seu âmago, mantendo os mesmos privilégios (“nobres como ele, mas de recente ascendência, como hoje os ministros novos-ricos”, p. 29); ao esvaziamento da relevância de certas profissões, como é o caso da de professor; à repetição dos vícios do passado, de onde se destacam a inveja, “nascida do eterno desnível social” (p. 28), e o ciúme (pp. 28 e 29); até à adulação dos novos heróis (p. 416) dos dias de hoje e ao olvido dos antigos (p. 417), mormente pelos jovens. Este último tópico, leva-nos à questão do desconhecimento das gerações mais novas de alguns marcos históricos vitais para o nosso autoconhecimento como povo, tornando-se, por conseguinte, uma geração algo amnésica. Aspeto, de resto, reportado por vários especialistas, de onde salientamos, por exemplo, o historiador Hobsbawm que, a este respeito, diz o seguinte: “a destruição do passado –, ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam a nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenómenos mais característicos […] do final do século XX [inícios do segundo milénio]. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo (Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos. História Breve do Século XX (1914-1991), 4.ª ed., trad. Marcos Santarrita, Lisboa, Editorial Presença, 2008, p. 15, acrescento nosso).

Em suma, perante o que até aqui foi exposto, não é de modo algum despiciendo afirmar que, através do olhar humilde, mas informado, do jovem aspirante a escritor, Miguel Real traz à colação, alguns elementos básicos da mentalidade portuguesa, apresentando-nos “uma radiografia satírica de Portugal” (Miguel Real, disponível em Wook https://www.wook.pt/livro/cadaveres-as-costas-miguel-real/21502223, acedido a 1-4-2018).

Quanto aos epílogos, cumprindo a sua função reveladora, o segundo desvela o teor do segredo transmitido por Lúcia. Afigurando-se a necessidade de renovação da igreja, colocar-se-á, doravante, a tónica em África, posto que o novo papa africano “de origem portuguesa”, um papa lusófono, portanto, haveria de deslocar o centro do catolicismo para este continente (p. 492). Futurava-se ainda o declínio do Vaticano que, neste cenário, seria uma “filial, uma espécie de museu luxuoso do passado da igreja” (p. 492). O primeiro, em jeito de prolepse, dá-nos, desde logo, conta do desfecho da história, da decisão de abandonar o país tomada por esta espécie de “vencido da vida” (pessoalmente, sexualmente e profissionalmente). A fazer lembrar o “pobre de mim” de Fernão Mendes Pinto, não por ter sido por treze vezes cativo e vendido, mas por outro tipo de amarras,  o narrador desta história, proferindo exatamente as expressões “coitado de mim”, “pobre de mim” (p. 15), informa-nos, desde logo, da sua frustração, do seu sentimento de incompletude, posto que perdera tudo: pai, mãe (p. 484), namorada, bem como o tão desejado romance que nunca conseguiu concluir e, por conseguinte, o panteão dos escritores medianos que nunca conseguiu alcançar. O romance principia exatamente com o local que lhe vai propiciar a fuga: a Agência de Viagens Abreu (p. 13), onde o jovem adquire a passagem para Paris. Fugia, no fundo, dos cadáveres que Portugal lhe havia colocado às costas, quer decorrentes da sua história pessoal quer da História de Portugal; ambas mal resolvidas, pululadas de desgraças e de irrealizações.

Por diferentes motivos, a emigração continua a constituir uma solução para o povo português. Não são agora somente os intelectuais incompreendidos e desiludidos que abandonam o país, nem só os adultos à procura de melhores condições de vida para sustentar a família, mas também os jovens que não se conseguem realizar, que não conseguem alcançar o sucesso, ou por insegurança, ou por falta de talento, de paciência, ou porque não foram bafejados pela sorte, ou ainda, e mais grave, porque não encontram uma situação profissional satisfatória, condizente com a formação académica concretizada: a solução, nestes casos, é partir para outras paragens, onde os seus talentos sejam reconhecidos e recompensados monetariamente. De facto, diagnostica-se nas camadas mais jovens alguma desmotivação, apatia, bastas vezes, deveras justificada, perante a realidade que enfrentam: viver num país que já foi grande, mas que atualmente não serve, posto que não acolhe os seus jovens. No caso concreto do nosso narrador, apesar de, do ponto de vista material, possuir todas as condições, livros, informação, dinheiro (herdado, p. 484), amor, acaba por se sentir incapaz de concretizar o seu sonho. Note-se que, nesta história, o personagem Alexandre chegou mesmo a reunir vários dossiês com informação preciosa, de onde se destaca o completíssimo compêndio sobre Fátima, mas, mesmo assim, o “candidato a escritor” (p. 31) não foi capaz de transformar o discurso historiográfico de Alexandre (p. 453) num discurso ficcional com alguma qualidade estética, ou por falta de talento ou por humildade, perante a história gigantesca de Portugal que lhe dificulta a escolha e lhe abafa a palavra. Quanto à sua amada Sancha, esta personifica a indecisão, demonstrando ademais uma “ignorância histórica” (p. 417) confrangedora. Amnésica, sente inclusivamente dificuldade em definir a sua personalidade, a sua identidade.

