REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova Série . número 66 . agosto-setembro . 2017 . ÍNDICE

 
 

Jorge Pais de Sousa (Portugal)

Investigador do CEIS20 da Universidade de Coimbra

Bolseiro de Pós-Doutoramento da FCT

 

JORGE PAIS DE SOUSA

 

O Manifesto de Aniversário da Arte

- Breve ensaio

A seguir à crise académica de 1969 e num tempo em que vigora a censura prévia em Portugal, e no quadro mais geral que foi o estertor da guerra colonial para a ditadura do Estado Novo corporativo de Marcelo Caetano, vem a público, em Coimbra, o manifesto “Uma Festa para Celebrar o 1.000.011º Aniversário da Arte”. Nele se convocam todos os “Queridos Amigos” para festejarem a arte “não convencional”, a 17 de janeiro de 1974, no Círculo de Artes Plásticas.

A análise comparada das caraterísticas formais e de conteúdo do documento original, cuja versão digital publicamos junto, leva-nos a considerar estarmos perante um manifesto de vanguarda. Apoiamo-nos, para este efeito, na formulação teórica de Luís Trindade que considera que um manifesto é “a marca”[1] de uma vanguarda política ou estética. Trata-se de um tipo de texto que visa intervir no espaço público e, como tal, pretende impor-se ao leitor. Ao contrário de outros textos não espera ser lido, mas pretende fazer-se ouvir. Estes são, pois, “o seu valor político e a sua especificidade literária.”[2] Exemplos históricos deste tipo de textos são o “Manifesto Comunista” (1848) de Karl Marx e o “Manifesto Futurista” (1909) de Filippo T. Marinetti. 

O documento original é um datiloescrito em duas páginas numeradas de texto - aqui e ali emendado, rasurado, com uma palavra acrescentada, e com um endereço postal e telefónico à margem inscrito a esferográfica -, sendo que ocupa duas folhas cujo verso está em branco. Não está datado e foi escrito num estilo que consideramos ser um misto de carta convite e, em simultâneo, de comunicado. O que lhe confere também uma identidade e especificidade estilísticas próprias. E de quem é a autoria? Trata-se de um coletivo encabeçado e composto por Robert Filliou – existe, curiosamente, mais uma linha em branco não dactilografada a separá-lo dos seguintes nomes - Ernesto de Sousa, Alberto Carneiro e João Dixo. Podemos afirmar, deste modo, que estamos perante um manifesto de autoria internacional, porquanto conta com a colaboração de um cidadão belga e de três portugueses, sendo significativo que antes do nome de Filliou alguém acrescentou a esferográfica a palavra “com.” Não conhecemos a caligrafia de Ernesto de Sousa, mas é bem provável ter sido este o responsável pela revisão e emendas introduzidas no texto.

A leitura do primeiro parágrafo esclarece o leitor sobre a razão que está subjacente à iniciativa de organizar a festa do aniversário da arte. E pela explicação detalhada percebemos que Ernesto de Sousa é o principal redator do texto, pois somos informados de que no ano anterior, em 1973, um “amigo nosso”, Robert Filliou, ao escrever o poema “História Segredada da Arte” teve a intuição de que tudo acontecera num aleatório dia e data de 17 de janeiro de há um milhão e onze anos atrás. Teria sido nesse tempo mítico e originário, em que está cientificamente comprovada a existência do homem, que teria começado a vida humana e com ela a arte. Reparemos, do ponto de vista formal, como estão redigidas estas duas frases desafiadoras:

 

HÁ UM MILHÃO E ONZE ANOS ARTE E VIDA EXISTIAM E CONFUNDIAM-SE... PORQUE NÃO CELEBRAR ESTA DATA?...

...numa FESTA sem arte (convencional) mas que seja ela própria uma verdadeira afirmação da identidade possível e necessária entre a arte e a vida?[3]

 

