Tenho no
crânio uma flor selvagem, em vez do cérebro.
Espinhos de haste e folhas vermelhas e brancas com
reflexões venenosas. Na minha
cabeça, ideias escuras para perfumes inebriantes,
vermes trançando as bocas dos poetas. Esta noite
canto salmos e bebo cachaça, lembrando-se do seu
sorriso, ele é como um molde de argila impregnou-se
não só na minha memória traiçoeira, está entre meus
dedos, minha pele, meu corpo, meu cheiro, meu
desejo.
Minha
história começa com você de braços cruzados e
deitados no parapeito da janela, vendo aquela árvore
frondosa, com galhos alongados como se fossem
tentáculos de um polvo faminto esparsos
que se cruzam e se encontram e unem e debatem para
alcançar os ares e respirar. Era uma figueira. Fazia
sombras não só à frente da casa, mas suas folhas e
veias alargavam e ocupavam metros de sombreados.
Joana ficava todos os dias a olhar a árvore, a
sombra, os galhos e as folhas.
Pássaros faziam seus ninhos, botavam, chocavam e lá
nasciam sabiás, joões de barro, pintassilgos e nas
próximas estações lá estavam eles novamente, alguns
até aproveitavam os ninhos já feitos. Galhos
secavam, caiam, outros nasciam, folhas secavam,
caiam e outras nasciam vigorosas. A figueira se
renovava, como uma cobra, desfazia de sua pele seca
e se mostrava mais vigorosa e alvissareira. Os
braços se alongavam mais e mais, até alcançar a casa
e a moça na janela.
Joana não
se renovava. Sua vida era um quase. Nasceu naquela
casa. Sua vida desde o nascimento foi um quase.
Todos que acompanharam a gravidez de sua mãe, diziam
que ela estava quase grávida e quando deu à luz,
quase o bebê não nasceu. Assim,
foi a trajetória da menina Joana.
Nunca
saiu daquele rincão seco, léguas e léguas da cidade.
Hoje, com seus quase 25 anos, não conhece a cidade,
a luz elétrica e nem o amor. E nem mais ninguém além
dos seus pais, e nem o ar fora da
casa. Sentia prazer e vivacidade ficar debruçada se
alimentando da árvore.
Quase a
perseguiu a vida toda, como se fosse uma entidade ou
um membro da família. Uma palavra indefinida. Uma
interrupção na estrutura linear da vida. Um vocábulo
indeciso. Um diapasão irritante em confronto com o
antes e o depois da voz dita. Vive na retaguarda de
uma covardia ululante. Chega a ser abissal sua
construção e suas significâncias.
O devir é sombra nas suas costas marcadas de desejos
quase.
Há quase
cem anos, sim, quase! Plantada à porta de um
casebre. Uma muda raquítica e despelada. Quem a
visse, jamais pensaria que um dia seria uma grande
árvore frondosa, com galhos fortes, lisos, sinuosos
e troncos esgarçados e firmes como pedras. Era uma
figueira. Quem plantou não sei. Está lá, resoluta,
com suas raízes à mostra que rasgam a terra para
respirar.
As
palavras rasuradas sangraram esta casa, a dor de ser
quase, não inteira e nem pedaço. Ficou lá, em um
lugar quase.
Havia uma
menina de vestido amarelo, a única foto que ficou,
entre escombros e silêncios intermitentes e
esculpidos para perfurar os pontos de luz que
ousassem entrar naquela casa.
Ela
desmente a brancura dos fantasmas, e em torno dela o
mundo se desvanece.
Joana se
fortalecia à sombra daquela figueira. Era imperativo
vê-la todos os dias, ela era uma extensão da árvore
ou a árvore uma extensão da moça.
Joana conhecia muito bem
aquela figueira , como se conhece um mapa à procura
de um tesouro, em terras nunca dantes vistas.
Qualquer mudança, seja ela climática ou não, ela
sabia, acompanhava ávida e vivaz. Houve um tempo que
veio uma seca intermitente, de longos meses, em que
a chuva ali não passava, foram dias e dias longos e
vingativos com as ranhuras da casa e rachaduras da
terra. A figueira ficou sem ar, sem forças, seus
galhos viçosos e eriçados e firmes, suas folhas
vistosas e verdes deram lugar a um corpo desfolhado,
murcho, quase sem vida, quase sem ar, quase sem
forças. Aquele tronco enorme como se fosse uma
coluna grega estava quase morto.
Joana adoeceu. Joana não tinha mais a sombra para
cobrir como uma manta seu corpo virginal; não se
sentia mais nutrida pelos braços alongados da
árvore; seu sorriso moldado foi rachado, agora está
seco, precisando de gotas de chuva.
Pela
primeira vez, desde que quase nasceu, agora aos
quase 26 anos e quase morta, não está mais na
janela, tinha saído. Estava deitada, em uma posição
fetal às raízes da figueira. Precisava de ar, se
restabelecer, ganhar vida, e ali ficou, dias e
noites se passaram, não comia, não bebia, se
definhava como a árvore. Não havia mais pássaros
e cigarras e lagartos e lagartas e plantas
parasitas, só a sequidão consumia aquele local, a
figueira e a moça Joana.
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