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REVISTA TRIPLOV
nova Série . número 66 . agosto-setembro
. 2017 .
ÍNDICE
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SUSANA BRAVO
A escrita poética como “intenção
antropológica” em Equador
de
Henri Michaux
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Susana Maria
Pereira Roque Bravo,
Lisboa. Frequentou o curso de Psicologia em
2004 na Universidade de Paris Sorbonne, depois
de concluir em 2007 voltou para Portugal, Lisboa
e ingressou na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa no curso de Línguas,
Literaturas e Culturas em Estudos Portugueses e
Românicos, posteriormente fez o mestrado do
mesmo curso pela Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa em
Línguas, Literaturas e Culturas em estudos
Franceses e Portugueses sobre a orientação do
professor doutor Nuno Júdice na dissertação
A Fala do Corpo em
Luiza Neto Jorge e Luís Miguel Nava.
Atualmente está a
fazer o doutoramento na mesma faculdade em
Literatura Comparada. Escreve trimestralmente
para a revista Nova Águia, sob a coordenação do
prof. doutor Renato Epifânio.
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“Les poètes voyagent, mais
l’aventure du voyage ne les possède pas.”
Henri Michaux, Préface à « Les
poètes voyagent »
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A relação de Michaux
com o mar e o relato da sua viagem
a bordo de Boskoop,
até Quito
Primeira relação do
“eu-tu”
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O seguinte ensaio propõe
analisar a escrita poética de Henri Michaux em relação a
uma possível “intenção antropológica” moderna. Não há
grande interesse num estudo biográfico ou psicanalítico
da obra do autor sugerido. Não obstante, a
exemplificação de algumas referências poderá ser
mencionada, caso necessário. Interessa acima de tudo
compreender a realidade pessoal de Michaux e o que
ele nos revela pelo universo da sua escrita na
literatura de viagens já no século XX.
Equador
foi por excelência o romance que mais destacou Henri
Michaux enquanto poeta e escritor de um “diário” de
expedição de dois anos pelo Equador,
estabelecendo assim a inovação numa considerada
“literatura de viagens”, que publica em 1929 a partir de
toda a viagem realizada desde o Oceano Atlântico,
passando pelos Andes, Quito, as montanhas do Equador, e
as florestas tropicais brasileiras, até ao desembarque,
um ano mais tarde, na foz do Amazonas.
Na sequência da escrita
poética de Henri Michaux, pretende-se retratar de certo
modo a utilidade antropológica “inovadora”, levada a
cabo numa tentativa de tomada de conhecimentos e
testemunhos reais alucinantes, que o próprio Michaux
relata em detalhe no seu modo de ser poeta e escritor,
mas também ao mesmo tempo observador crítico do
quotidiano de uma nova civilização, povo, região e
climas da América do Sul, território que conhece,
fazendo-nos chegar, por meio da literatura de viagens,
esse conhecimento e envolvimento peculiares que estão
presentes no referido Equador .
Espera-se neste livro
singular encontrar alguns traços iconoclastas de uma
viagem anti-epopeia. Como se apercebe desde logo, o
narrador tem uma visão muito diferente daquela que se
espera do antropólogo especializado, isto é,
aquele indivíduo preocupado e focado na observação, no
estudo de casos, o rigor científico e o relato das
experiências na interação com povos e culturas
diferentes – a ciência da antropologia, nessa época
ainda numa primeira fase de evolução. Como ele afirma,
logo ao início do romance, na partida que o leva na sua
viagem: “Esta viagem começou já lá vão dois anos (…)
Dois anos uma espécie de prisão de ventre (…)[1]”.
Michaux afigura-se ao longo
do livro numa espécie de peregrino, “soldado
desconhecido” papel incorporado quase sempre pelos
literatos viajantes impregnado de uma grande
espiritualidade, que porém está desfasado do tempo real
em que se encontra: “Vejamos, trinta ou trinta e um dias
em Dezembro? (…) No anti-calendário do mar? Pobre
diário![2]”
A expressão
“anti-calendário” anuncia bem o seu modo de defesa face
ao “tempo calendário”, que deixa de parte ao longo de
toda a viagem, dando a sensação não só de um tempo
fluido e indeterminado, bem como de uma viagem incerta,
sem rumo e sem espaço e tempo definidos, onde o narrador
se possa encontrar a si próprio pela “viagem” ao seu
interior, diga-se um aspeto com características muito
românticas, pondo em evidência a subjetividade do
próprio autor.
Esta vontade de circunscrever
o tempo e o espaço, alienados do real, começa no
vasto Oceano Atlântico, onde se inicia a vigem,
avultando no autor um sentimento de exasperação pelo
imenso mar, juntamente com o excesso de monotonia que
este apresenta, evocando-o pela sua grandeza e força: “A
mim aquilo refez-me completamente. Muito bem, Atlântico,
sabes abanar e mostrar-te grandioso.[3]”
De seguida ocorre um desalento que acompanha esse mesmo
êxtase contemplativo – aborrecimento, entorpecimento
mórbidos que o fazem sentir aversão e desconfortado
perante esse universo, onde não acha nenhum encantamento
equilibrado, mas sim exaustivo: “Que inércia, o mundo!
Lindos, os barcos são lindos, dizem eles. Ah, não!” (…)
“ Fora isto, que deserto ofegante!”.
O discurso fortemente
carregado de emoções inconstantes e sentimentos líricos,
bem como humoristas, de Michaux, enquanto
narrador-protagonista e viajante ao mesmo tempo, relata
ao longo da narrativa as experiências que fazem parte do
seu imaginário poético e da sua relação inter-pessoal
com os lugares insondados, tornando-se, deste modo,
importantes meios de conhecimento pelo testemunho e
experiência sensorial e perceptível do autor.
Não obstante o que se
refere, há também uma tomada de “consciencialização
antropológica” ao longo do livro, que veremos mais
adiante no decurso deste ensaio, analisando para já a
relação do narrador com o mar. Primeira importante forma
de interação do eu com o tu,
personificando o mar, pelo carácter enigmático e absurdo
que este esconde na travessia a bordo do navio
Boskoop, num processo que vai sendo descrito na
sequência do culminar da escrita poética de Michaux.
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A relação de Michaux
com o mar e o relato da sua viagem a bordo de
Boskoop, até
Quito
Primeira relação
do “eu-tu”
“Este
Atlântico! A mim, dá-me a sensação de andar por cá há
cem anos[4].”
Henri Michaux,
Equador
Michaux estabelece uma
relação com o mar, onde começa a sua viagem até Quito -
uma viagem que o leva no impulso de percorrer o
imenso Oceano Atlântico. Sente-se, porém, através desta
primeira passagem, uma mistura de sentimentos e
de perceções na fala do narrador, com experiências que
vão sendo relatadas a bordo de Boskoop face à
imensidão e força do mar, que ele apelida de Oceano
Sólido. Trata-se de uma sensação de enlace e quimera,
mas também de solidão, desalento e frustração, que o
narrador metaforiza neste Atlântico, rendido ao seu
olhar, estabelecendo-se, assim, a primeira interação
imaginária “eu-tu”: “Oceano que belo brinquedo podia-se
fazer de ti[5]".
É esta interação que o narrador pretende invocar, para
com essa relação percorrer todo o seu discurso, por
vezes arrojado e cómico, dirigindo-se ao mar, ganhando
este uma dimensão viva e quase humanizada, mas também
complexo de superioridade imiscuindo-se pelo lado
tenebroso que o mar evoca e contentando-se com esse
superdomínio. Estamos, assim perante todo o enlevo que o
narrador cria e recria em torno do mar, projetando nele
o sentido de descrição, por vezes inanimada, mas na
maioria das vezes sempre animada, sobre o invólucro
personificado pelo mar e o Boskoop, num
mecanismo que revela as emoções de Michaux durante toda
esta travessia desde Paris, com partida a 25 de Dezembro
e chegada a Quito a 22 de Janeiro.
De que modo se poderá
analisar na primeira relação estabelecida o
eventual excesso de empolgamento de Michaux?
Tal como refere Margarida
Vale de Gato, “O sujeito de Michaux é prolixamente
desdobrável (…) A relação do eu com o tu é de
assassinato.” (“O sujeito insubmisso”[6]).
No entanto, na primeira parte de Equador a
relação eu-tu não se passa num contexto de
submissão, mas digamos de evidência, que contudo é
vencida pela impotência do próprio narrador face às
próprias forças da natureza das quais ele se sente
incapaz de lutar, e ao mesmo tempo misturadas
pelo deslumbramento que o narrador tem face à força
incontornável do mar, que se transforma num mito antigo
para ele: “Coragem não podia faltar a quem se
aventurasse sozinho sobre uma vaga do Atlântico, sozinho
com uma cabra, ou com o seu burro e um saco de biscoitos
de cada lado de albarda, ou em caravana, em numerosa
caravana, como nos tempos antigos[7].”
Tudo o resto é visto de forma quase desprezível,
sobretudo a humanidade, o outro – a tripulação presente
a bordo - “Mas estes engenheiros, estes homens de
negócios! (…) Lindos, os barcos são lindos, dizem eles.
Ah, não! Estúpidos, estúpidos![8]”.
Assim, mesmo o interior de Boskoop - “(…) esta
superestrutura de insecto e os intestinos do porão que
salganhada sem nome. Que nojo! Gruas vão passando aquela
tralha para uns barquitos chatos (…) Mendigos, vadios,
nem um mastro têm para trabalhar”, surge visto de forma
também enfática e caricata, como, por exemplo, na
referência que faz às Ventoinhas, ganhando estas na
narrativa um sentido literalmente mortífero, já que o
narrador se sente incomodado pelo barulho delas: “Às
cabeçadas, vai-me ignorando cada vez mais até me
desdenhar completamente. Por fim, esconde-se. (…) ei-la
que volta em passinhos de lã, como se eu no fim eu
talvez merecesse um exame complementar, e fixa em mim
todos os seus olhos[9]”.
Fazendo dessas “personagens” imagens nauseantes que lhe
criam espécies de alucinações.
Chegado a Curaçau,
primeira escala, antes de Quito, o narrador passa
do “eu” a “nós”, dando a sensação de que o sentimento de
individualismo, até então presente, se torna mais
comunitário - “ (…) está-se rodeado de todas as coisas,
e o nosso olhar não vê nada, e o nosso cérebro não
compreende nada”.[10]
(…) “Posso dar-vos cem exemplos.”. Estabelece-se também
o primeiro contato com os nativos da ilha, os negros,
não sob a forma de um contacto directo mas graças à
descrição da fisionomia e da proximidade pictórica de
Michaux na relação com eles: “A cara do negro tem uma
estranha expressão. Como a dos orangotangos, que possuem
olhos muito humanos. O negro: uma água na face, é o seu
olhar[11]”.