Constatamos que elas estão escritas com o recurso a dois elementos formais, um de continuidade e outro de rotura com os ultimatos futuristas escritos por Álvaro de Campos – o heterónimo futurista de Fernando Pessoa - e Almada Negreiros. O elemento de continuidade é o recurso a palavras escritas em maiúsculas. Recorde-se que, em termos históricos, os ultimatos da vanguarda futurista portuguesa surgiram em público numa conjuntura em que decorre a I Guerra Mundial, Portugal participa nela com mais de cem mil homens a combater em Angola, Moçambique e na Flandres francesa. E é neste contexto que, em vésperas do golpe de Estado de Sidónio Pais que instituiu uma ditadura, a 5 de dezembro de 1917, que derrubou o governo legítimo de Afonso Costa, exila o presidente da República Bernardino Machado e suspende a Constituição da República de 1911, que é publicada a revista Portugal Futurista. Ao recuperar os acontecimentos traumáticos do ultimato inglês de 1890 a Portugal, os ultimatos de Pessoa e de Almada seguem a lógica futurista que lhes está subjacente e que é a da apologia do Super-Homem de Nietzsche e da estética da guerra, daí o uso de uma linguagem afirmativa e impositiva. Neste sentido recorrem, frequentemente, ao uso de palavras escritas em maiúsculas para serem lidas em voz alta.[4]

Enquanto o elemento de rotura com os ultimatos futuristas portugueses é o recurso à frase interrogada. Percebemos que os “operadores estéticos” - para utilizar a terminologia de Ernesto de Sousa - signatários deste manifesto não estão “cheios da verdade” como estavam os futuristas. Ao contrário, duvidam dela e interrogam-na. E propõem-se, em espírito de festa, celebrarem coletivamente o aniversário da arte. E neste sentido manifestam mesmo um espírito antiguerrista.

Outro aspeto que dá uma identidade internacional a este manifesto é ele propor-se realizar o “happening” do aniversário da arte de Coimbra, a 17 de janeiro de 1974, em articulação com iniciativas semelhantes organizadas noutras cidades de países estrangeiros.

 

Para isso NÓS vamo-nos reunir no C.A.P. em Coimbra, sem distinções culturais ou outras e com a ideia maior de um convívio simples, gratificante e generoso.  ESTAR JUNTOS, alegremente e amigavelmente – saber que isso mesmo se verificará em mais alguns outros pontos do mundo, num espírito comum. Já o ano passado em Aix-la-Chapelle se celebrou esta festa... Este ano repetir-se-á na mesma cidade, em Berlim (onde estará Robert Filliou), em Coimbra, no Canadá, e noutros sítios. Enviaremos a uns e aos outros as nossas congratulações e lembranças, a pretexto da arte para que seja possível que ARTE e VIDA se confundam em vez de se divorciarem: “A ARTE DEVE VOLTAR AO POVO, AO QUAL ELA PERTENCE.”[5]

 

Este trecho mostra o papel decisivo que Ernesto Sousa tem na conceção e redação deste manifesto, bem como na iniciativa de organizar também o aniversário da arte em Portugal. Devido à sua amizade com Filliou sabe que este organizara em 1973, pela primeira vez, a festa do aniversário da arte na cidade alemã de Aix-la-Chapelle.[6] E agora está articulado com o “petit” Robert para organizar a iniciativa de Coimbra de 17 de janeiro de 1974, por isso sabe que naquele mesmo dia Filliou estaria também na Alemanha, mas na cidade de Berlim e não em Aix-la-Chapellle. Importa sublinhar que neste segundo ano de celebração do aniversário da arte, não foi só no continente europeu que tal foi feito, mas também no Canadá e “outros sítios” se iria festejar coletivamente “ARTE e VIDA.”

Outro aspeto crucial é haver consciência política de que é num ambiente de democracia participativa que são convidadas todos as pessoas e os amigos para festejarem a arte e a vida. É que está escrito, primeiro, que vamos “reunir... sem distinções culturais ou outras...” E acrescenta-se a natureza democrática da arte, em maiúsculas, quando se afirma que esta deve regressar ao povo ao qual pertence: “A ARTE DEVE VOLTAR AO POVO, AO QUAL ELA PERTENCE.” Ou seja, na celebração da arte e da vida propõe-se que ela seja feita em conjunto, sem qualquer distinção cultural ou de outra natureza. Os pressupostos políticos da democracia participativa estão subjacentes à vanguarda Fluxus e, concretamente, à intervenção pública de Filliou. É neste sentido, também, que o manifesto internacional do aniversário da arte rompe, politicamente, com a tradição nacionalista dos ultimatos futuristas, e por ele se antecipa, a nosso ver, o 25 de abril para a arte contemporânea em Portugal. É que o autor do Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, importa não esquecer, é o mesmo que escreve e pronuncia, em plena Ditadura Militar, a conferência Direção Única[7] (1932) e desenha, por exemplo, o cartaz para o plebiscito à Constituição do Estado Novo Corporativo de 1933 – onde se pode ler “Nós queremos um Estado forte!” – inaugurando uma longa colaboração com o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), dirigido pelo antigo editor da revista Orpheu António Ferro, e termina a sua vida como procurador à Câmara Corporativa, em representação da corporação das artes.

