O pau de Wilson Alves-Bezerra

MARIA ESTELA GUEDES


Apresentação do livro O Pau do Brasil, de Wilson Alves-Bezerra (Editora Urutau, 2018) na Livraria Poetria, Porto, 1 de outubro de 2018.


Wilson Alves Bezerra esclarece que O pau do Brasil, que vai na quarta edição, e deve ter tido uma das primeiras em Triplov.com, é uma obra em progresso, work in progress. Começa nos dias de impugnação do mandato de Dilma Rousseff e as edições seguintes desenvolvem-se com novos acontecimentos no Brasil. A presente edição dá relevo à prisão de Luiz Inácio Lula da Silva em Curitiba e à ascensão de Michel Temer, e a próxima virá decerto enriquecida com o caso Jair Bolsonaro, o modo como as mulheres estão a reagir em todo o mundo e não apenas no Brasil, e desfecho das eleições. Tal como elas, alio-me ao movimento Ele Não, para travar o avanço do fascismo em toda a parte, com as suas frentes homofóbica, misógina e racista.

O pau do Brasil é uma obra híbrida, e quem me conhece sabe que eu defendo e promovo o híbrido, quer como resultado de miscigenação biológica quer como resultado de mistura em arte. Wilson Alves-Bezerra manifesta as duas tendências neste livro de prosa e verso, que não é prosa por não ser verso nem verso por não ser prosa, e manifesta-as no âmago das suas ideias e da sua origem genética. Por isso, as implicações da hibridação são muito mais materiais e biológicas, envolvem O pau do Brasil em questões que sobem da família ao Estado e do vocabulário erudito ao calão. A nação brasileira é multirracial, como de resto todas aquelas que hasteiam bandeira civilizada e democrática, facto que hoje em dia apresenta até um aspecto curioso, naqueles europeus bem branquinhos que indagam dos laboratórios a sua carta de genes: boa percentagem deles é africana, afinal os vestígios mais antigos que temos daqueles que o Evolucionismo nos atribuiu como antepassados foram encontrados no Vale do Rift, na África oriental.  Não foi  Gilberto Freyre quem declarou que o maior contributo dos portugueses ao mundo foi o mulato? Concordo com ele. O contrário do híbrido é a raça pura, conseguida artificialmente pelos meios da consanguinidade. Ao fim de várias gerações, os rebanhos de carneiros ou vacas de raça pura estão a cair de podres e é preciso renová-los com sangue novo. A raça pura, num extremo teórico, produziria indivíduos todos iguais. Deixemos este filme de terror para as galinhas, bois e cavalos.

Posta esta introdução multicultural na sua multirracialidade, direi que vou ler O pau do Brasil  a partir da sua liga ou tempura, visto que uma obra que apresenta textos muito diferentes quanto ao género literário – relato de cariz policial, jornalístico, narrativas, poesia em prosa, versos satíricos, etc. -, precisa de um cimento que assegure obra coesa ou ela esfarela-se nas mãos como um bolo sem ovos nem manteiga.

A liga comporta três ingredientes, a saber: um princípio teórico, ou uma arte poética; temática dominante e um ponto de vista.

Do tema dominante já falei, é a exposição dos acontecimentos no Brasil nos últimos anos e suas consequências na vida dos brasileiros, que tanto se manifesta na antecipação das  ruas vazias das grandes cidades, em resultado de um estado de policiamento, repressão  e censura, como na real emigração e aprofundamento do abismo entre ricos e pobres. Cito:

polarização brasileira finalmente explicada 

Uma das marcas da sociedade brasileira
e que faz com que ela seja violenta
é o fato de que ela está polarizada
entre a carência absoluta das classes populares
e o privilégio absoluto das camadas dominantes.

