REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova Série . número 66 . agosto-setembro . 2017 . ÍNDICE

 


Nicolau Saião (Portugal).
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...). nicolau49@yahoo.com

NICLOLAU SAIÃO

Marie Noël

   Nascida em Auxerre (1883), onde viria a falecer (1967) e viveria praticamente toda a sua vida, Marie Noel é uma das consciências místicas mais complexas, de cariz fortemente interrogativo e mesmo libertário, da poesia francesa e europeia.

   Como é referido na introdução à colectânea – “Madrugada secreta” – donde extraímos os poemas que aqui se dão a lume – “dois factos capitais marcam a sua vida. Com vinte e um anos sente uma paixão inconfessada por certo rapaz socialmente inferior (como então se fazia questão de sublinhar) cuja fugacidade a deslumbrou e feriu para sempre. Teria deixado Auxerre no próprio dia de Natal de 1904 “caminhando para destino obscuro e doloroso”.

   Esse destino foi o seguinte: o jovem madeireiro – de acordo com o que se soube a imagem mesma da graça, da delicadeza simultaneamente humilde e varonil, da apaixonante inocência em suma – com os seus companheiros duma pequena equipa de trabalho foram assaltados, no caminho para outra terra, por uma quadrilha de ladrões que o mataram à pancada. Dois dias depois ela recebe a estarrecedora notícia – pouco antes de achar “morto na cama o seu irmão mais novo, Eugénio, que contava apenas doze anos”.

  Acometida por violentíssima crise, recolhe-se ao seu quarto. Durante um par de dias não responde a nenhuma solicitação dos familiares atormentados, não come nem bebe, não trata de si. Bichinho enovelado na dor e ferida no mais fundo da sua alma e corpo, como que faz o luto cuja memória não mais se apagará do seu coração.

  Ao terceiro dia sai, como que transfigurada. Faz as suas abluções, come e encara os parentes com lhaneza e serenidade: nascera Marie Noel. Como é referido na introdução aludida: “ Confessa-nos ela: Marie Noel é mais ainda o meu nome de desgraça. MARIE (mara) amargura mortal da minha raiz. NOEL, o meu milagre, a minha flor de alegria”. 

  E é esta poetisa, em cuja obra se mescla a simplicidade rítmica e a riqueza de pormenor, os perfumes do solo e da natureza numa consciência ecológica avant la lettre, um sentido excepcional do discurso narrativo que nunca a prendeu a qualquer exagero de imagens nem de crença, que aqui se apresenta com a proverbial estima.

MARIE NOËL

Poemas

 Tradução de Manuel Simões

 

RONDA DOS MESES

Sinto ternura por cada mês

como se se tratasse de um ser.

E vejo-os cada um com sua figura.

 

Março é um recém.nascido,

um pouco feio, a gritar e a crescer,

a olhos vistos.

 

Abril é um menino maravilhoso,

que colhe malmequeres sem pé

e corre atrás da abelha.

 

Maio é uma adorável rapariguinha,

trémula e branca,

que faz a sua primeira comunhão.

 

Junho um noivo, um amante cujos beijos

apaixonam toda a terra.

 

Julho acalma.

Já casou.

 

E todo o resto do ano

maduro, frutuoso, paciente

recolhido

é apenas a mãe…

 

E a esperança de, em Março,

dar outra vez à luz

a Primavera!

 

O SENHOR

 

Também eu brinquei ao criar.

E o mundo é belo pela minha fantasia.

 

Não me limitei, por virtude,

à candura das flores brancas

mas lancei à terra

sementes de todas as cores.

 

Poderia ter-me contentado

com flores boas e honestas:

a camomila, a borragem,

a salva, a malva, a tília, o hipericão,

a confraria das plantas salutares

em que toda a gente confia.

 

Mas inventei também a dedaleira,

o acónito, a cicuta, o heléboro,

o estramónio, a mandrágora,

os cogumelos venenosos,

todo o bando das ervas maléficas

que não têm boa reputação.