Denota-se aqui uma descrição pictórica e a relação de um
observador de olhar crítico, subjetivo e atento, jamais
naïve ou tentado a deixar-se envolver pelo sublime dos
contrastes: “(…) esses chapéus de feltro dos
negros, oleosos e gordurentos como peças de mecânica,
que procuram visivelmente perder-se e nunca mais ser
encontrados, fazem lembrar Paris, que só começa a
abrir-se aos estrangeiros nunca antes do terceiro ou
quarto dia.” – trata-se de um sentimento também de
estrangeiro face aos nativos, e uma crítica ao
sublime exótico que para ele é estranho, civilizações
que não merecem um olhar profundamente intelectual, mas
meramente observador da estranheza, da rudez, do atraso
e da diferença que são das restantes civilizações ditas
ocidentais, modernas e evoluídas.
É igualmente nesta passagem
por Curaçau que a escrita do narrador adquire
contornos especificamente pictóricos, como uma escrita
de imagens que expressa o je-moi, acompanhando
toda a narrativa do Equador. Pode-se ver assim,
que toda a primeira parte do livro, respeitante à viagem
antes do desembarque em Quito, começa pelo vazio
– o vazio da ausência que acompanha a vastidão desértica
– metáfora do oceano encarado como um deserto: “Fora
isto, que deserto, este deserto ofegante[12]”
– que deixa como imagem do Oceano Atlântico – o vazio da
alma que se confunde também com a ideia de vazio do
corpo. O mar corresponde assim ao centro desta primeira
parte da narrativa, o espaço-tempo no qual se envolvem o
corpo e a alma do narrador, que quase se exorciza
psicologicamente pelo oceano cruel e invencível: “As
vagas batiam de lado e varriam o convés de borda a borda
(…) os oficiais estavam inquietos. A mim aquilo refez-me
completamente. Muito bem, Atlântico, sabes abanar e
mostrar-te grandioso.”
Todavia, é ao chegar a
Quito, no coração ou centro de toda a narrativa, que
o narrador do Equador – impelido e exorcizado pela
atmosfera e espaço que o envolvem - é conduzido à
profundidade da sua poesia, ao imaginário sensorial e
percetível de Michaux. É nessa sequência, como mais
adiante veremos, que avulta a importância do discurso
como “consciência antropológica”, tendo em conta que por
meio da escrita e arte de Michaux se pode depreender o
seu desejo de comunicação, mas também a dificuldade na
comunicabilidade – problema que se impõe em torno da
socialização e do confronto do eu consigo próprio
e com o meio envolvente por meio de uma subjetividade
não adaptável ao novo contexto e espaço.
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O absoluto do “eu e
do mundo”: O sublime da poesia de Michaux no coração do
Equador
É finalmente na cidade de
Quito que Michaux revela o absoluto do “eu” face ao
mundo novo, selvagem e quase desconhecido – um poeta
controverso na imagem de não se sentir como tal,
chegando a afirmar “ Je ne me considère pas comme un
poète.”[13].
No entanto, como quase todos os poetas, Michaux embebe
pela poesia a sua chegada à terra nova, saudando-a:
“Saúdo-te mesmo assim, maldito Equador[14]”.
É esta a primeira “fala” do poeta viajante com a terra,
não utilizando qualquer termo invocativo ou exclamativo
- “saúdo-te (…) maldito” - mas simplesmente aparecendo
em seguida a descrição da natureza como árida, negra,
imensa e gasta - “Região de Huygra, negra, negra, negra”
- mas mesmo o mistério que se esconde ou podia causar
ao narrador algum deslumbramento, através da perceção
com o natural ou com o desconhecido - “Por que bates tão
forte, coração?” - não o leva a aproximar-se todavia do
sublime ou do maravilhoso, mas sim do banal e da
monotonia: “Mas haverá o quê atrás da montanha?/ Mas
irei ver o quê atrás da montanha?”. Por fim, o narrador
declara “até que enfim chegamos”, com uma contínua
monotonia que persegue o incontestável parecer de
Michaux, descrevendo o que é meramente simples, banal e
comum à terra “virgem” ao viajante, pela qual todavia se
mostra completamente despegado ou distante do “tu” que é
a cidade de Quito, com as suas montanhas ou os
indígenas equatorianos, vejamos: “Pesadamente carregados
caminham os índios nesta cidade encostada a uma cratera
de nuvens (…)/ Esta peregrinação curvada, onde vai?/
Cruza-se, volta a cruzar-se e sobe; nada mais: é a vida
quotidiana.[15]”.
A relação do narrador com o Equador, ou seja, do
eu com o tu, como foi referido no tema
anterior, vai sendo apresentada de forma fluida e
variável – a escrita da narrativa do próprio Michaux
vai variando prolixamente, num monólogo sucessivo do
“eu” consigo mesmo.
Mas de que forma estaremos
perante um absoluto do “eu e do mundo”? Um eu em
fase de recusa de si mesmo e do novo mundo em que
desembarcara, o mundo equatorial? Toda a originalidade
do narrador encontra-se sem dúvida no fruto que avulta
incontestavelmente no eu do poeta, acima de tudo,
pela inevitável poesia que (re)cria e volta a
criar através do mesmo processo cíclico e permanente de
interação do eu com o mundo – Michaux é esse
eu avultado sem precedentes, um parecer de
reivindicações profundas - “ E tu, é ao grande louco que
falas?/É a ele que gritas?[16]”
- notando-se a singularidade do poeta indiferenciado e
em crise existencial, bem como a expressão de
impetuosidade que o narrador exprime diretamente sob a
forma indireta das percepções e sensações do eu – na
sequência dessa criatividade, no sensu lato de
criador, tal como refere Bertelé[17]
“ce qui est d’ailleurs singulier, puisqu’ils ne
faisaient qu’obéir en somme à leur définition de poète
qui veut dire, on le sait aussi, “créateur”. Trata-se da
narrativa de uma expressão artística e elementarmente
rotineira, integrando-se nesta “literatura de viagens”.
