O juiz troglodita

MARIA ESTELA GUEDES

«Um acórdão da Relação do Porto arrasa uma mulher que traiu o marido e acabou agredida pelo mesmo e sequestrada pelo amante, ambos condenados a penas suspensas. “O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”. Estas frases constam de um acórdão da Relação do Porto, que arrasa uma mulher que traiu o marido e acabou agredida pelo mesmo e sequestrada pelo amante, ambos condenados a penas suspensas de prisão por violência doméstica. Em duas dezenas de páginas, são oito as frases usadas pelo tribunal superior para manter as penas suspensas do marido e do amante, fixadas pelo Tribunal de Felgueiras, e que levaram o Ministério Público a recorrer para a Relação, na tentativa de aumentar as penas para mais do dobro.» Dos jornais, 24/- outubro de 2017


O que me indigna mais em casos destes, e me move à escrita, é a circunstância de ser um alto representante da Lei o agente que subverte a mesma Lei, trocando-a por certa moralidade de cariz judeo-cristão-islamita que de certeza absoluta não figura no Código Penal nem em nenhuma das ferramentas legislativas em que se afundam advogados, notários, juízes e demais representantes de normas de conduta que emanam diretamente da Constituição.

Que um juiz, desembargador, exiba a Bíblia para condenar uma mulher vítima de agressão com martelo de pregos, e deixe entender que o adultério da mulher é uma desonra para o homem mas que o adultério do homem é um ato inocente, é uma afronta menor para as mulheres, do que para a Lei que nos governa e dirige. Tal idiotia é um atentado direto contra a Constituição, um ato de terrorismo tão digno de cadeia como o daqueles que incendeiam as florestas, indiferentes a todos os danos, incluída a morte de quem fica preso nas chamas.

Esse juiz devia ser imediatamente posto fora do lugar que ocupa, já que, imagino, não será por ninguém levado à cadeira de réu, que era o que ele merecia. O labrego que bate na mulher tem porventura a desculpa de ser um analfabeto, o mesmo adiante da mulher que ache no rolo da massa o instrumento ideal para meter o homem na linha, porém o homem e a mulher de leis não têm desculpa absolutamente nenhuma. É com a Lei que têm de lidar e não com a Moral dos livros sagrados, para não perder tempo a contrariar a errada leitura que o senhor Juiz fez do episódio da mulher adúltera, pois todos ainda nos lembramos da advertência de Jesus: “O que nunca tiver pecado, que atire a primeira pedra”.

O assunto é gravíssimo porque rasga o véu da imaginária democracia em que vivemos na Terra, para mostrar o trogloditismo que ainda lhe subjaz. No fundo destes comportamentos discriminatórios – que atingem tudo: sexo, género, raça, idade, estatuto social, profissão, etc. – lateja o machismo, que não é um problema só do homem, é uma questão cultural cujo desaparecimento não depende só da vontade da mulher, enquanto educadora, depende da necessidade de todos nos empenharmos num mundo mais justo e numa sociedade mais requintada, que não se funde na tão velha questão do superior e do inferior, de quem manda e é mandado, do mais forte e do mais fraco, do normal e do anormal, do mais belo e do mais feio e, por aí adiante, desfie quem quiser o potencial rosário de motivos para discriminação.

Não esquecendo que acabei de enunciar palavras, palavras que exprimem conceitos e preconceitos, e que, em última instância, o que nos move à transgressão é o rótulo mais do que o objeto por ele referido, ou seja, cuidado com as palavras, elas podem tornar-se obstáculos ao conhecimento, quando se mumificam. No caso, em que o adultério parece nem constituir crime na nossa Lei, a palavra “adúltera”, mais do que a visão de uma mulher sentada à sua frente, pode ter constituído um obstáculo epistemológico para o juiz, acontece entretanto que o estádio civilizacional em que nos encontramos não concebe que o legislador possa ser intelectualmente perturbado por signos oriundos de uma sociedade troglodita.