A seguir à crise académica
de 1969 e num tempo em que vigora a censura prévia em
Portugal, e no quadro mais geral que foi o estertor da
guerra colonial para a ditadura do Estado Novo
corporativo de Marcelo Caetano, vem a público, em
Coimbra, o manifesto “Uma Festa para Celebrar o
1.000.011º Aniversário da Arte”. Nele se convocam todos
os “Queridos Amigos” para festejarem a arte “não
convencional”, a 17 de janeiro de 1974, no Círculo de
Artes Plásticas.
A análise comparada das
caraterísticas formais e de conteúdo do documento
original, cuja versão digital publicamos junto, leva-nos
a considerar estarmos perante um manifesto de vanguarda.
Apoiamo-nos, para este efeito, na formulação teórica de
Luís Trindade que considera que um manifesto é “a marca”[1]
de uma vanguarda política ou estética. Trata-se de um
tipo de texto que visa intervir no espaço público e,
como tal, pretende impor-se ao leitor. Ao contrário de
outros textos não espera ser lido, mas pretende fazer-se
ouvir. Estes são, pois, “o seu valor político e a sua
especificidade literária.”[2]
Exemplos históricos deste tipo de textos são o
“Manifesto Comunista” (1848) de Karl Marx e o “Manifesto
Futurista” (1909) de Filippo T. Marinetti.
O documento original é um
datiloescrito em duas páginas numeradas de texto - aqui
e ali emendado, rasurado, com uma palavra acrescentada,
e com um endereço postal e telefónico à margem inscrito
a esferográfica -, sendo que ocupa duas folhas cujo
verso está em branco. Não está datado e foi escrito num
estilo que consideramos ser um misto de carta convite e,
em simultâneo, de comunicado. O que lhe confere também
uma identidade e especificidade estilísticas próprias. E
de quem é a autoria? Trata-se de um coletivo encabeçado
e composto por Robert Filliou – existe, curiosamente,
mais uma linha em branco não dactilografada a separá-lo
dos seguintes nomes - Ernesto de Sousa, Alberto Carneiro
e João Dixo. Podemos afirmar, deste modo, que estamos
perante um manifesto de autoria internacional, porquanto
conta com a colaboração de um cidadão belga e de três
portugueses, sendo significativo que antes do nome de
Filliou alguém acrescentou a esferográfica a palavra
“com.” Não conhecemos a caligrafia de Ernesto de Sousa,
mas é bem provável ter sido este o responsável pela
revisão e emendas introduzidas no texto.
A leitura do primeiro
parágrafo esclarece o leitor sobre a razão que está
subjacente à iniciativa de organizar a festa do
aniversário da arte. E pela explicação detalhada
percebemos que Ernesto de Sousa é o principal redator do
texto, pois somos informados de que no ano anterior, em
1973, um “amigo nosso”, Robert Filliou, ao escrever o
poema “História Segredada da Arte” teve a intuição de
que tudo acontecera num aleatório dia e data de 17 de
janeiro de há um milhão e onze anos atrás. Teria sido
nesse tempo mítico e originário, em que está
cientificamente comprovada a existência do homem, que
teria começado a vida humana e com ela a arte.
Reparemos, do ponto de vista formal, como estão
redigidas estas duas frases desafiadoras:
HÁ UM MILHÃO E ONZE ANOS ARTE E VIDA
EXISTIAM E CONFUNDIAM-SE... PORQUE NÃO CELEBRAR ESTA
DATA?...
...numa FESTA sem arte (convencional) mas
que seja ela própria uma verdadeira afirmação da
identidade possível e necessária entre a arte e a vida?[3]
Constatamos que elas estão
escritas com o recurso a dois elementos formais, um de
continuidade e outro de rotura com os ultimatos
futuristas escritos por Álvaro de Campos – o heterónimo
futurista de Fernando Pessoa - e Almada Negreiros. O
elemento de continuidade é o recurso a palavras escritas
em maiúsculas. Recorde-se que, em termos históricos, os
ultimatos da vanguarda futurista portuguesa surgiram em
público numa conjuntura em que decorre a I Guerra
Mundial, Portugal participa nela com mais de cem mil
homens a combater em Angola, Moçambique e na Flandres
francesa. E é neste contexto que, em vésperas do golpe
de Estado de Sidónio Pais que instituiu uma ditadura, a
5 de dezembro de 1917, que derrubou o governo legítimo
de Afonso Costa, exila o presidente da República
Bernardino Machado e suspende a Constituição da
República de 1911, que é publicada a revista Portugal
Futurista. Ao recuperar os acontecimentos
traumáticos do ultimato inglês de 1890 a Portugal, os
ultimatos de Pessoa e de Almada seguem a lógica
futurista que lhes está subjacente e que é a da apologia
do Super-Homem de Nietzsche e da estética da guerra, daí
o uso de uma linguagem afirmativa e impositiva. Neste
sentido recorrem, frequentemente, ao uso de palavras
escritas em maiúsculas para serem lidas em voz alta.[4]
Enquanto o elemento de rotura
com os ultimatos futuristas portugueses é o recurso à
frase interrogada. Percebemos que os “operadores
estéticos” - para utilizar a terminologia de Ernesto de
Sousa - signatários deste manifesto não estão “cheios da
verdade” como estavam os
futuristas. Ao contrário, duvidam dela e interrogam-na.
