HOMENAGEM A ERNESTO DE SOUSA
REVISTA TRIPLOV

de Artes, Religiões e Ciências
nova Série . número 66 . agosto-setembro . 2017 . ÍNDICE









Maria Azenha
(Portugal). Poeta, pintora, ensaísta. Foi professora universitária. Tem mais de duas dezenas de livros publicados.  
   
MARIA AZENHA

A toalha do poeta

A tela “A Toalha do Poeta” servirá como mote para lançar alguma poesia.

Lembremos que quando um lutador (o poeta) está a ser massacrado, o treinador lança uma toalha para o ringue, indicando que o combate acabou.

A lide inicia-se, assim, desde o primeiro até ao último poema.

 
Maria Azenha, "A toalha do poeta". Óleo sobre tela. 2017
 

I - Ars Prosetica 

 

A romancista estava a escrever um capítulo de um romance

E a ter dificuldade em descrever uma rapariga haitiana.

Decidiu “atirar a toalha”.

A rapariga haitiana apanhou a toalha

E enrolou-a à volta do corpo.

Mas estava na hora do seu banho!

Pegou na toalha e devolveu-a

À romancista, que há muito se levantara

Da sua cadeira e deixara a sala, de modo

Que o resultado final foi uma toalha amarela,

Amarrotada e desarrumada na cadeira. 

 

Ron Padgett
Trad. de Francisco Craveiro de Carvalho 

Fontes:

http://triplov.com/letras/francisco_jose_craveiro_de_carvalho/
Ron_Padgett/index.htm

http://www.ronpadgett.com

II -  Mulheres - móveis 

 

As mulheres seguem visivelmente encurvadas

com a testa inclinada

quase até ao chão.

 

Caminham

passo a passo,

descalças,

pela madrugada.

 

Como seres de carga

Transportam, 

à cabeça,  

móveis.

 

O que me comove não são as suas lágrimas

mas a sua solidariedade,

todos os dias,

sempre

igual. 

maria azenha 

(Uma homenagem à duríssima profissão das "carreteiras" que transportavam, a pé, as peças de mobiliário produzidas nas oficinas de Lordelo.)

III - Educação Para o Ócio 

 

Hoje vou matar alguma coisa. Qualquer coisa.

Fartei-me que me ignorassem e hoje vou ser Deus.

É um dia como outro qualquer, u

ma espécie de cinzento com tédio a abalar as ruas.

Esmago uma mosca contra a janela com o meu polegar.

Fazíamos isso na escola. Shakespeare. Era noutra

língua e agora a mosca está noutra língua.

Expiro talento no vidro para escrever o meu nome. Sou genial.

Eu podia ter sido tudo, com metade da sorte.

Mas hoje vou mudar o mundo. O mundo de alguma coisa.

O gato evita-me. O gato sabe que eu sou genial e escondeu-se.

Despejo o peixe dourado pela pia abaixo. Puxo a corrente.

Vejo que isso é bom! . O periquito entra em pânico.

Uma vez em quinze dias, vou à baixa picar o ponto do desemprego.

Eles não valorizam o meu autógrafo.

Já não há mais nada para matar. Ligo para a rádio

e digo ao homem que está a falar com uma superestrela. Ele corta-me.

Pego na nossa faca do pão e saio.

De repente a calçada reluz.

Toco no teu braço.  

 

Carol Ann Duffy

Trad. Ana Filipa Oliveira

(Carol Ann Duffy, nascida em Glasgow a 23 de Dezembro de 1955, e recentemente nomeada a primeira poeta laureada, é uma das mais influentes poetisas britânicas da contemporaneidade.)

Outras informações: http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/346/1/21446_ulfl071262_tm.pdf

IV - Des(va)rio 

 

As pessoas fazem todos os dias poemas incríveis

Atravessam a ponte de Westminster

Lembram-me os poemas de Ann Duffy 

que agora estão correndo no vácuo

 

maria azenha 

Sobre a notícia do ataque na ponte de Westminster, 2017/março/24

V- Consumismo 

 

deixam cartas de desespero no chão

 

eles não sabem

quando estão aflitos

 

entram numa loja e compram sapatos.

 

maria azenha 

VI - Dia Internacional da Varanda

 

DIA INTERNACIONAL DA VARANDA:
da Mulher,
da Colher,
de Flaubert,
de Almoster,
de Alenquer,
de Aluguer,
de Qualquer,

aspas
aspas
raspas

aspas
aspas
caspas

aspas
aspas
aspas

basta!

“os peixinhos- de- prata e os camarões ainda são parentes”,

disse-o Adília Lopes* 

Estas são as primeiras páginas da física quântica.
Adão e Eva: um vaso com meninos e plantas.
 

maria azenha

VII - Para Aglaja

 

Imagino o céu como os olhos de Aglaja

que olham para baixo

num derradeiro adeus.

O meu coração começou a bater

na respiração extasiante de Deus.

Imagino onde ela possa dormir

sem ler nem escrever

nem ter, no ar, opinião.

Arrisco apreender o seu último poema:

é tão grande como quando oramos.

 

maria azenha 

Aglaja Veteranyi  foi uma escritora romena de expressão alemã, nascida em Bucareste, Romênia, a 7 de maio de 1962. Morreu a 3 de fevereiro de 2002, afogando-se num lago de Zurique.

VIII - Os girassóis de Van Gogh

 

O Papa escreve à Mamã em documento encriptado.
Sobre a guerra? Sobre o mundo?
Ou sobre a poesia de Cristo?
(as notícias mais lidas são acerca de futebol)
O Amor terá password?

 

 

E os girassóis de Van Gogh? 

 

 

 

maria azenha

 

IX - Marlene- Antes de se deitar

 

Marlene - Antes de se deitar
beija de pé trinta santinhos
que estão na cómoda do quarto


encostados uns aos outros
lado a lado
e a uma boneca de pano
não podem olhar para o espelho


há uma cama muito estreita
e uma mesa de cabeceira
com um candeeiro a fingir de estrela
por cima do presépio


os livros de Marlene muito magrinhos
vão fazer quase cem anos
estão montados numa estante feita de madeira
com os pãezinhos de Santo António e resmas
de papéis torcidos

o meu pai diz-me que isso é um perfeito Disparate
que um dia vou ser castigada
a televisão de Marlene está sempre no mesmo sítio

Marlene Nunca escreveu uma carta à júlia pinheiro
nem à fátima lopes nem ao sr. aníbal
porque em pequena foi obrigada
a fazer cópias e camisolas e outros trabalhos forçados

hoje olha para as pessoas
aos encontrões de santinhos
e faz muitos cachecóis para o frio
eu penso que estou a abraçar Marlene
na rua do Crucifixo

depois disto é preciso ter muito cuidado
Marlene diz que as baratas este natal 

andam muito cabisbaixas

as lojas estão cheias de cocó de pombos

só me vem à memória a assunção
se calhar, quem sabe, uma encarnação

do Esteves da Tabacaria

Marlene anda muito triste e aborrecida
porque ninguém lhe liga e a santa casa da Misericórdia
manda-lhe comida a mais

a irmã Carminho tem muitas vertigens e a mania de partir a cabeça
está quase sempre na prisão do sofá
com o saco de água quente nas mãos
debruado a ponto cruz pelo espírito santo
vai fazer noventa e nove anos
está cheia de pressa para conhecer s. josé

tenho muita pena de Marlene e do menino Jesus
porque não têm nenhuma doença mental

às vezes penso que deviam ter conhecido o Edward Hopper

 

maria azenha

 

 
 
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