Os meus agradecimentos à
escritora Maria Estela Guedes pelo convite que me fez
para estar convosco neste Encontro na florida e
tranquila Quinta do Frade. Vou ler-vos a comunicação
que fiz na Fundação Mário Soares onde em 2015 foi
lançado o meu livro Os Timorenses (1973-1980), terceiro
volume da tetralogia A Pedra e a Folha .
Na Fundação Mário Soares, a
minha apresentação do livro aborda apenas o
período que vai de 1973 a dezembro de 1975, altura em
que Portugal , frustrado o processo de descolonização,
retira em agosto de 1975 para Ataúro, abandonando o
território quando se concretiza a invasão indonésia em
dezembro desse ano. A população portuguesa residente no
território compreendia desde militares exilados por
tentativa de derrube do regime, como de estudantes que
participaram nas revoltas estudantis e que cumpriam o
serviço militar obrigatório e também goeses.
Timor era no imaginário do
império português a Pérola do Oriente. Em Díli, nos
derradeiros anos do nosso império, uma charada animava
as conversas entre portugueses nas reuniões de convívio.
O tema desta charada andava em torno do enigma da pérola
que em Timor Português não tinha a sua origem numa ostra
mas num coco. A mordaça da censura por parte da
polícia política do regime, tapava a boca a toda a gente
levando a que a expressão do pensamento ocultasse,
numa forma erudita, a significação política nela
contida. Gertrudes, uma das personagens portuguesas
desta obra, por uma intuição de que se achavam no fim
do império português, lança aos seus amigos e convidados
o enigma da pérola escura. Gertrudes frequentara na sua
juventude , em Lisboa os meios literários então em voga
como o Café Gelo onde Herberto Helder se sentava a
conversar com Carlos de Oliveira, o Vavá onde
pontificavam Paulo Rocha e Cunha Telles, o Tony dos
Bifes e o Monte Carlo.
No contexto de Timor-Leste, a
China era um algures impenetrável para a escassa
cultura dos funcionários da Pide /DGS. Mas não era um
algures estranho pois historicamente, Timor Português
manteve ao longo dos séculos estreitas relações com Goa
e Macau. Apesar de em finais do século XIX, Celestino da
Silva ter tornado Timor independente de Macau, a
influência da cultura chinesa manteve-se sempre em
Timor devido não apenas a emigrantes chineses mas também
a estudantes timorenses e a religiosos que tendo
completado os seus estudos no Seminário de São José em
Macau, foram depois colocados em Timor. Estes
missionários levaram para Timor Português o legado do
napolitano Matteo Ricci (1552-1610) que tendo
chegado a Macau em 1582, para a evangelização da China,
ali estudou a língua chinesa. Deve-se a este jesuíta um
método prático para o bom sucesso da missionação assente
nos seguintes princípios: uma política de adaptação à
cultura chinesa; a propagação da Fé através das elites;
a propagação da Fé através do ensino; a abertura aos
valores chineses e a tolerância em relação aos seus
ritos.
Nos anos 60 do século XX, no
Seminário de Dare lecionavam Jesuítas de tendências
liberais como o Padre André Días Rabago e José
Rodriguez que contribuíram para o
aprofundamento das bases teóricas do pensamento
nacionalista em Timor. Entre os que frequentaram o
Seminário de Dare encontram-se figuras de renome como
Nicolau Lobato, Rogério Lobato, Francisco Xavier do
Amaral, Domingos Oliveira, Francisco Borja da Costa,
Manuel Carrascalão e José Alexandre Gusmão. De Macau
chegava igualmente uma cultura laica e liberal, oriunda
da sua intensa e secular vida cívica. Em Macau, o
poder residia no Senado. Desta pequena república
mercantil , já em 1647 o governador D. João Pereira a
ela se referia dizendo:«[...] que se acha este Povo tão
livre, que os que nele temos o cargo governar, não nos é
possível mais que governar pelos ditames de seu querer».
Durante muitos anos,
intrigada pelo sentido oculto desta charada, ao tentar
decifrá-la, dei-me conta de que nela pulsava algo mais
profundo. Encontrei na obra do filósofo chinês
Chuang-Tzu (280 A.C), o texto que teria inspirado o
anónimo criador desta charada. Ei-lo: «O Soberano
Amarelo dirigiu-se um dia ao norte do Rio vermelho,
subiu o Monte K´oun-loun e abarcou o sul com o
olhar. Ao regressar a casa constatou que tinha perdido a
«pérola escura». Fê-la procurar pela Inteligência
que a não encontrou; depois pela Perspicácia que a não
encontrou; enfim pela Análise que também a não
encontrou. Foi finalmente Sem Imagem que a encontrou. O
Soberano Amarelo disse para consigo :«Não é estranho que
tenha sido Sem Imagem que a tenha podido encontrar?»
Vejamos o que os exegetas,
entre os quais se acha o estudioso Jean François
Billeter, revelaram sobre os diversos sentidos deste
texto: a pérola perdida indica algo de muito precioso e
a sua cor escura indica a sua obscuridade ontológica,
obscuridade que na sua charada, o inventor
anónimo alude à separação de Timor-Leste do contexto em
que se inseria, acontecimento que se deveu á chegada
dos portugueses a Lifau há precisamente 500 anos. O
soberano Amarelo é uma figura lendária e, sendo amarelo
, está posicionado ao centro. Na China, no norte está o
poder, está o detentor da autoridade e no sul estão os
seus súbditos. Na China antiga, a ideia de
dominação exprime-se na relação do alto e do
baixo. Ao dever de submissão dos súbditos para com o
alto correspondia o direito do alto de domínio para com
o baixo. O fundamento deste edifício era o povo que não
tinha senão o dever de submissão.