E propõem-se, em espírito de festa, celebrarem
coletivamente o aniversário da arte. E neste sentido
manifestam mesmo um espírito antiguerrista.
Outro aspeto que dá uma
identidade internacional a este manifesto é ele
propor-se realizar o “happening” do aniversário da arte
de Coimbra, a 17 de janeiro de 1974, em articulação com
iniciativas semelhantes organizadas noutras cidades de
países estrangeiros.
Para isso NÓS
vamo-nos reunir no C.A.P. em Coimbra, sem distinções
culturais ou outras e com a ideia maior de um convívio
simples, gratificante e generoso. ESTAR JUNTOS,
alegremente e amigavelmente – saber que isso mesmo se
verificará em mais alguns outros pontos do mundo, num
espírito comum. Já o ano passado em Aix-la-Chapelle se
celebrou esta festa... Este ano repetir-se-á na mesma
cidade, em Berlim (onde estará Robert Filliou), em
Coimbra, no Canadá, e noutros sítios. Enviaremos a uns e
aos outros as nossas congratulações e lembranças, a
pretexto da arte para que seja possível que ARTE e VIDA
se confundam em vez de se divorciarem: “A ARTE DEVE
VOLTAR AO POVO, AO QUAL ELA PERTENCE.”[5]
Este trecho mostra o papel
decisivo que Ernesto Sousa tem na conceção e redação
deste manifesto, bem como na iniciativa de organizar
também o aniversário da arte em Portugal. Devido à sua
amizade com Filliou sabe que este organizara em 1973,
pela primeira vez, a festa do aniversário da arte na
cidade alemã de Aix-la-Chapelle.[6]
E agora está articulado com o “petit” Robert para
organizar a iniciativa de Coimbra de 17 de janeiro de
1974, por isso sabe que naquele mesmo dia Filliou
estaria também na Alemanha, mas na cidade de Berlim e
não em Aix-la-Chapellle. Importa sublinhar que neste
segundo ano de celebração do aniversário da arte, não
foi só no continente europeu que tal foi feito, mas
também no Canadá e “outros sítios” se iria festejar
coletivamente “ARTE e VIDA.”
Outro aspeto crucial é
haver consciência política de que é num ambiente de
democracia participativa que são convidadas todos as
pessoas e os amigos para festejarem a arte e a vida. É
que está escrito, primeiro, que vamos “reunir... sem
distinções culturais ou outras...” E acrescenta-se a
natureza democrática da arte, em maiúsculas, quando se
afirma que esta deve regressar ao povo ao qual pertence:
“A ARTE DEVE VOLTAR AO POVO, AO QUAL ELA PERTENCE.” Ou
seja, na celebração da arte e da vida propõe-se que ela
seja feita em conjunto, sem qualquer distinção cultural
ou de outra natureza. Os pressupostos políticos da
democracia participativa estão subjacentes à vanguarda
Fluxus e, concretamente, à intervenção pública de
Filliou. É neste sentido, também, que o manifesto
internacional do aniversário da arte rompe,
politicamente, com a tradição nacionalista dos ultimatos
futuristas, e por ele se antecipa, a nosso ver, o 25 de
abril para a arte contemporânea em Portugal. É que o
autor do Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas
do Século XX, importa não esquecer, é o mesmo que
escreve e pronuncia, em plena Ditadura Militar, a
conferência Direção Única[7]
(1932) e desenha, por exemplo, o cartaz para o
plebiscito à Constituição do Estado Novo Corporativo de
1933 – onde se pode ler “Nós queremos um Estado forte!”
– inaugurando uma longa colaboração com o Secretariado
de Propaganda Nacional (SPN), dirigido pelo antigo
editor da revista Orpheu António Ferro, e termina
a sua vida como procurador à Câmara Corporativa, em
representação da corporação das artes.