Após o 25 de Abril, Ernesto de Sousa publica um artigo na Vida Mundial, a 14 de novembro de 1974, em que escreve que o “caráter de criação coletiva e permanente de festa, foi também o objetivo do ‘Aniversário da Arte’ realizado em 1973 em Aix-la-Chapelle, e secundado por nós a 17 de janeiro de 1974 em Coimbra (a este respeito escrevia-nos há bem pouco Filliou, observando que a festa de Coimbra poderia bem ser a prova de que um ’25 de Abril’ tinha que estar perto – o que nos merecerá uma futura reflexão.”[8] Repare-se que escreve que a iniciativa de organizar em Coimbra a festa do aniversário da arte fora “secundada por nós.” O uso do plural majestático aplica-se a ele Ernesto de Sousa, mas até porque sabemos que Filliou estava em Berlim coube-lhe a ele escrever, em grande medida e senão na totalidade, o manifesto e organizar o “happening” de Coimbra. Quanto ao que Filliou escreveu, e que saibamos Ernesto de Sousa não voltou a abordar nos seus escritos o sentido da frase por ele escrita, segundo a qual “um ’25 de Abril tinha que estar perto.” É verdade que este estava perto, mas, como referimos antes, existiam todas as condições objetivas para a festa do aniversário da arte de 17 de janeiro, em Coimbra, significar esse 25 de abril para a arte contemporânea. É que dois anos antes, em 1972, Ernesto de Sousa participara na Documenta 5, em Kassel, onde conheceu pessoalmente Joseph Beuys, um dos membros mais destacados do movimento Fluxus no plano internacional. Foi aqui que Beuys realizou uma série de conversas que deram origem ao conhecido livro Cada Homem Um Artista.[9] Ali teve a oportunidade de o entrevistar, conhecer a sua crítica radical à arte como mercadoria e tomar contacto com o panorama internacional da arte. Ernesto caraterizou-o, então, deste modo: “Anulação dos objetos, desmaterialização da arte. Corrente cuja definição mais rigorosa vai da queda objetiva da obra de arte ao nível da mercadoria (já anunciada por Hegel), à negação da forma-objeto na chamada arte pobre, à substituição de objetos criados pelos próprios atos da criação (“quando as atitudes se tornam forma”), à arte conceptual (“art as ideia as idea”). Neste domínio certas experiências como a body art e o artista como-obra-de-arte encontram uma definição particular.”[10] É por ser conhecedor, como poucos, da arte contemporânea do seu tempo e das transformações pelas quais ela passava que termina o manifesto para celebrar a arte “não convencional” a citar Filliou:

 

POR UM DIA AO MENOS, DEMOS LUGAR À ALEGRIA, AOS DIVERTIMENTOS... TAL COMO ACONTECE NO CARNAVAL, DEIXEMOS CORRER O FIO! TU E A TUA FAMILÍA, OS TEUS AMIGOS, O TEU ‘PÚBLICO’, FESTEJAI SE VOS APETECER, E TANTO QUANTO VOS APETECER. PROPAGAI A NOTÍCIA, A ESPERANÇA. CONVIDAI TODAS E TODOS, E ESPECIALMENTE TODOS OS HOMENS E MULHERES QUE MANEJAM AS ALAVANCAS MAIS OBSCURAS DA GIGANTESCA INDÚSTRIA ARTÍSTICA: DOMÉSTICAS, CONDUTORES, GUARDAS, CONTÍNUOS, SECRETÁRIAS, DATILÓGRAFAS, GRÁFICOS – E, BEM ENTENDIDO, “MARCHANDS”, COLECIONADORES, CRÍTICOS, DIRETORES DE MUSEU E GALERIAS... POR UM DIA, AO MENOS, RECONCILIADOS...[11]

 

A concluir, e citando João Fernandes, consideramos que Ernesto de Sousa converteu o CAP, na década de 70, “num verdadeiro laboratório da vanguarda e do experimentalismo portugueses, reunindo uma grande parte dos seus protagonistas, organizando cursos e discussões, refletindo sobre experiências internacionais então de difícil conhecimento e acesso no contexto nacional...”[12] Com efeito, em 1973 tinha realizado em Coimbra o projeto “Minha Nossa Coimbra Deles”. No ano seguinte, é a vez do “happening” de 17 de janeiro de “O Aniversário da Arte” e, após o 25 de Abril, a “Semana de Arte na Rua”, projetos que suscitaram nele um grande entusiasmo e envolvimento profundos. Todavia, em nossa opinião, é no manifesto “Uma Festa para Celebrar o 1.000.011º Aniversário da Arte”[13] que encontramos a orientação estética para fazer do CAP o referido “laboratório de vanguarda e do experimentalismo portugueses” nos anos setenta. E vai ser com este sentido de festa da arte e a experiência de trabalho ali desenvolvida com a arte “não convencional” que vai organizar “Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea” em Lisboa, em fevereiro de 1977, a qual constitui o momento decisivo de viragem e de internacionalização da arte contemporânea em Portugal.