E como falar da poesia de Michaux em Equador?
A poesia é a primeira forma
incontestavelmente de expressão artística do eu,
como atrás já foi referido. É no eu de Michaux
que tudo se processa – o estado de vazio é visivelmente
percetível e incontornável no centro de todo o
Equador. O eu confessa-se num estado quase de
perturbação existencial e encontra-se rendido a um
pranto acumulado, que não se desvia dele, exaltado e
contraditório, onde se misturam e se confundem
sentimentos frívolos, tanto em face da vida do narrador
como perante a descrição física da terra, que parece
envolvida por todos esses sentimentos recordados:
« L’Abréviation, la multiplication des sensations,
émotions et représentations artistiques à l’époque
moderne considérées comme fonction de la plus grande
vitesse de déplacement de l’homme au XXe siècle[18] »,vejamos
por exemplo, alguns excertos de poemas [La Cordillera de
los Andes]: “ A primeira impressão é terrível a roçar o
desespero (…)/ Não sejamos tão ansiosos/ sentimos o
enjoo da montanha(…)/ Não venha ao Equador (…)/ Dizem
que estamos a 3000 metros de altitude (…) / É perigoso,
dizem, para o coração, a respiração, o estômago (…)/
Para tudo o que há no corpo do estrangeiro.” (pp.
33-34). É incontestável a sensação de desespero,
que é irreversível no poeta, como que a alertar o
leitor. [O Castelo e o Parque de Pacífico Chiriboga]:
“Estive bem, ontem/ Também posso, portanto, sentir-me
desafogado e satisfeito (…) /Tão perto da natureza, tudo
isto/ Tão perto que seduz até os grous selvagens (…) UM
LEITO REAL/Mas acabamos por partir.” (pp. 41 - 42).
Verifica-se uma mudança de estado emocional do poeta em
que o quadro da natureza acompanha esse delírio e
oscilação em Michaux, próximo de um eu poético,
como em Fernando Pessoa, aliás ambos contemporâneos
um do outro, como nos poemas sugeridos a título
de exemplo: [Nasci Esburacado] “Quito, pequena aldeia,
não és feita para mim/ Preciso de ódio e de inveja, são
a minha saúde/ Um grande consumo de inveja (…) No buraco
há ódio (sempre), pavor também e impotência (…) / E não
é mais que vento, mais que vazio. / Maldição sobre a
terra inteira, sobre toda a civilização, sobre todos os
seres à superfície de todos os planetas, por causa deste
vazio!” (…) / Ah! Como se está mal na minha pele! (…) /É
a minha vida, a minha vida pelo vazio / (…) Se esse
vazio desaparecer, procuro-me, desoriento-me e ainda
pior (…) / (…) Que teria dito o Cristo se fosse feito
desta maneira? (…) / É o avesso do ódio/ E não há
remédio. Nenhum remédio.” (pp. 85 - 86). O eu
debate-se e encontra-se enclausurado em permanente
busca, o que é evidente em quase toda a poesia de
Michaux, mostrando por vezes delírio, solidão, vazio
e incapacidade do eu lidar consigo próprio –
rende-se o coração em luta permanente e numa atmosfera
de desassossego: “Rende-te, coração/ Lutámos tempo de
mais, (…) Oh! Alma minha (…) / Eu, por mim, não posso
mais.” (p. 88). A náusea e a morte acompanham este
dilema existencial, próximo de Maurice Blanchot, em
L’Instant de ma Mort. Michaux, tal como Blanchot,
não deseja morrer, mas apela constantemente à morte,
como fim absoluto do eu – o desejo de querer
libertar-se de qualquer coisa que o sufoca, sentindo a
“alma esburacada”, como se o espaço o limitasse e o
envolvesse nessa obscuridade ofegante – morte como um
fim causal dos fantasmas que envolvem o drama
existencial do poeta, mas em termos próximos do cómico
artístico desesperado, como diz Lawrence Durrell “ – une
poésie du comique désespéré. Dans
un monde peuplé de fantômes, c’était un poète réel[19]”.
Para concluir, a poesia de
Michaux tratada no Equador revela-se exasperada,
densa e fragmentada no espaço de um eu que
se encontra também fragmentado, visto que se debate
consigo mesmo, com o desejo de possuir, por um lado,
e de rejeitar por outro lado ao mesmo tempo. A alma é
ambivalente, o espírito parece transmigrar de um estado
de alma a outro de um modo sucessivo e
inconstante, transmitindo-nos a sensação, a nós leitores
críticos, que em Michaux ocorre uma perturbação de
náuseas. O “eu” parece difuso ou alucinado, mas o “eu”
está consciente de si nessa permanência estática. Refiro
que se trata da procura de encontrar um “eu” artístico e
poético[20], talvez
influenciado pelas correntes surrealistas dos primeiros
decénios do século XX ou mesmo pré-existencialista antes
de Sartre.