Após o 25 de Abril,
Ernesto de Sousa publica um artigo na Vida Mundial,
a 14 de novembro de 1974, em que escreve que o
“caráter de criação coletiva e permanente de festa, foi
também o objetivo do ‘Aniversário da Arte’ realizado em
1973 em Aix-la-Chapelle, e secundado por nós a 17 de
janeiro de 1974 em Coimbra (a este respeito escrevia-nos
há bem pouco Filliou, observando que a festa de Coimbra
poderia bem ser a prova de que um ’25 de Abril’ tinha
que estar perto – o que nos merecerá uma futura
reflexão.”[8]
Repare-se que escreve que a iniciativa de organizar em
Coimbra a festa do aniversário da arte fora “secundada
por nós.” O uso do plural majestático aplica-se a ele
Ernesto de Sousa, mas até porque sabemos que Filliou
estava em Berlim coube-lhe a ele escrever, em grande
medida e senão na totalidade, o manifesto e organizar o
“happening” de Coimbra. Quanto ao que Filliou escreveu,
e que saibamos Ernesto de Sousa não voltou a abordar nos
seus escritos o sentido da frase por ele escrita,
segundo a qual “um ’25 de Abril tinha que estar perto.”
É verdade que este estava perto, mas, como referimos
antes, existiam todas as condições objetivas para a
festa do aniversário da arte de 17 de janeiro, em
Coimbra, significar esse 25 de abril para a arte
contemporânea. É que dois anos antes, em 1972, Ernesto
de Sousa participara na Documenta 5, em Kassel, onde
conheceu pessoalmente Joseph Beuys, um dos membros mais
destacados do movimento Fluxus no plano internacional.
Foi aqui que Beuys realizou uma série de conversas que
deram origem ao conhecido livro Cada Homem Um Artista.[9]
Ali teve a oportunidade de o entrevistar, conhecer a sua
crítica radical à arte como mercadoria e tomar contacto
com o panorama internacional da arte. Ernesto
caraterizou-o, então, deste modo: “Anulação dos
objetos, desmaterialização da arte. Corrente cuja
definição mais rigorosa vai da queda objetiva da obra de
arte ao nível da mercadoria (já anunciada por Hegel), à
negação da forma-objeto na chamada arte pobre, à
substituição de objetos criados pelos próprios atos da
criação (“quando as atitudes se tornam forma”), à
arte conceptual (“art as ideia as idea”). Neste
domínio certas experiências como a body art e o
artista como-obra-de-arte encontram uma definição
particular.”[10]
É por ser conhecedor, como poucos, da arte contemporânea
do seu tempo e das transformações pelas quais ela
passava que termina o manifesto para celebrar a arte
“não convencional” a citar Filliou:
POR UM DIA AO
MENOS, DEMOS LUGAR À ALEGRIA, AOS DIVERTIMENTOS... TAL
COMO ACONTECE NO CARNAVAL, DEIXEMOS CORRER O FIO! TU E A
TUA FAMILÍA, OS TEUS AMIGOS, O TEU ‘PÚBLICO’, FESTEJAI
SE VOS APETECER, E TANTO QUANTO VOS APETECER. PROPAGAI A
NOTÍCIA, A ESPERANÇA. CONVIDAI TODAS E TODOS, E
ESPECIALMENTE TODOS OS HOMENS E MULHERES QUE MANEJAM AS
ALAVANCAS MAIS OBSCURAS DA GIGANTESCA INDÚSTRIA
ARTÍSTICA: DOMÉSTICAS, CONDUTORES, GUARDAS, CONTÍNUOS,
SECRETÁRIAS, DATILÓGRAFAS, GRÁFICOS – E, BEM ENTENDIDO,
“MARCHANDS”, COLECIONADORES, CRÍTICOS, DIRETORES DE
MUSEU E GALERIAS... POR UM DIA, AO MENOS,
RECONCILIADOS...[11]
A
concluir, e citando João Fernandes, consideramos que
Ernesto de Sousa converteu o CAP, na década de 70, “num
verdadeiro laboratório da vanguarda e do
experimentalismo portugueses, reunindo uma grande parte
dos seus protagonistas, organizando cursos e discussões,
refletindo sobre experiências internacionais então de
difícil conhecimento e acesso no contexto nacional...”[12]
Com efeito, em 1973 tinha realizado em Coimbra o projeto
“Minha Nossa Coimbra Deles”. No ano seguinte, é a vez do
“happening” de 17 de janeiro de “O Aniversário da Arte”
e, após o 25 de Abril, a “Semana de Arte na Rua”,
projetos que suscitaram nele um grande entusiasmo e
envolvimento profundos. Todavia, em nossa opinião, é no
manifesto “Uma Festa para Celebrar o 1.000.011º
Aniversário da Arte”[13]
que encontramos a orientação estética para fazer do CAP
o referido “laboratório de vanguarda e do
experimentalismo portugueses” nos anos setenta. E vai
ser com este sentido de festa da arte e a experiência de
trabalho ali desenvolvida com a arte “não convencional”
que vai organizar “Alternativa Zero: Tendências
Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea” em Lisboa,
em fevereiro de 1977, a qual constitui o momento
decisivo de viragem e de internacionalização da arte
contemporânea em Portugal.