Passemos agora ao princípio teórico norteador do livro. Ele pertence à modernidade e muito em particular ao modernismo. Wilson Alves-Bezerra  informa, num dos prefácios, que esta sua work in progress começou por ser um diálogo com o livro de poemas de Oswald de Andrade,  Pau-Brasil. Oswald de Andrade é uma das mais proeminentes figuras da Semana de Arte Moderna em São Paulo, ou Semana de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Dois portugueses marcantes tomaram parte nela, com leitura de poemas e conferências, em várias cidades brasileiras: António Ferro e Fernanda de Castro, muito jovem casal então, se porventura não coincidiu a Semana de Arte com a sua viagem de núpcias. O escritor António Ferro, considerado o ideólogo do salazarismo, fora, em 1915, o editor inimputável, dada a sua menoridade, da revista Orpheu, fundadora do modernismo português.

O Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, extravasou para uma estética anti-parnasiana, ligada de um lado às questões brasileiras, endóticas, e de outro ao exterior, exóticas, visto que se anunciava como arte para exportar. O Pau do Brasil de Wilson Alves-Bezerra não podia ser mais ilustrativo desta vertente do modernismo brasileiro. À semelhança do que fez o surrealista André Breton, essa estética  traduziu-se em manifesto, no caso, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade. O princípio teórico norteador da obra de Wilson Alves-Bezerra a que me refiro vem logo nas primeiras linhas do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade:

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.

O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.

Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.

Nesta proposta vemos o acento posto no que é endótico, ou nacionalista e primitivista, no discurso de outros, e na recusa de que a poesia selecione da vida só umas partes  consideráveis poéticas. Não, todos os factos são poéticos, a poesia manifesta-os a todos, quer como factos da realidade quer como factos de linguagem, e neste caso inclui-se tanto o falar difícil como o calão, seja calão de bandido ou de cientista. Cito, a este propósito, Wilson Alves-Bezerra:

Toda poesia se faz em tempo de crise. O que não se define de antemão é se a crise é do sujeito ou da sociedade.

No nosso Brasil de hoje, a crise é da sociedade e afeta a cada cidadão, cada mulher da vida, cada puta, cada viado, cada transexual, cada poeta, cada sem-teto, cada estudante, cada sonhador e cada engenheira. Os demais terão enxaqueca, sem entender. Os demais terão formigamentos no cu, terão câimbras, terão sintomas, sem entender.

A poesia existe porque é necessária a elaboração. Porque é necessário deter os diálogos, as reflexões. A poesia existe para enlouquecer a língua. Para dar prejuízo às editoras. Para corar as mulheres de bem e fazê-las desejosas. A poesia existe para um girassol desabrochar na lapela do Oscar Wilde e ninguém entender. Para deixar o Michel nu e sem seu Viagra.

Livro vertiginoso, protestante, indignado, não é só com Oswald de Andrade que dialoga. A sua intertextualidade atinge um campo mais vasto de autores que aliás Wilson Alves-Bezerra identifica.

Deixando esboçado o princípio teórico de que a poesia está em todas as coisas, no completo dicionário da língua e sobretudo na crise, resta esclarecer qual é o terceiro elemento na liga que faz dele uma obra literária de alta qualidade, segura, desenvolta, amadurecida nas letras e na mente. Ora o ponto de vista, o modo escolhido por Wilson Alves-Bezerra para enfrentar os problemas, é a ironia e seu campo de minas, com a sátira e o sarcasmo. São essas as armas que revelam, e por isso combatem, acontecimentos grotescos causados por políticas corruptas e incompetentes. A  ironia percorre todo O Pau do Brasil e inclui explicação:  o autor lembra que a ironia é um procedimento literário que consiste em dizer o contrário do que se pensa. Recurso que se confunde aliás com o pau, no mais combativo sentido que tem, no Brasil como em Portugal. A ironia é o cacete, é com o pau da ironia que se bate. Nada mais exemplificativo, para rematar esta apresentação, do que o texto

em defesa da democracia 

Pelo bem do País, Lula deve morrer. Eis uma verdade incontestável. Digo, se Luiz Inácio ainda é encarado por boa parte da sociedade como o prócer a ser seguido, se continua sendo capaz de liderar pesquisas e inspirar militantes Brasil afora, então Lula precisa morrer.