Continuando a descrever alguns personagens típicos, por assim dizer, destacamos, de seguida, a classe dos professores. É através da mãe do narrador, professora de história, que temos eco do ambiente totalmente deteriorado, competitivo, das escolas (p. 158) e da, acrescentamos nós, falta de educação e de conhecimento de alguns alunos, apesar de, como se tem vindo a constatar, massacrados com programas tão extensos, repletos de matérias desnecessárias e olvidando outras profundamente enriquecedoras, viverem para o estudo. Fruto das políticas educativas vigentes, passou-se “de uma profissão nobre para uma profissão técnica” (p. 158), com efeitos nocivos na qualidade do ensino. Adite-se que, desencantados com o cenário, alguns professores limitam-se a cumprir horário e a contribuir para a desumanização do ensino, preparando os alunos de uma forma robotizada que, de olhos postos no fim, descuram, muitas vezes, os meios para o atingir. Desprovidos do sentido de justiça, da moralidade, imprescindíveis à construção de bons caracteres, lá se vão formando desta forma deficitária os Homens do futuro. Note-se que, para Miguel Real, “a educação é o coração da cultura, a alma cívica” (in entrevista ao Blogspot (julho 11, 2009), “No Coração da Escola”, http://nocoraodaescola.blogspot.pt/2009/07/entrevista-miguel-real. html, acedido a 01-07-2015), por conseguinte, importava repensar as políticas educativas vigentes. Alertando, numa outra ocasião, para o facto de que “estamos perante uma educação sem valores, a trabalhar apenas para a tecnologia” (Real, in entrevista blogspot, 2009), o autor em estudo, opina que se impunha o reforço da “visão humanista e cultural” (A Morte de Portugal, Coleção Campo da Atualidade, Porto, Campo das Letras – Editores S.A., p. 20) da e na escola. Não poderíamos concordar mais com estas afirmações.

Feito este parenteses, destacamos ainda as crianças, exemplificadas pelos filhos de Constança, que crescem nas leituras fantasiosas de Harry Potter (p. 46). Com base na figura de Constança, Miguel Real discorre também sobre a jornalista, vista como “presumida culturalmente”, sentindo-se “superior aos leitores e aos entrevistados”, porém frustrada por “não ser empresária nem ocupar cargos políticos” (p. 44, para as três últimas citações), socialmente e monetariamente mais relevantes, posto que somam dois predicados muito apreciados por todos: dinheiro e estatuto. Os governantes não poderiam faltar neste quadro, senão vejamos: “O Direito é o avesso da imaginação, da vida livre de dogmas e preconceitos. Não admira que a maioria dos governantes tenha frequentado Direito” (pp. 86-87). De igual modo, os advogados são “mentes comezinhas diluídas em intrigas e vilanagens a que chamam julgamentos, ao resultado do qual davam o pomposo nome de Justiça” (p. 81). Isto porque: “A moral ficava à porta do tribunal, lá dentro dominava a justiça como acordo negociado entre dois grupos de bandidos, os lícitos, enriquecidos, e os ilícitos, tentando escapar da prisão” (p. 81). Naturalmente, neste caso concreto, através da figura dos advogados, que se limitam a cumprir as regras viciadas do jogo, o autor em análise critica a forma de se fazer justiça. Como já foi dito, caricaturando algumas atividades, personagens, Miguel Real procurou trazer à colação alguns defeitos e vícios da sociedade e seus habitantes.

