O Maio de 68 visto de fora


MANUEL RODRIGUES VAZ
Escritor, jornalista, historiador
Palestra proferida na Tertúlia À Margem, no Restaurante O Pote, em Lisboa, em 9 de Maio de 2017


Os saudosistas do Maio de 1968 veem este acontecimento como um momento memorável na história da liberdade e dos direitos humanos. O símbolo unificador dos protestos foi O Livro Vermelho de Mao Tsé-Tung e a sua inspiração imediata a Revolução Cultural Chinesa, iniciada dois anos antes, em que o governo de Pequim usava massas de jovens enraivecidos como “tropa de choque” para perseguir, humilhar, torturar e matar milhares de adversários do regime.

Alguns filósofos e historiadores afirmam que esse evento foi um dos mais importantes e significativos do século XX, porque não se deveu a uma camada restrita da população, como trabalhadores e camponeses – que eram maioria -, mas a uma insurreição popular que superou barreiras étnicas, culturais, de idade e de classe. Além disso, teve intrínsecas ligações com os acontecimentos do pós-guerra e com os da Guerra Fria.

A maioria dos revoltosos era conotada com a esquerda. Eram muitos os que viam os eventos como uma oportunidade para sacudir os valores da “velha sociedade”, contrapondo ideias avançadas sobre a educação, a sexualidade e o prazer.

Fazer uma análise do Maio de 68 a partir de Luanda só pode, portanto, ser de maneira limitada, por ser de fora, mas talvez seja a melhor maneira de jogar à imparcialidade, e muito mais agora, passados 50 anos, quando o pó do tempo já está naturalmente incrustado nos muros do nosso tédio, como dizia há dias o Coelho Júnior.

Conta o dramaturgo Costa Ferreira (1918-97), que também foi ator e encenador, no seu livro «Uma Vida em Cinco Dias», relato da sua experiência vivida em Paris durante uma semana de Maio de 1968, – livro que eu, como muito mais gente consideramos o melhor livro que em Portugal se publicou sobre o Maio de 68, – que quando alguém bradava na Sorbonne «Contestai! é preciso contestar tudo!”, um francês perguntou: «Mas não há nada que vocês não contestem?» «Há – alguém respondeu – O direito que todo o homem tem a viver dignamente».

De vários modos podemos dizer, depois de tantas polémicas, discussões e debates, que, se para alguma coisa contribuiu o Maio de 68 em Paris, foi exatamente isto. Deitou muitas achas para a fogueira que se vai acendendo rumo ao aperfeiçoamento lógico da humanidade, que se fará com muitos passos atrás, mas certamente com muitos mais à frente. O que é preciso é avançar, nada de ficar parado à espera de Godot.

A revolta dos estudantes universitários espalhou-se por toda a sociedade e logrou o apoio de todas as classes. Nele se envolveram nomes emblemáticos do pensamento e da cultura francesa, como o filósofo existencialista Jean Paul Sartre, o realizador Jean-Luc Godard e o antigo líder estudantil Daniel Cohn-Bendit, figura representativa deste acontecimento.

Por lá andavam jovens portugueses de diferentes formações, parte dos quais fugidos à guerra colonial que estalou em 1961 em Angola e todos certamente escapando ao regime concentracionário de Oliveira Salazar, já na fase acentuada de decrepitude, embora com a sanha e os aparelhos repressivos do Estado Novo. Exilados políticos do regime, muitos eram. Também eles participaram nas barricadas, protegeram-se da polícia, atiraram pedras, tentaram aliciar os emigrantes portugueses para a sua luta comum. Falamos do cartoonista Vasco de Castro, do cantor Luís Cília, de Fernando Pereira Marques, Carlos Monjardino, Aires Rodrigues, Maria Lamas, António José Saraiva (que publicaria em 1971 a polémica obra Maio e a crise da civilização burguesa, que haveria de suscitar amplo debate intelectual na altura), a sua mulher Teresa Rita Lopes, o encenador Hélder Costa, Moisés Espírito Santo, a jornalista Alice Vieira e Vilaverde Cabral, entre muitos outros que viriam a ser personagens influentes em Portugal, em diferentes áreas, no pós 25 de Abril, que recolhe aromas e perfumes da revolução de Maio. A maior parte, felizmente, hoje ainda viva, entre nós.

Os jovens revoltosos não queriam o poder, queriam apenas transformar o mundo. Ou mudar a vida. Afirmava-se na altura e reafirma-se por estes dias, evocando o cinquentenário deste movimento que condicionou a política e influenciou os costumes e a sociedade futura. São célebres os seus lemas utópicos e eivados dos sonhos maiores, profundamente poéticos, tais como: a imaginação ao poder, proibido proibir, sejamos realistas, exijamos o impossível, a barricada fecha a rua, mas abre o caminho, o aborrecimento é contrarrevolucionário e não me libertem, eu encarrego-me disso.

Os emigrantes portugueses instalavam-se, miseravelmente, nos bairros de lata de Champigny ou de Saint-Denis, sem condições de higiene ou de salubridade algumas, em precárias barracas sem água, sem eletricidade nem saneamento.

Foram estes compatriotas abordados pelos ativistas portugueses em Paris (Vasco de Castro, Luís Cília e outros), no sentido de os convencer a alinharem nas greves e a serem solidários com as classes em luta. Sem sucesso. A sua reação era obviamente de medo. Mal sabendo falar francês, mal instalados, desinteressados da política e do que se passava em redor, os nossos emigrantes queriam era que os deixassem trabalhar, para ganharem dinheiro para remeterem para as famílias em Portugal.

O Maio de 1968 foi um movimento de revolta quase efémera mas que deixaria marcas na posteridade. Efetivamente, na mentalidade dos cidadãos algo estava a mudar e a dar frutos. Era o triunfo do amor, da nudez, dos direitos da mulher, do movimento hippie, da paz. Recordemos que 1968 era também sinónimo da Primavera de Praga e da oposição, nos Estados Unidos, à guerra do Vietname.

É dessa altura o aparecimento da minissaia e da pílula, bem como dos festivais de música rock, como o de Woodstock, gigantesco, no ano imediato.
Nada ficaria como dantes, a partir de Maio de 1968!

O movimento do Maio de 1968 furou o convencionalismo dos partidos tradicionais, e foi olhado com alguma reserva inicial pelo movimento sindical francês, muito cético “porque os estudantes eram os filhos da burguesia”, mas a verdade é que, em determinada fase, a própria CGT, a maior confederação sindical francesa, aderiu a uma contestação que não tinha liderança e que queria discutir tudo.

Tudo era posto em causa e palavras como: “O sonho é realidade”, “Todo o poder abusa. O poder absoluto abusa absolutamente”, “Não me libertem, eu encarrego-me disso”, “A poesia está na rua”,” A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”, “A Revolução tem de deixar de ser para existir”, “Abram o vosso cérebro tantas vezes como a braguilha”, “É proibido proibir”, “Tomem os vossos desejos pela realidade”, “Não reivindicaremos nada. Não pediremos nada. Conquistaremos. Ocuparemos”, “Um homem não é estúpido ou inteligente: ele é livre ou não é”, e muitas outras que passaram a entrar no quotidiano das revoluções que se foram operando um pouco por todo o mundo.

O Maio de 1968 marca uma viragem em novas conceções políticas, abertas a novas doutrinas e mobilizadoras para vivências diferentes do contexto centrado nalgum dogmatismo organizativo do século XIX e no princípio do século XX. Foi um tempo em que Marcuse, Sartre, Dérrida e outros aparecem a ocupar os lugares que Marx, Engels, Lenine, Trotsky, Staline, Mao e outros disputam.

Volta-se a Saint Simon, Fourier, Owen, Hegel e Goethe para perceber Dabord, Aragon, Althusser, Aron, Garaudy, Beauvoir, etc. Reinventa-se a história sem que o dogmatismo da luta de classes permaneça, e procura-se algo de hedonismo social, mas de contornos muito difusos, e nalguns casos pouco coerentes.