Tendo-se dirigido ao norte, o
soberano Amarelo abarca com um olhar de posse
os seus domínios. Estando pela sua natureza posicionado
ao centro, esta atitude sobranceira infringe as regras
do bom funcionamento das coisas, pois coloca-o acima do
mundo para o dominar a partir do exterior.
Esta rotura tem um preço e quando chega a casa percebe
que perdeu a sua pérola escura, uma joia quase sem
visibilidade mas a que ele atribui grande valor.
O texto revela que há uma
incompatibilidade entre a fruição da joia e o desejo de
dominação pois é no regresso a casa ,quando já
despido da sua autoridade, é que o imperador dá por
falta dela. Encarrega então a Inteligência, a
Perspicácia e a Análise para que lhe encontrem a pérola
perdida, o que faz com que nesta iniciativa se humanize
e caia no registo da consciência intencional e no
registo das distinções e dos raciocínios , atitude
imprópria ao poder. Mas nada alcançando a partir
destes registos, entrega a tarefa ao Sem Imagem ou, para
alguns tradutores, ao Sem Nada ou ao Sem Ideias. O sábio
que é Sem Imagem ou Sem Ideia , esquece o poder que o
espírito tem de distinguir arbitrariamente os fenómenos
tomando-os por realidades objetivas e encontra-a. O
Soberano Amarelo, que se achava sozinho, uma vez a
pérola escura encontrada, exclama espantado: «É estranho
que seja Sem Imagem a encontrá-la». A figura de Sem
Imagem ou Sem Nada exprime o sentimento de opressão
experimentado pelos intelectuais chineses face a um
poder político despótico que a partir dos primeiros
imperadores da dinastia Hanshu, uma ordem imperial
impôs a unificação da cultura e uma harmonia social
entendida como uma submissão às relações de força.
No momento em que o
imperador reconhece com espanto a eficácia de alguém que
tem sobre as coisas um olhar novo porque se não insere
na totalidade dos submissos onde a violência deve ser
mantida discreta para não perturbar a harmonia do
conjunto, as suas ideias de dominação desaparecem.
Todas estas linhas temáticas
se entrecruzam na personagem Gertrudes que nesse
momento especial da sua vida cívica e conjugal
sente que é necessário que a realidade dos seres e dos
factos se revelem sem constrangimentos de qualquer
natureza. A nossa cultura literária e histórica não
tinha até então dado contributos de vulto a uma
abordagem totalmente nova da situação colonial o que
perante a inevitabilidade da mudança que se
anunciava deixava os portugueses e as diversas
comunidades residentes nas colónias perante o desespero
de um futuro incerto. Gertrudes, cujo contacto com os
surrealistas a tinha dotado de uma imaginação operante,
ao questionar-se , no vaivém de imagens
construídas durante os 500 anos de domínio colonial, viu
apenas o funcionamento da nossa subjetividade.
Ao propor-me escrever uma obra sobre o processo
histórico timorense, tive que vencer o despotismo dos
cânones literários e não menos velhos
preconceitos. A Europa e a Ásia viveram em mundos
separados no passado, mas as separações antigas
caducaram. Os Timorenses partilharam connosco ,durante
séculos, as atribulações e os progressos da modernidade.
E, em 1973, já toda a gente se achava no direito ao
inventário, estabelecendo clandestinamente um diálogo a
partir de raízes culturais comuns.
A partir da assunção da
unidade essencial da experiência humana, achei que era
preciso inverter o mecanismo da circularidade fundada na
crença de que o pensamento timorense seria diferente do
nosso e compreender, a partir da realidade, o que a
experiência deles tem de comum com a nossa e o que
nos diferencia. Em louvor do que se perde, era
necessário, para mim, recusar a propaganda
do regime em fundar em natureza o poder imperial
português e olhá-los, finalmente, com um olhar novo.
Apesar das posições muitas
vezes ambíguas dos partidos que tinham do passado
colonial visões diferentes e mesmo incompatíveis e
apesar das dificuldades em encontrar uma saída para a
trágica situação em que se achava o povo de Timor-Leste,
com as liberdades políticas e a democracia que a
Revolução de Abril nos legou, sem objetivos de dominação
colonial, Portugal, antiga potência colonial e
autoridade administrativa de Timor-Leste, apesar da
independência ter sido unilateralmente declarada pela
FRETILIN, apesar da invasão do território, o Portugal
democrático não desistiu da sua missão e dos seus
deveres para com o povo timorense. A 31 de Março de 1976
a nova Constituição Portuguesa dedica o seu artigo 307 à
«Questão de Timor-Leste» e vincula Portugal à
responsabilidade de promover e garantir a independência
de Timor-Leste .
Creio que a minha obra se
enquadra no horizonte de um novo paradigma no
relacionamento entre o povo português e o povo da RDTL
aberto pelos dois princípios fundadores da Revolução de
Abril e consagrados pela Constituição de 1976: a
Liberdade e a Justiça.
Muito obrigada pela vossa
presença e pela vossa atenção.
Joana Ruas, Quinta do Frade,
17 de junho de 2017.
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