Enfim, esboçados alguns traços em torno do quadro social e mental do país, regressamos ao quadro familiar da personagem centenária e com ele finalizamos a breve abordagem a este delicioso romance que recomendamos vivamente. De facto, esta família, que dá o mote inaugural à obra, presumidamente irrepreensível, estava repleta de telhados de vidro, de “cadáveres às costas”. Além do que já foi referido ao longo do texto, e do que ficou por dizer, acrescentamos também a atividade, pouco recomendável, do avô Lourenço Perestêllo, que, vivendo num período marcante da nossa História, “fora diretor da PIDE e a família considerada integrante da elite salazarista e marcellista do Estado Novo” (p. 102). Ora, todos os membros desta tribo, cada um à sua maneira, vão contribuindo para as feridas por sarar, para os “cadáveres que a história vai deixando insepultos pelo caminho” (p. 390). Quanto à centenária, D. Consolação, o rosto humano de uma face de Portugal enrugada, arcaica, “relíquia de todos os sonhos gorados dos portugueses” (p. 488), metonimicamente espelha um país pré-cadavérico, um país que, não levantando as âncoras do passado, não avança, permanecendo, portanto, suspenso no tempo.


Carla Sofia Gomes Xavier Luís nasceu em Lamego. É licenciada em Portu­guês e Inglês (ensino de) pela UTAD, mestre em Língua, Cultura Portuguesa e Didá­tica pela Universidade da Beira Interior e doutora em Letras pela mesma instituição. É Professora Auxiliar, com nomeação definitiva, no Departamento de Letras da UBI e Investigadora Integrada no LabCom.IFP, na mesma instituição. Na Universidade da Beira Inte­rior, é membro do Conselho da Faculdade de Artes e Letras, do Conselho Científico do Departamento de Letras e da Comissão de Curso de Ciências da Cultura. É Coordenadora de Mobilidade do DL (Português/Espanhol, 1.º Ciclo), tendo ainda desempenhado a função de Coordenadora do Centro de Avaliação de Português-Língua Estrangeira (na UBI). Além disso, é Membro da Comissão Científica (arbitragem científica) da Revista Egitania Sciencia, (International Scientific Indexing – ISI) Instituto Politécnico da Guarda, do Conselho Científico (arbitragem científica) da Revista TRIPLOV de Artes, Religiões e Ciências, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, da Comissão Científica (arbitragem científica) da Revista Cadernos Culturais, Centro Cultural Eça de Queirós (CCEQ), da Comissão Interinstitucional da Academia Lusófona Luís de Camões (ALLC), da Comissão Interinstitucional do Instituto Fernando Pessoa (IFP), do Conselho Editorial da Revista …à Beira, do Conselho Editorial da UBILETRAS e da Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia. Tem organizado e participado, com comunicação, em varia­díssimos eventos científicos nacionais e internacionais. Das suas publicações destacamos as que realizou em torno da Obra de Miguel Real:  “Miguel Real e o seu retrato de Portugal: de onde vimos, o que somos e para onde vamos”, in Urbano Sidoncha e Catarina Moura (org.), Culturas em Movimento, Livro de Atas do I Con­gresso Internacional Sobre Cultura, Covilhã, LABCOM.IFP (Comunicação, Filosofia e Humanidades), 2016, pp. 187-208; “Língua Portuguesa e Lusofonia em Miguel Real”, in Alexandre António da Costa Luís, Carla Sofia Gomes Xavier Luís e Paulo Osório (org.), A Língua Portuguesa no Mundo: passado, presente e futuro, Lisboa, Edições Colibri e Universidade da Beira Interior, com o apoio da Academia das Ciências de Lisboa, Academia Brasileira de Letras, Universidade de Toronto, Instituto Politécnico de Macau, Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia, 2016, pp. 47-82; “Para uma Leitura de Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa de Miguel Real”, in Imperativo, 12-04-2018, disponível, https://www.imperativoonline.pt/2018/04/12/para-uma-leitura-de-tracos-fundamentais-da-cultura-portuguesa-de-miguel-real/ [acedido a 14-04-2018], bem como na página do COLÓQUIO INTERNACIONAL – MIGUEL REAL – Literatura, Filosofia, Cultura (7 e 8 de novembro de 2018), disponível em http://www.labcom-ifp.ubi.pt/miguelrealcoloquio/ ou http://www.labcom-ifp.ubi.pt/files/miguelrealcoloquio/); “Retratos dos Judeus na Obra ensaística e ficcional de Miguel Real”, no prelo.