|
[1]
Luís Trindade – A Vanguarda
das Letras, em 25 Olhares sobre a I
República: Do Republicanismo ao 28 de Maio.
Lisboa: Público, 2010. ISBN 978-989-619-203-7,
p. 225.
[3] FILLIOU,
Robert; SOUSA, Ernesto de; CARNEIRO, Alberto;
DIXO, João - Uma Festa para
Celebrar o 1.000.011º Aniversário da Arte.
Coimbra: CAPC, 1974, [p. 1].
[4] Ver
respetivamente: Álvaro de Campos – Ultimatum; e
Almada Negreiros – Ultimatum Futurista às
Gerações Portuguesas do Século XX, em
Portugal Futurista: Edição Fac-símile.
[Lisboa] A Bela e o Monstro, 2017. ISBN
0872-4687, pp. 30-34 e 36-38. Ver sobre as
relações históricas entre o futurismo e o
fascismo, em Itália e Portugal, Jorge Pais de
Sousa – Os Futuristas e a República, em
Leonardo: Causa Pública. Coimbra: Imprensa
da Universidade/Instituto de Estudos Italianos,
2011. ISBN 978-989-26-0130-4, pp. 187-240.
[5] FILLIOU,
Robert; SOUSA, Ernesto de; CARNEIRO, Alberto;
DIXO, João - Uma Festa para
Celebrar o 1.000.011º Aniversário da Arte.
Coimbra: CAPC, 1974, [p. 1].
[6]
Ver a reprodução do cartaz
alusivo à primeira edição da festa do
aniversário da arte em Aix-la-Chapelle
organizada por Robert Filliou, a 17 de janeiro
de 1973, em ALVES, Isabel [et al] – O Teu
Corpo é o Meu Corpo = Your Body is My Body.
Lisboa: Museu Coleção Berardo, 2016. ISBN
978-989-8239-43-3, p. 121.
[7] NEGREIROS,
José de Almada – Manifestos e Conferências:
edição Fernando Cabral Martins [et al].
Lisboa: Planeta DeAgostini, 2006. ISBN
978-989-609-543-7, pp. 157-181.
[8] Filliou
faz bem o mal feito, em SOUSA, Ernesto de –
Ser Moderno... Em Portugal. Lisboa: Assírio
& Alvim, 1998. ISBN 972-37-0192-8, p. 40.
[9] BEUYS,
Joseph – Cada Homem Um Artista. Porto: 7
Nós, 2010.
[10] O Estado
Zero: Encontro com Joseph Beuys, em
SOUSA, Ernesto de – Ser Moderno... Em
Portugal, p. 27.
[11] FILLIOU,
Robert; SOUSA, Ernesto de; CARNEIRO, Alberto;
DIXO, João - Uma Festa para
Celebrar o 1.000.011º Aniversário da Arte.
Coimbra: CAPC, 1974, p. 2.
[12] João
Fernandes – Perspetiva: Alternativa Zero – Vinte
Anos Depois... em Perspectiva: Alternativa
Zero. Porto: Fundação de Serralves, 1997.
ISBN 972-739-054-4, p. 20.
[13]
Agradecemos ao Diretor do CAPC, arquiteto
Carlos Antunes, a autorização para aceder ao
Arquivo do Círculo para ler o documento
original, bem como ao fotógrafo Jorge Neves por
ter feito o trabalho de digitalização. Também o
acolhimento e apoio da Ivone Antunes deve ser
sublinhado. Ao lermos o datiloescrito original
de “Uma Festa para Celebrar o 1.000.011ª
Aniversário da Arte” resolvemos proceder à sua
publicação em versão digital. É que constatámos
que a única versão impressa que conhecemos deste
documento está mal transcrita e incompleta, cf.
FRIAS, Hilda – 50 Anos do CAPC: Uma Faceta
das Artes Plásticas em Coimbra. Coimbra: Mar
da Palavra, 2010, p. 85.
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