Cinquenta anos depois, no mundo parece que quase não houve nenhum Maio de 1968, pois o voluntarismo, o apelo de libertação, o espírito solidário e outros valores desvaneceram-se, e a geração desse tempo engravatou-se e esgaravata-se em fazer prevalecer a ordem económica assente numa economia de mercado, de desmesurada ferocidade para com os trabalhadores, imigrantes e povos de países em vias de desenvolvimento.

Passou-se à concorrência feroz, à disputa de mercados e um apelo ao consumismo desregrado que empobrece povos, enriquece alguns e multiplica a fome e a indigência por milhões que não tem direito a rigorosamente nada. As mais-valias que eram extorquidas aos trabalhadores no processo produtivo, gerando emprego, foram substituídas na forma de ações, títulos, participações e outras formas subtis de transferência de capital ao nível global.

Mas na música, nas artes plásticas, no vestuário e noutras áreas da cultura houve uma mudança com o aparecimento de novas tendências e o ousar passou a ser o banal, acabando com o convencionalismo que então era quotidiano nas sociedades tecnologicamente e economicamente mais desenvolvidas. Se ao tempo nada ficou como antes, passados os 50 anos em que Geismer, Sauvageot e Cohn-Bendit deram a cara por um Maio que fez abanar os fundamentos do “estado burguês”, temos hoje um mundo mais desigual, ideologicamente monocromático e que a democracia passou apenas a ser instrumentalizada para domínio do económico em detrimento de um social cada vez mais apagado.

Para além do livro do Costa Ferreira, há que falar do livro de António José Saraiva, Maio e a Crise da Civilização Burguesa, essencial para a compreensão das evoluções da mentalidade e da “civilização” burguesas, postas em cheque durante a grande crise de Maio de 1968 e em todos os seus planos de atividade. Esta obra teve ressonâncias particularíssimas não só pelo tom fortemente polémico que a caracteriza, mas também pela forma como nas suas páginas se opera uma revisão assaz importante de muitos pontos de vista filosóficos e ideológicos.

Enfim, na verdade, o Maio de 68 foi também uma revolução na linguagem, graças ao poder libertador dos slogans que enchiam as paredes, as ruas e os espaços da universidade em Paris, dizendo muito mais do que os imperativos ideológicos exigiam que fosse dito. Nesse sentido, o Maio de 68 foi também e sobretudo uma revolução no domínio da linguagem, dos conceitos e dos valores.

Em relação a Portugal, foi o Maio de 68 que nos deu coragem bastante para sair à rua e agitar a universidade em 1969, especialmente após o episódio de Coimbra, e para dizer com comovente convicção que o nosso Abril já não poderia ser adiado, porque estávamos fartos da guerra, de Caxias, de Peniche, do terror, da arbitrariedade e do medo. O Maio de 68 foi possível porque havia democracia em França, mesmo fragilizada e aflita, e porque tinha chegado o momento de começar um novo ciclo a partir da valentia insensata das ruas, com os operários e os polícias confusos e divididos.

Como declarou recentemente o Fernando Pereira Marques, exilado político em França, a maior consequência do Maio de 68 foram as transformações sociais que provocou. “Antes do Maio de 68 as raparigas não podiam ir de calças para as aulas. Se fossem tinham de usar saia por cima. Havia a vontade de mudança e isso notou-se na defesa da sexualidade, do estatuto da mulher, das relações entre sexos”, afirma o sociólogo, que assistiu ao eclodir do movimento académico.

O movimento de maio de 1968, na França, tornou-se ícone de uma época onde a renovação dos valores veio acompanhada pela proeminente força de uma cultura jovem. A liberação sexual, a Guerra no Vietname, os movimentos pela ampliação dos direitos civis compunham toda a pólvora de um barril construído pela fala dos jovens estudantes da época. Mais do que iniciar algum tipo de tendência, o Maio de 68 pode ser visto como desdobramento de toda uma série de questões já propostas pela revisão dos costumes feita por lutas políticas, obras filosóficas e a euforia juvenil.