Todavia, é também uma poesia
representativa da arte, da pintura, das formas e
das cores a que o narrador alude como se tratasse de uma
tela: “O Equador é atravessado por rios cor de chocolate
(…) em cima cacau a ferver.[21]”
Este é o modo do poeta brincar com a arte parodicamente
considerada por L. Durrell como “(…) sentiment
d’exaspération en poésie , on ne peut pas exprimer veut
dire; on est forcé d’indiquer le chemin!" e revelar aos
leitores da época a forma mais explicita e exemplificada
as características que apresenta o novo mundo para os
ocidentais como ele, mas que nunca estiveram lá. A forma
melhor de aproximar o leitor do seu tempo à realidade
física através de outras comparações, que para além
disso gerou uma descrição incomensuravelmente artística.
Porém, na prosa há um efeito
paralelo mas paradoxal, mais próximo ao mesmo tempo de
um “diário de viagens”, tal como uma constante
necessidade no culto do eu do narrador como é
tratado na poesia. O “je-moi”é permanentemente
referenciado, com a mistura de tempos passado-presente,
catalogados como um “desabado do eu”na referência
análoga a filósofos clássicos, trazidos à luz pelo
poeta ao reflectir consigo mesmo, de modo a pôr em ordem
as suas ideias no dia-a-dia registado e apontado
detalhadamente - “Esta tarde, às quatro horas, é preciso
pagar ao chefe dos carregadores.” / Sexta, 11 horas:
Partem ao meio-dia e meia hora. Vão apanhar o comboio de
Ambato.[22]”
– havendo, contudo uma maior preocupação na descrição da
natureza que o envolve, num olhar dir-se-ia de
inspiração romântica : “O Equador é um país que mostra
terra. Não há outro de que se possa dizer o mesmo (…) A
Europa ostenta por toda a parte o pequeno riso de sangue
das suas casas de tijolos, dos seus telhados, das suas
telhas. (…) A terra do Equador, essa, é castanha ou
negra, ou cor de couro. É a cor da paisagem…à qual nada
se afasta![23]”.
Assim, acaba por se assemelhar também a um “diário de
viagens” em que narra aquilo que lhe preenche a alma, o
ser. A prosa possibilita uma descrição, em suma, mais
concreta, descritiva e menos lírica, isto é, menos
artística e mais “guia de viagens”, a necessidade também
em revelar uma tomada de consciencialização
antropológica, em parte revelada por Michaux como a
“intenção antropológica” de uma literatura de viagens,
que veremos em seguida.
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A importância do
discurso de Michaux para uma “consciência antropológica”
no seu “diário de viagens”
A “consciência
antropológica” é um artefacto, como já foi abordado em
aspectos descritivos, relatados e vividos pelo narrador,
sendo interessante verificar uma relação entre
literatura e antropologia – mesmo não havendo a
priori e a posteriori qualquer tipo da
ciência da antropologia em Equador. Se assim
podemos considerar, acaba por surgir na continuidade de
uma “literatura de viagens”, que se vê impregnada por
um sentido anti-moral, leviano, anti-puritano ou
anti-cristo: “No que diz respeito à religião católica,
quando a estudei, desconfiava muito dos bispos, cónegos
e professores de teologia e filosofia.[24]
(…)" Há, na minha natureza, uma forte propensão para a
embriaguez. Sou um homem em mane e tudo me serve.[25]”
Para falar de
“consciência antropológica” em Michaux é necessário,
antes de mais, compreender o uso do seu discurso e da
sua linguagem. Para que serve esta na interação do “eu”
com o mundo? Como resulta?
Em Michaux, o
discurso é o maior fator de contacto direto que leva a
uma “consciência antropológica”, que porém não se
aproxima nem se distancia do outro. Não há a
mesma necessidade ontológica como no discurso utópico e
moralista nos romances de “literatura de viagens” - como
em Suplemento à Viagem de Bougainville” de Diderot ou
em Robinson Crusoe de Daniel Defoe ou no discurso
imaginário e contemplativo na Carta de Pêro Vaz de
Caminha, de Caminha. Nessa base percetível, a linguagem
é uma ferramenta essencial a todo o discurso, quer na
oralidade, quer na escrita, que possibilita uma forma de
contacto entre o eu e a realidade através
da consciência ou das ideias que dão forma ao pensamento
e permitem a construção de uma linguagem de polifonia[26] .
Começamos assim a entender a importância da linguagem
semiótica de Michaux pelo uso do seu discurso
ambivalente, alternado e confessional, que estabelece
com o leitor e com o exterior por meio do seu “diário de
viagens”: “ Conto contigo, leitor, contigo que alguma
vez vais me ler, leitora.[27]”.Trata-se
de um misto de sombras decadentes e de efeitos de
luminosidade que revelam esperança e uma satisfação
exacerbada do narrador – tanto na prosa como na poesia
do Equador: “Um espírito de alguma dimensão só pode
sentir ódio por uma cidade. Nada é mais desesperante”
[28]“Equador, Equador,
o mal que pensei de ti.” (...) “Dai-me grandeza/ Dai-me
grandeza (…) O desespero é suave[29] /
Suave até ao vómito.”. Desta forma podemos comparar esta
situação com o estudo do filósofo e linguista russo,
Bakhtin, sobre Dostoivéski, tal como, de acordo com
a antiga escola linguística de Bakhtin, “o discurso
sobre o mundo se funde com o discurso confessional sobre
si mesmo[30]”.
Michaux revela-nos, assim, uma escrita descontínua,
fluida, sem começo, meio e fim. Contudo, não deixa de
ser reescrita e detalhada pelas horas e pelos dias – que
formam esse “diário de viagens”. Mas perguntaremos então
nós, como leitores e agora, em que consiste de facto
essa “consciência antropológica”? Qual seria a intenção
de Michaux no uso de um “diário de viagens” em
Equador?