 

Contudo, também elas

têm de fazer o seu bem,

 o bem que eu lhes confiei em segredo,

que elas segregam às escondidas

e que os magos, os sábios,

- gosto de lhes fazer surpresas -  

descobrirão, se procurarem bem.

 

Simplesmente digo ao homem:

- Não as proves sem pedir conselho.

 

Mas aos animais selvagens

não digo nada.

Eles estão mais perto de mim.

Sabem.

 

O DIA-A-DIA PROSAICO

 

Quantas vezes

a poesia subiu em mim

como água em borbotões

a querer romper a pedra

da sua fonte cerrada!

 

Ai de mim!

Na hora da graça tudo se lhe opunha:

a casa que, exactamente neste momento,

precisava de um bom serviço,

a velha mãe que necessitava de presença,

os irmãos e irmãs

que precisavam de palavras,

o menino que precisava de música e estampas,

e todos os outros vizinhos,

por sua vez,

cada um a querer a sua coisa.

 

Ela a minha poesia,

tinha necessidade de horas

- eu repeli-a.

Terá tido apenas

o que sobrou dos outros.

 

Salvo em tempo de doença,

o melhor de todos,

aquele que ninguém

me podia tirar.

SERVIÇO HUMILDE

 

Se eu fosse planta

não gostaria de ser

daquelas plantas úteis

demasiado ligadas ao homem.

 

Nem aveia, nem trigo,

nem cevada, encarcerados

sem poderem sair dum campo

regulamentado

- nem sequer deixam às searas

distrair-se com os seus pica-peixes –

nem principalmente

estes legumes submissos e educados,

cenouras alinhadas,

feijões dirigidos com varinha,

saladas forçadas a empalidecer

apertando-lhes o coração,

quando está tão bom tempo ao redor

e elas preferiam desabrochar livremente.

 

Quando muito

aceitaria ser erva de tisana,

serpão ou malva,

contanto que fosse num desses altos

batidos do vento,

onde só os pastores as podem colher.

 

Mas gostaria ainda mais de ser urze,

genciana azul, espinheiro,

se fosse preciso, cardo abandonado no campo,

ou ainda um cogumelo nem venenoso

nem bom demais para comer,

que nasce no musgo da manhã

no fundo mais negro do bosque,

que se torna cor de rosa

sem que o vejam

e morre sozinho no dia seguinte

sem intervenção de ninguém.

 

E, se fosse um animal,

não gostaria

de ser da casa nem da quinta,

nem sequer a cabra

que se prende a uma estaca

e que depois

se mete no curral para ordenhar

ou uma dessas galinhas de capoeira,

misturadas aos negócios do homem

e que podem dizer uma à outra:

- Ali produzi quinze soldos

e valho vinte francos por quilo…

 

Não! Não!

Antes queria ser lebre,

ou raposa,

ou corça,

ou rouxinol

que só encontram o homem

no dia em que ele os mata.

 

E terei sido, toda a minha vida,

animal dos mais domésticos,

besta de carga,

cão preso,

canário na gaiola.

Ou legume na sopa.

 

Era a vontade de Deus. 

 

in “Madrugada secreta”                                                     

 
HOMENAGEM DO TRIPLOV A ERNESTO DE SOUSA
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
EDITOR | TRIPLOV  
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Série Anterior  
Nova Série | Página Principal  
Índice de Autores  
SÍTIOS ALIADOS  

Revista Incomunidade

 
Agulha - Revista de Cultura  
TriploV Blog - o blog do TriploV  
triplov.com audio (SoundCloud)  
Apenas Livros Editora  
Domador de Sonhos  
Canal TriploV no YouTube  
triplov.com audio (SoundCloud)  
António Telmo-Vida e Obra  
Triplov.com RTF  
   
   
   
   
   
   
 
   
   
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL