O rapaz no quarto

ANTÍMIO DAMIÃO


Nos limites do sonho, ergue-se um império a sul a que todos os homens pertencerão. Suma, a sua capital, é paraíso e destino de inúmeros sonhadores. A oculta urbe à beira-mar é percorrida por veredas de ébano e mantém-se imune à repetição enfadonha dos dias. Diz-se que as casas, aí, são pequenas e coloridas; que uma muralha em ziguezague protege a cidade das fortes vagas da zona costeira; que correm riachos nos passeios como lençóis de prata à luz do sol; que malas-postas e monociclos circulam nas ruas, acima e abaixo, por pontes e arcadas erguidas sobre rochas metamórficas; que leitos de água num aqueduto de quartzo caiem em cascata de quatro pilares colossais nos quatro pontos cardeais da cidade; que um pórtico levadiço com pinos de madrepérola abre-se de par em par para recolher peregrinos que percorreram todos os caminhos do mundo. Nos telhados dos edifícios ministeriais, as crianças brincam à apanhada, saltam à corda, lançam aviões de papel. Mulheres e homens trocam de sexo nas galerias de pedra da praça central e dançam em molhes e ancoradouros listrados com purpurina. Nas ruas de mármore polido, leões com jubas de musselina e elefantes de três andares vagueiam em liberdade; golfinhos e orcas albinas nadam em bando no estuário do rio que atravessa a cidade. Para haver noite, já que o sol teima em pôr-se, uma enorme tela negra com milhões de buracos estende-se de muralha a muralha. Ao crepúsculo, em esplanadas suspensas a metros de altura por pedestais de topázio, bebe-se chá de menta mascada. Nos zimbórios dos templos, cata-ventos em forma de gato rodam incessantemente. As sebes dos jardins entrelaçam-se em ponto-cruz e os frutos caem das árvores se se apontar para eles. Em Suma não há política, religião, dinheiro e vergonha. A prosperidade é norma e os nativos respeitam os recém-chegados. Porém, nem tudo são rosas. Nos esgotos, há galerias de salitre e humidade que não levam a lugar algum; labirintos onde vivem boémios e negociantes caídos em desgraça, que gemem e fogem da luz. À noite, saem por bueiros e dirigem-se às tabernas, enchendo-as de lamentos e sonhos desfeitos. Alguns trocam de pele com os recém-chegados, que, por sua vez, se transformam em criaturas aptas a farejar a loucura e a perfídia dos homens.

Foi nesta admirável cidade que o velho epicurista Terciário subiu ao Farol do Mundo e, com a ajuda de um potente binóculo, avistou ao longe um arquipélago de sal e alambre. Para além disso, nesses mares distantes, viu naus na cauda de um tornado, peixes-voadores atacando cachalotes, um vulcão expelindo estrelas, sereias nas baetas de coral do mar alto. A improbabilidade destes relatos fez das crianças as suas únicas crentes. Diz-se, inclusive, que o fundador deste império terá sido um menino que ainda hoje o sonha no quarto.

Nesse mesmo quarto, a selva de pássaros pintada no biombo do canto vai-se alastrando pelas paredes. Por detrás do biombo eclode uma luz roxa e intermitente; ouvem-se passos e vozes. Em viagem para o Império do Sonho, os passageiros do Comboio da Noite chegam adiantados; uma trupe assaz estranha ao entendimento humano e que abarrota por completo o quarto sonhado pelo rapaz. A saber, ali conversam dois ânus com mau hálito; homens-sapo saltam de encontro à passarada; um autómato atarraxa os membros que insistem em fugir-lhe; hermafroditas de cabelo ralo embatem nas vigas do tecto; um abajur, um psiché e um estirador procuram os restantes móveis que os acompanham; duas gémeas siamesas coxeiam; um quarteto de contorcionistas trançam os corpos elásticos; há símios de smoking, mercenários armados até aos dentes, centauros com pernas de hipopótamo, formas gelatinosas, anjos com dentes cariados e um sem-número de criaturas que não param de chegar.

Por fim, silenciando o tumulto, ouve-se ao longe o apito do comboio. Este rompe a parede do quarto e aparece num carril a perder de vista no horizonte nocturno. A possante máquina de aço tem duas chaminés, uma fonte de energia não-identificável e desliza como uma enorme cobra de borracha. À chegada, trava de rompante, sem atrito. Os passageiros apressam-se a ele. Cada carruagem tem duas portas que se desenrolam como línguas e recolhem os passageiros.

A criança, que tudo sonha, ajeita a almofada sob a cabeça; um fio de baba pende-lhe da boca. O comboio enfia-se-lhe no ouvido, afunilando-se com jeitinho. A blindagem da máquina embate ao de leve no lóbulo esquerdo e segue pelo meato auditivo dentro. “Pouca-terra, pouca-terra”, sopra o comboio à entrada para o corpo do rapaz. O apito estridula; o vapor da locomotiva solta-se das narinas do garoto; a viagem começa. Daí ao destino é apenas um instante.

Com a passagem do tempo, especula-se que o Comboio da Noite circule ainda dentro do rapaz. Prova disso, este, agora homem, sente por vezes umas pontadas nas costas e as articulações perras, às quais atribui causa médica, embora intua, mas não assuma, a verdadeira razão deste mal.