Em Michaux o “eu” burguês,
nascido da modernidade ocidental europeia da primeira
metade do século XX, marca as diferenças culturais na
dialética com o outro não europeu, começando pelo
próprio quotidiano: “O quotidiano faz o burguês e faz os
outros. Contudo, o quotidiano de uns pode desorientar
até a morte de outro quotidiano, quer dizer, o
estrangeiro, por mais banal, cinzento e monótono que
esse quotidiano seja para o indígena.[31]” Para
melhor compreender, assim, a importância do discurso
levado a cabo pela “consciência antropológica”, o
narrador estabelece duas relações do eu →← tu, e a do
nós →← eles.
No primeiro tempo, a relação
do “eu” com o “tu” é assinalada, porém mantendo-se
distante, porque o narrador nunca se chega a envolver
com o índio diretamente nem se mostra interessado em
partilhar a sua divergência cultural. Nota-se a
discrepância entre o eu-tu - “Aqui, como nos
outros sítios, apesar das danças, da bebedeira, dos tons
vivos, da roupa, as fisionomias e os gestos dos índios
não manifestam nenhuma alegria[32] ”
- e só nos apercebemos dessa complexidade na segunda
relação entre o “nós” e o “eles”: “Eu e André somos dois
viajantes bem esquisitos, O paludismo…, ora. O que nós
queremos é dormir. Os nossos mosquiteiros são pequenos
de mais. ”De facto, Michaux alude muitas vezes às
dicotomias “antropológicas” entre o europeu e o nativo,
colocando-o num universo coletivo e reflexivo
desigual em relação ao universo europeu. Vejamos agora o
que se passa com o corpo e a fisionomia do indígena: “
Aqui, as índias têm um porte extraordinário de amazonas.
A forma dos seus chapéus de feltro sem ornamentos é a
causa disso, assim como o ar distante, indiferente, do
seu rosto. (…) Outra coisa: até a uma idade avançada,
essas índias usam tranças, e como não engordam, faltam à
cidade mulheres maduras, matronas, velhinhas. (…) Há com
certeza mulheres brancas de aparência idosa; mas mais
comedida seria se, para se tornar mulher, a índia
tivesse que mudar de raça, e para ser velha índia,
voltasse à sua raça de origem.[33]”.
Quanto aos hábitos alimentares: “O coração da palmeira
mantém-se tento durante seis meses. (…) Mas vêm os
índios e lançam-no por terra com um ou dois golpes
certeiros, anulando-lhe o projecto (…) Cozem aquilo,
comem aquilo: é bom. Aquilo pode-se comer cru.[34]”.
Finalmente, destaque ainda para a paisagem
geográfica - “ O Equador é uma região particularmente
determinada pela altitude, que vai, no centro, de 6200
metros a zero, e pela posição que ocupa no globo, em
parte já indicada no seu nome.[35]”
– e para o clima: “É difícil determinar o clima do
Equador. Nos altos planaltos, as pessoas costumam dizer,
e está certo: as quatro estações num dia[36]”.
O narrador pretende
desmistificar o conceito clássico de “anti-héros”, como
explica Nicolas Goyer[37]:“(…)
les traits d’une anti-épopée des plus iconoclastes.
Le narrateur, antihéros qui ne
rate pas une occasion pour dévoiler ses points faibles,
ses lacunes et le défaut de toute chose, adopte dès les
premières pages un ton anti-solennel, voire facétieux
(…) ” A arte deliberada da escrita
de Michaux é, pois, o reflexo que tenta fazer com ela
a sequência de tudo isso. Compreendendo assim a sua
dialética e a inter-relação evolutiva de Michaux com o
Equador, torna-se fulcral considerar três aspetos
cruciais: 1)viagem “anti-épica” – desmistificação do
clássico e maravilhoso tradicionais da epopeia[38]; 2)
a ausência de um desejo de contacto direto social e
táctil com o diferente – o outro porém lógico, absorvido
e sentido; 3) a “consciência antropológica”
como relação de aproximação da literatura com o
exterior.
Para concluir este tema,
tendo em conta os aspetos já abordados até aqui,
surge-nos de algum modo necessário compreender o
conceito de exotismo que Michaux inculca na sua
narrativa de viagem. Na demanda de como evoluiu esse
pendor exótico, será conveniente saber que importância
pode o exotismo revelar de forma congruente na formação
de uma consciência antropológica.
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O exotismo de Michaux
em Equador: a fonte colossal de uma nova narrativa de
“literatura de viagens”
“Não já o disse noutro
lado. Esta terra levou uma sova de exotismo”
(39)
Henri Michaux, Equador
O exotismo
[40] ao longo de toda
a narrativa, através da prosa e poesia de Michaux,
torna-se na fonte primordial em Equador, impregnando
assim o conceito de “literatura de viagens” ou, se
quisermos, de “diário de viagens” – responsável pela
consolidação de uma consciência antropológica que
Michaux adquire na sua experiência enquanto viajante. É
graças ao exotismo que Michaux intensifica a sua
narrativa e faz dela um “diário de viagens” ,
impregnando-se das divergências e transmitindo-as ao
leitor, sem contudo se imiscuir nelas. Michaux
exorciza-se no mundo selvagem e estranho do Equador, mas
não é essa “estranheza” que vai determinar a
inter-relação do autor com o meio, mas sim os
aspetos que já foram abordados, a importância da
relação entre a arte e a escrita poética de Michaux no
que o envolve em seu redor: as paisagens, as diferenças
culturais (o quotidiano do indígena e do europeu), que o
exotismo alimenta. É na permanência desse estado que o
autor se situa – “êxtase”, servindo de estímulo à
entrada num mundo ontologicamente criado por ele,
revelando assim o Equador, imerso na sua sombra e num
lado enigmático que nunca se chega a perceber exatamente
o que é, e como se constituí, no fundo. Enlevado pelo
exotismo, Michaux leva-nos neste “diário de viagem”
rumo à exploração do já explorado anteriormente, tal
como afirma: “Se dentro de cem anos não conseguirmos
entrar em contacto com outro planeta (…) a humanidade
está perdida. (Talvez nos reste o interior da Terra…)
Sofremos mortalmente; da dimensão, do futuro da dimensão
de que estamos privados, agora que nos cansámos de dar a
volta à terra[41]”.