 
 

[1] Luís Trindade – A Vanguarda das Letras, em 25 Olhares sobre a I República: Do Republicanismo ao 28 de Maio. Lisboa: Público, 2010. ISBN 978-989-619-203-7, p. 225.

[2] Id. Ibidem.

[3] FILLIOU, Robert; SOUSA, Ernesto de; CARNEIRO, Alberto; DIXO, João - Uma Festa para Celebrar o 1.000.011º Aniversário da Arte. Coimbra: CAPC, 1974, [p. 1].

[4] Ver respetivamente: Álvaro de Campos – Ultimatum; e Almada Negreiros – Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, em Portugal Futurista: Edição Fac-símile. [Lisboa] A Bela e o Monstro, 2017. ISBN 0872-4687, pp. 30-34 e 36-38. Ver sobre as relações históricas entre o futurismo e o fascismo, em Itália e Portugal, Jorge Pais de Sousa – Os Futuristas e a República, em Leonardo: Causa Pública. Coimbra: Imprensa da Universidade/Instituto de Estudos Italianos, 2011. ISBN 978-989-26-0130-4, pp. 187-240.

[5] FILLIOU, Robert; SOUSA, Ernesto de; CARNEIRO, Alberto; DIXO, João - Uma Festa para Celebrar o 1.000.011º Aniversário da Arte. Coimbra: CAPC, 1974, [p. 1].

[6] Ver a reprodução do cartaz alusivo à primeira edição da festa do aniversário da arte em Aix-la-Chapelle organizada por Robert Filliou, a 17 de janeiro de 1973, em ALVES, Isabel [et al] – O Teu Corpo é o Meu Corpo = Your Body is My Body. Lisboa: Museu Coleção Berardo, 2016. ISBN 978-989-8239-43-3, p. 121.

[7] NEGREIROS, José de Almada – Manifestos e Conferências: edição Fernando Cabral Martins [et al]. Lisboa: Planeta DeAgostini, 2006. ISBN 978-989-609-543-7, pp. 157-181.

[8] Filliou faz bem o mal feito, em SOUSA, Ernesto de – Ser Moderno... Em Portugal. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998. ISBN 972-37-0192-8, p. 40.

[9] BEUYS, Joseph – Cada Homem Um Artista. Porto: 7 Nós, 2010.

[10] O Estado Zero: Encontro com Joseph Beuys, em SOUSA, Ernesto de – Ser Moderno... Em Portugal, p. 27.

[11] FILLIOU, Robert; SOUSA, Ernesto de; CARNEIRO, Alberto; DIXO, João - Uma Festa para Celebrar o 1.000.011º Aniversário da Arte. Coimbra: CAPC, 1974, p. 2.

[12] João Fernandes – Perspetiva: Alternativa Zero – Vinte Anos Depois... em Perspectiva: Alternativa Zero. Porto: Fundação de Serralves, 1997. ISBN 972-739-054-4, p. 20.

[13]  Agradecemos ao Diretor do CAPC, arquiteto Carlos Antunes, a autorização para aceder ao Arquivo do Círculo para ler o documento original, bem como ao fotógrafo Jorge Neves por ter feito o trabalho de digitalização. Também o acolhimento e apoio da Ivone Antunes deve ser sublinhado. Ao lermos o datiloescrito original de “Uma Festa para Celebrar o 1.000.011ª Aniversário da Arte” resolvemos proceder à sua publicação em versão digital. É que constatámos que a única versão impressa que conhecemos deste documento está mal transcrita e incompleta, cf. FRIAS, Hilda – 50 Anos do CAPC: Uma Faceta das Artes Plásticas em Coimbra. Coimbra: Mar da Palavra, 2010, p. 85.

 
HOMENAGEM DO TRIPLOV A ERNESTO DE SOUSA
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
EDITOR | TRIPLOV  
ISSN 2182-147X  
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