Mesmo sem alcançar algum tipo de conquista objetiva, o movimento de Maio de 68 indicou uma mudança de comportamentos. As artes, a filosofia e as relações afetivas seriam o espaço de ação de um mundo marcado por mudanças. Não podemos julgar esse episódio como imaturo ou precipitado. Muito menos sabemos limitar precisamente o quanto o mundo modificou a partir de então. No entanto, podemos refletir qual o lugar que a rebeldia e vigor das ideias ocupam numa sociedade sistematicamente taxada de consumista e individualista.

Embora haja a tentação de ligar a crise académica de Coimbra em 1969 ao Maio de 68, segundo o professor Rui Bebiano, não é de todo verdadeiro que essa ligação tenha acontecido, existindo mesmo um equívoco a propósito da influência imediata do Maio de 68 em Portugal. «A realidade da intervenção estudantil universitária era entre nós substancialmente diversa, definindo-a de início ainda uma dimensão de protesto «corporativo» de pendor reformista. Demonstram-no os importantes momentos da «crise académica de 69» em Coimbra, que perturbaram os governantes e a modorra universitária e coimbrã, e foram cruciais para ampliar a desafetação de muitos estudantes em relação à autoridade do Estado Novo, mas mantiveram um registo paciente, combatendo o regime sem o pôr diretamente em causa.»

Não é esta a teoria que enformou o conhecido livro Dossier Coimbra 1969, elaborado por António Cruz, Joaquim Maria Marques e José Maria Marques, este último artista plástico conhecido como José de Guimarães, que viria a ser compensado com a sua nomeação para dirigir os SCIA de Angola. Como era natural, as lutas sociais não tinham como causa as injustiças, a opressão e as tiranias, era tudo culpa dos comunistas soviéticos que queriam dominar o mundo.

De qualquer maneira, a verdade é que a luta estudantil foi muito importante na construção de uma consciência coletiva associada à possibilidade, não apenas de protestar contra o regime, mas de o fazer cair, projetando em simultâneo, para o país, um horizonte democrático e aberto ao mundo. Tornando real o que parecia impossível. O nosso Maio, na verdade, aconteceu com Abril.

Por isso, vale a pena gritar agora: “Sejamos realistas, exijamos o impossível”.

Vale a pena respigar o final de um artigo que o Professor Elísio Estanque publicou hoje no Público: «Não é por nostalgia que os acontecimentos extraordinários como o Maio de 68 ou o 25 de Abril devem ser celebrados. É, sim, para lembrar aos não resignados com o declinar paulatino da cultura política e da democracia que precisamos, mais do que nunca, de estudar o potencial de atualidade de tais experiências, não para voltar a fazer tudo igual mas para que se perceba – em particular a juventude de hoje, que se debate com a precariedade e o futuro bloqueado – que tudo pode ser diferente».

RODRIGUES VAZ


https://www.facebook.com/carvalho.olavo/posts/953756678109740 – Olavo de Carvalho

Uma vida em cinco dias – Costa Ferreira, Publicações Europa-América, 1971

https://correiodominho.pt/cronicas/a-imaginacao-ao-poder-no-maio-de-1968/9703 Artur Coimbra, Correio do Minho, 6MAIO2018

http://recordacoescasamarela.blogspot.pt/2018/05/ – Fernando Pereira, Novo Jornal, Luanda, 4MAI2018

Maio e a Crise da Civilização Burguesa – António José Saraiva, Publicações Europa-América, Lisboa, 1970

Memória e atualidade dos movimentos estudantis – Rui Bebiano, Revista Crítica de Ciências Sociais, 81, Junho 2008

Dossier Coimbra 1969 – António Cruz, Joaquim Maria Marques e José Maria Marques, Livraria Sampedro Editora, 1969

Maio de 1968 (II): contaminações – Elísio Estanque, Público, 9MAI02018

Maio de 68 trouxe uma Alteração de mentalidades – Amanda Ribeiro, 2MAIO 2018 – https://jpn.up.pt/2008/05/02/maio-de-68-trouxe-uma-alteracao-de-mentalidades/

Maio de 68 explicado àqueles que não o viveram – Patrick Rotman, Guimarães Editores, 2008

Maio de 68: Uma contrarrevolução conseguida – Régis Debray, Dom Quixote, 2018, Lisboa