A terra está gasta, o homem não se cansou de explorá-la
e estabelecer trocas culturais, civilizações a
submeterem outras civilizações, desde os grandes
expedientes aventureiros do Mediterrâneo na Antiguidade,
passando pelos navegadores portugueses e espanhóis, até
às expedições ressurgidas após o Renascimento. Michaux
desconstrói, ao mesmo tempo, a aventura do desconhecido
– a imagem do imaginário exótico “tipificada” até então
pelos europeus face ao outro, não sendo mais do que
diferente e por "diferente" entendamos divergente. A
narrativa, toda ela desconstruída simuladamente, acentua
o lado do exotismo que nos apresenta o narrador através
da sua espontaneidade expressiva, através de certas
emoções frívolas que transfere para a escrita: “Quem não
gostar de nuvens,/ Não venha ao Equador./ São cães fiéis
da montanha,/ Os grandes cães fiéis[42].”
O exotismo está todo ele
patente na descrição personificada do Equador, como um
espasmo pela imagem tropical e exótica que alia o mundo
físico ao mundo espiritual do autor. O embate do
contacto visual padece de uma apreciação um tanto
depreciativa, mas todavia subtil, como se Michaux
entrasse adentro do Equador como num quadro, neste caso
uma tela mental que o autor produz em si mesmo: “Uma
terra ou cidade estrangeira é tão notável pelo que lhe
falta quanto pelo que possui de especial. Assim como de
uma obra-de-arte, dela se pode dizer o mesmo: “ É
bonita, mas faltam-lhe não sei que pormenores familiares
para ser viva[43]”.
É plausível um contrabalançar entre o espírito do autor
e a cidade, e destaquemos a impetuosidade de Michaux ao
dizer: “Um espírito de alguma dimensão só pode sentir
ódio por uma cidade. Nada é mais desesperante. Em
primeiro de tudo as paredes, e depois as imagens que
oferece: encarniçadas de egoísmo, desconfiança,
parvoíce, rigidez. Não é necessário conhecer o código
napoleónico: olha-se para a cidade e fica-se informado[44].
(…) Reencontro o meu homem, o homos sapiens, o lobo que
acumula riquezas (…) Cidades, arquitecturas, como vos
odeio!” Com um salto no espaço e o confronto com o
que é humano, com tudo o que é causticamente símbolo e
imagem do homem, o autor renega, foge, recusa a presença
humana, que contrasta com o universo surreal. Michaux
revela a necessidade de escrever cada instante em que se
deixa envolver pelas coisas, assimilando-as ao seu
espírito, “desconstruindo-as”, mas essas formas aparecem
contudo desfiguradas. Estaremos perante uma escrita
desconstrutiva? Que presenças deixa o exotismo na
narrativa de diário de viagem?
O exotismo supera o estático
do universo de Quito , que não pode mudar senão
pela inter-relação do autor, que se deixa observar pelo
que vê: “Quantas aves! E com cantos de mim ignorados.
Ouvindo-as, parece que estão encantadas de nos ver,
lançando-nos pequenos apelos insistentes[45].”
Indiferente ao universo que se encontra em torno de si,
Michaux é como um “eu” narcísico que perscruta em si a
natureza pela sua arte, o lado metafísico deliberado
pelo lado anti edipiano: “Escrevo uma carta a meus pais.
A necessidade que lhes tenho de me gabar perante eles! É
a minha vingança. Tanto vaticinaram o zé-ninguém (…) Mas
de facto não lhes escrevo a carta. Nunca lhes escrevo[46].”´É
uma escrita voluntária, independente e narcísica: “A
noite passada tomei éter. Que projecção! E que grandeza!
O éter chega a toda a velocidade. Enquanto se
aproximava, dilata desmedidamente o seu nome, o seu
homem que sou eu, prolonga-o no espaço, prolonga-o sem
avareza, incomparavelmente[47]”, Assim
se contrapõe ao lado físico, que jamais é separado
deste: “ O meu Narciso, fi-lo à minha maneira./ Mas há
muito que este diário me irrita.[48]”
Este ensaio tentou assim
relacionar a poesia e a prosa encontradas em Equador de
Michaux, através da fala do “eu” e das dicotomias deste
“diário de viagens”. Não se depara com a monotonia,
porque o autor nos incute toda a fluidez que a narrativa
do livro apresenta. Onde está o fim em Equador? Não se
sabe, a alternância entre o cá e o lá revela uma
oscilação do sujeito, entre um comprazimento e
uma insatisfação, num processo sinuosamente exposto ao
parecer que o narrador dá e estabelece.
Longe de exultações, as
emoções acompanham todavia um estado por vezes quase de
embriaguez, perante o universo estranho que Michaux
encara. O exotismo, como foi referido, implica sem
dúvida a passagem para o outro lado – deserto de
sensações, que porém não penetram o “eu” a
fundo, ocorrendo uma separação entre o espiritual e o
físico e corpóreo.
