O doido da família

FREI BENTO DOMINGUES, O.P.


O que se pede hoje aos discípulos de Jesus é que tenham suficiente loucura para não se acomodarem à lógica dos donos deste mundo.

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A Catalunha continua a ser notícia por vários motivos, sobretudo por razões de ordem política. Os meios de comunicação portugueses não foram excepção, mas esqueceram a grande homenagem à figura marcante da cultura catalã actual e de significação universal.

A Generalitat de Catalunya i l’Ajuntament de Barcelona estão a celebrar, em 2018, o Ano de Raimon Panikkar (1918-2010), centenário de um sábio do nosso tempo [1]. Filho de pai indiano e hindu e de mãe catalã católica romana, nasceu em Barcelona, viveu na Índia e morreu rodeado da beleza em Tavertet.

Era padre, cientista, filósofo, teólogo e místico. Sem deixar de ser católico integrou, na sua identidade, vários elementos de outras crenças religiosas. Como diz Ignasi Moreta, editor das suas Obras Completas, das quais já saíram dez volumes, “era uma ponte entre o Oriente e o Ocidente, entre as Letras e as Ciências, entre as expressões do Cristianismo, do Induísmo, do Budismo e do Pensamento Secular”.

Esta forma de viver, pensar e escrever evoca Ramon Llull (1232-1315), o escritor, filósofo, poeta, missionário, teólogo, o símbolo cultural da Catalunha. Nascido em Palma de Maiorca, na encruzilhada de três culturas – cristã, islâmica e judia –, foi o criador da língua catalã literária, mas também se exprimia, com elegância, em castelhano, latim, árabe e Langue d’oc.

Acerca de R. Panikkar surge sempre a pergunta: mas ele era católico ou hindu? Não se pode dizer que fosse católico pela mãe e hindu pelo pai. A religião não é uma herança de ordem genética. O sincretismo religioso foi sempre mal visto, pois não parece exprimir uma identidade, mas uma confusão. Talvez sim, talvez não. Não se exigiu aos primeiros discípulos de Jesus a renúncia à condição judaica. Começaram por ser todos judeus de várias tendências. O problema nasceu quando as portas e janelas, que a prática de Jesus abriu, passaram a ser fechadas às outras tradições religiosas. Paulo de Tarso, judeu de pura cepa, não aceitou que se fizesse depender a graça de Deus, manifestada em Jesus de Nazaré, da condição judaica. A salvação não estava ligada a uma condição étnica nem religiosa. Era universal como a graça de Deus, que não faz acepção de pessoas e povos.

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Quem abriu todos os horizontes foi Jesus de Nazaré que viajou pouco, mas sabia muito. No texto do Evangelho de hoje [2], existe uma polémica duríssima sobre esta questão. Começa com um desentendimento familiar tão profundo que até julgavam que ele estava doido. É dito textualmente: “ao verificarem o seu comportamento, os parentes saíram para o deter, pois diziam, está fora de si.”Qual era a estranheza? A casa de família estava invadida por quem não era da família. A família estava sem casa.

Mais adiante, voltaremos às razões desta confusão toda. No mesmo texto, é dito que ele estava pior que doido, estava possesso de Belzebu. Era este que lhe dava poder para expulsar os demónios.

Jesus observa aos escribas que estão a ser completamente parvos, pois, se é Satanás a expulsar Satanás, é o império do diabo que se autodestrói.

Neste ponto, não é capaz de passar adiante: “tudo será perdoado aos filhos dos homens, os pecados e blasfémias que tiverem proferido, mas quem blasfemar contra o Espírito Santo nunca terá perdão, será réu de pecado para sempre.” Os senhores da inteligência da vontade e da acção de Deus estavam a negar a evidência em nome da sua cegueira. Não há pior cego do que aquele que não quer ver, como mostrará mais tarde [3].

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Marcos vai radicalizar a questão central do universalismo cristão. Jesus perturba a família que se quer fechar sobre si mesma. Os filhos de Deus não são apenas os da própria família.

Maria e os familiares vão tentar encontrar-se com Jesus para esclarecer esta situação. Diz o texto: “entretanto, chegaram a sua mãe e os seus irmãos, que ficaram fora e mandaram-no chamar. A multidão estava sentada à sua volta quando lhe disseram, a tua mãe e os teus irmãos estão lá fora à tua procura e, olhando para aqueles que estavam à sua roda, declarou: eis a minha Mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe.”

Estava mesmo doido. Os limites do cristianismo não são as outras religiões ou os ateísmos, etc.. São os que não reconhecem que ser irmão é a vocação de todo o ser humano. Assim se responde aos que criticam Raimon Panikkar. O cristianismo só tem um limite: a exclusão do outro, religioso ou não.

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Em nome do cristianismo, em nome da sua exclusiva posse da verdade, foram muitas vezes condenadas as outras religiões, pois a verdade e o erro não merecem o mesmo respeito.

Do anátema passou-se à tolerância. Não eram igualmente verdadeiras mas, para superar as guerras de religião, o melhor era suportá-las. Mal menor.

O pluralismo humano e cultural apontava para algo mais positivo. Nasceu a teologia sobre as outras religiões, baseada na pergunta: qual a significação que a diversidade religiosa pode ter no plano de Deus?

Quando as religiões eram atacadas pelos mestres da suspeita, alguns teólogos insistiram em mostrar que o cristianismo estava imune a esse negativismo, pois não era uma religião. Nesta astúcia há algum fundamento. Por fim, surge o diálogo inter-religioso como uma bênção. Se a forma de viver como humanos é o diálogo, e fora do diálogo não há salvação, as religiões devem dar o exemplo que lhes tem faltado.

Por vezes, as mesas-redondas que o devem favorecer, com a preocupação de vender o seu peixe e mostrar as virtudes da própria religião, esquecem o próprio diálogo. Este, para ser frutuoso, deve implicar em todos a respectiva autocrítica e a vontade de conversão, de reforma. Um diálogo autêntico altera os que nele intervêm. Não pode ceder à lógica dos debates partidários, preocupados em vencer o adversário. Se a lógica do diálogo inter-religioso é a escuta e a busca, é normal que os participantes possam dizer no fim: estamos melhores, podemos continuar e alargar o caminho da unidade na diferença.

O que se pede hoje aos discípulos de Jesus de Nazaré, o doido da família, é que tenham suficiente loucura para não se acomodarem à lógica dos donos deste mundo, à do carreirismo eclesiástico, à do poder das religiões e que não atraiçoem o Pai Nosso que rezam de mãos dadas na Missa. Ou será que Deus fora da Missa deixa de ter família?


[1] Raimon Panikkar. Centenari d’un savi del nostre temps, FocNou, 2018, n.º 483. Ano XLV
[2] Mc 3, 20-35
[3] Jo 9

https://www.publico.pt/2018/06/10/sociedade/opiniao/o-doido-da-familia-1833586


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