O discurso da escrita de
Michaux torna-se uma importante soma de todos os factos
concebidos acerca do Equador, para uma imagem
conceitualmente feita relativa a essa ideia de
Equador. O lado pictórico deixa presente a sua
marca por vezes indiferenciada, mas quase
sempre profunda, do narrador, no seu contacto com o
Equador. Há um lado poético que eleva o drama
existencial a uma luta infindável de desafios próprios
de um combate de outros poetas contemporâneos.
Equador
reflete indubitavelmente a modernidade. Michaux é
moderno e está impregnado pela modernidade ao longo da
sua narrativa alternante cíclica e de um quotidiano
rotineiro, deixando ver a contiguidade e os tempos
misturados entre si. Que diremos desta viagem? Terá
gostado Michaux, de facto, do Equador? Ao que parece, o
autor não exprime senão o desejo de viver todo o agora,
mas de forma alternativa, sem querer negar o
forte efeito provocado pela viagem e pelo mundo que
percorre, mas que no fundo não alcança. Por isso, tal
como citei no inicio deste ensaio, no comentário de
Michaux: “Les poètes voyagent, mais l’aventure du voyage
ne les possède pas”. No fundo, Michaux prevê a
multiculturalidade futura: “Não sou grande profeta se
disser que dentro de pouco tempo a raça branca adoptará
a tatuagem[49].”
É também através desse aspeto de “consciência
antropológica” que a leitura deste estranho diário de
viagem nos marca de um modo pungente.
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Bibliografia
Bertelé, René, Henri Michaux par René
Bertelé poètes d’aujourd’hui ed.
Seghers, Paris, 1969.
Ceia, Carlos, s.v. "Epopeia", E-Dicionário de
Termos Literários, coord. de Carlos Ceia,
ISBN: 989-20-0088-9, <http://www.edtl.com.pt>,
consultado em Dezembro de 2010.
Durrell, Lawrence, Henri Michaux,
ed. Fata Morgana, 1990 (sem local de
edição).
Goyer, Nicolas, Essai: Petits
Soudures, Paris, 2005.
Michaux, Henri, Equador, ed. Fenda Edições
Lda. e edições Gallimard, 1998, Direitos reservados
(sem local de edição).
Vale de Gato, Margarida, Antologia Henri
Michaux, ed. Relógio d’Água Editores,
Santa Maria da Feira, 1999.
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|
[1] H.
Michaux, Equador p. 13
[6] Margarida
Vale de Gato, prefácio à Antologia Henri
Michaux, (Nota de Tradução) p. 7
[13]
Citação de Michaux em
« D’autres voyages ou sa vérité dans une
tapisser » René Bertelé : Henri Michaux
Poètes d’aujourd’hui p. 42
[17]
René Bertelé, Henri Michaux
par René Bertelé, op cit p. 39
[18]
Nicolas Goyer, essai petits
soudures, Henri Michaux, Œuvres
complètes, op. cit., p. 9.
[19]
Lawrence Durrell, Henri Michaux, ed Fata
Morgana p. 13
[20] M.
Bakhtin, A problemática da poética de
Dostoiévski “A verdade sobre o mundo,
segundo Dostoiévski é inseparável da verdade do
indivíduo”
[22] Henri
Michaux, Equador p. 108-113
[26] Polifonia
conceito de Dostoivéski que Bakhtin elogia em
A problemática a poética de Dostoivéski por
ter inaugurado um novo género literário, repleto
de vozes.
[27] Henri
Michaux, Equador, ed. Fenda Luminosa p.
71
[30] Mikhail
Bakhtin, A problemática poética de
Dostoiésvki, p. 77
[35]
Ibid., p. 141, 80-81
[37]
Essai de Nicolas Goyer,
Avant-Propos Les “Petites Soudures” p.130
[38] Ver Hélio
Alves s.v “Epopeia” E-Dicionário de Termos
Literários, coord. de Carlos Ceia,
ISBN: 989-20-0088-9,
<http://www.edtl.com.pt> Designação de origem
grega para o género literário também chamado
poesia épica, ou poesia heróica, ou
ainda simplesmente épica (como
substantivo), que denota um texto poético,
predominantemente narrativo, dedicado a
fenómenos históricos, lendários ou míticos
considerados representativos duma cultura. (…)
Exemplo Os Lusíadas de Camões. Epopeia
e romance (Lukács; Bakhtin) - O universo
épico pertence ao passado absoluto, é, por
natureza, inacessível à experiência pessoal e
não admite pontos de vista». Bakhtin contrasta
deste modo a epopeia com o dialogismo ou
polifonia do romance. (…) os estudos mais
recentes sobre a poesia épica da Antiguidade
levam à conclusão de que «a opinião de Bakhtin
sobre a natureza não polifónica da epopeia é
simplesmente falsa» (Boyle). O cómico, o
fantástico, o plural, o íntimo, o subversivo,
podem ser qualidades atinentes também à épica.
[39] Henri
Michaux, Equador. p. 35
[40]
Dicionário de Língua Portuguesa Porto Editora, 5
ed “Exotismo”: s.m. qualidade de exótico; coisa
exótica; estrangeirismo. p. 617
[41] Henri
Michaux, Equador, “A Crise da Dimensão”
p. 35
[42]
Ibid. [La Corillera de los
Andes], p. 34
[49]
Ibidem,
[Equador] p. 159
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HOMENAGEM DO TRIPLOV A ERNESTO DE SOUSA |