REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova Série . número 66 . agosto-setembro . 2017 . ÍNDICE

ELISA SCARPA

Dom Roberto,
de Ernesto de Sousa
 

 

D. ROBERTO  /  O Teatro da Felicidade 
D. Roberto
, filme realizado por
Ernesto de Sousa
Preto e branco
Duração - 102 minutos
Estreou a 30 de Maio de 1960

O genérico de D. Roberto são mais de  2 minutos e 30, de um plano aproximado, em que um fantoche, à direita no enquadramento, vai dando porrada de criar bicho (para usar calão popular), em três outros que ocupam e desocupam sucessivamente o lugar do fantoche que leva porrada. É a repetição infindável de uma acção simples, em que há alguém que dá porrada,  e outros, que a recebem, num ciclo interminável de injustiça, ou de justiça invertida. 

O fantocheiro é João Barbela, conhecido por D. Roberto, que tem por clientela os putos pobres de rua, fascinados por aqueles bonecos que se mexem sozinhos e que, com vozes estrídulas, mimetizam e enfatizam personagens reais e inventadas, na mais antiga das artes cénicas, com a função de divertir e libertar catarticamente as almas daqueles que por eles se deixam seduzir. 

Os fantoches são do mestre António Dias. O genérico é graficamente forte, com os nomes  da ficha técnica e artística bem visíveis, sobrepostos, ao modo de bocados de papel recortado, sobre o plano dos fantoches. 

Quando acaba o genérico, encontramos uma linguagem fílmica mais clássica, com a sucessão de planos colada à narrativa, sem grande variação de escala de planos (revelando os fracos meios de produção do filme), e o tempo dos planos definido pelo tempo da acção. 

D. ROBERTO poder-se-ia intitular D. POVO. A arte popular, usufruida pelo povo (“PORQUE CONSIDERO O POVO MAIS RICO, MENOS COMPROMETIDO COM A FALSA CULTURA QUE VAI SENDO A NOSSA”, Ernesto de Sousa) e ministrada pelo povo. Não um povo categoria sociológica, mas um povo que se aproxima da sua figuração antropológica, muito mais complexa e digna de observação.

Esta opção aponta claramente para uma dessacralização da arte,  a arte como acto libertador da expressão de cada um. Esta arte não pode e não deve estar submetida ao julgamento de uma élite, seja ela consumidora, criadora ou crítica. 

Ao assistirmos a D. Roberto, sentimos a empatia mágica, genuína que atravessa outros filmes, tais como: Ladrão de Bicicletas (1948), Milagre a Milão (1950) de Vittorio di Sica, Terra Treme (1948) de Luchino Visconti, Os suspeitos do Costume (1958) de Mario Monicelli, Os Saltimbancos (1951), Nazaré (1952) de Manuel Guimarães _ uma empatia profunda para com os pobres, os mendigos, os desempregados, os desalojados, os “mal-aventurados”. 

Os “mal-aventurados”expressão de Ernesto de Sousa, para designar o público alvo do seu filme. Embora esses mal-aventurados muito provavelmente não tenham ido à estreia no Cinema Império, em 1962. Talvez o preço do bilhete fosse demasiado para as suas carteiras e a clientela chique do cinema os tenha afastado, talvez nem tenham sabido que o filme a eles se dirigia, nem que ele, aí,  ia ser exibido. O cinema Império tinha sido inaugurado em 24 de maio de 1952, tinha um total de 1676 lugares. Era um cinema moderno, elegante, e muito frequentado. Na década de 50 e 60 recebeu o 1º Festival da Canção em Portugal, e as orquestras de Count Basie e Quincy Jones. 

Na ficha técnica, a designação do género do filme é Comédia e Drama. A comicidade é sobretudo dada por Raul Solnado, o drama é a dura vida de João Barbela e Maria, sem casa, trabalho inconstante, ganhos míseros, à deriva numa cidade em que as gentes os recebem com simpatia, mas que se mostra incapaz de os assimilar. Acabam por ocupar uma casa, que no final do filme é demolida, e são, mais uma vez, expulsos. Acabam por sair de Lisboa, não há lugar para eles. O Paraíso é constantemente adiado! 

O que salva estes “desventurados” é a sua capacidade onírica, a criatividade exposta no teatro de robertos, e em Maria, na forma como ela idealiza a casa em que estão, que é uma ruína completa, e ela imagina-a acolhedora, protectora, sua. Vivem os dois o Teatro da Felicidade. 

Teatro da felicidade, para quem?

“Qual é o público dos filmes portugueses?

Ernesto de Sousa_ “Essencialmente o povo, as pesssoas que vão ver as caras que lhe são familiares, e ouvir falar a sua língua”. (entrevista)

É do particular que fala Ernesto de Sousa, das caras conhecidas, e de uma língua determinada, a portuguesa. E é notória a sua preocupação em conquistar esse público, que começa logo na escolha dos actores. 

Para protagonistas: Raul Solnado (1929-2009) actor e humorista já instalado no meio, que em 1961 havia interpretado o sketch “A Guerra de 1908” (de grande êxito), adaptado pelo mesmo, do espanhol Miguel Gila, na revista “Bate o pé”, estreada no Teatro Maria Vitória. Glicínia Quartim (1924-2006) encarna Maria, actriz, na época, já com trabalho de teatro e televisão em carteira. E que virá a fazer peças dos mais diversos dramaturgos, de Genet a Pier Paolo Pasolini, passando por Gil Vivente, Beckett, Bernardo Santareno, etc. E que terá forte presença no cinema português dos anos 70, 80 e 90.

Nos actores secundários, encontramos nomes que conhecemos: Nicolau Breyner (1940-2016), actor, realizador, humorista. Rui Mendes (1937-), actor, encenador. Fernanda Alves (1930-2000), actriz, encenou também a peça "O facto importante" de Luísa Neto Jorge (1998) para o Teatro da Cornucópia. 

E porque o Cinema, é essencialmente um trabalho de equipa, encontramos : Victor Palla, Abel Escoto, Armando Santiago, Leão Penedo, Pablo del Amo. Victor Palla, que faz o genérico (1922-1906), é arquitecto, fotógrafo, pintor, designer, escritor, editor, autor de muitas das capas da coleção Os Livros das Três Abelhas. Abel Escoto (1919-2014), director de fotografia, à altura tinha sido o director de fotografia das reportagens de actualidades  “A visita da Rainha Isabel II de Inglaterra a Portugal” (1957). Armando Santiago (1932-), autor da música, compositor, musicólogo, pedagogo. Pablo del Amo (1927-2004) montador que ganhou por diversas vezes o Prémio Goya para a melhor montagem. 

Leão Penedo (1916-1976) foi o  argumentista. Em 1958 Manuel Guimarães já havia adaptado o  romande Circo, para o seu filme Os Saltimbancos. Foi também, juntamente com Perdigão Queiroga, coo-argumentista, do filme Sonhar é fácil. Os seus livros fazem parte do imaginário neo-realista, em que os mais desfavorecidos, os mal aventurados se transfiguram em heróis, figuras de grande força moral e onírica, capazes de apagarem a monstra miséria que os amarfanha.

Dom Roberto começou a ser produzido em 1954, com um orçamento baixo, angariado pela Cooperativa dos Espectadores, saída do movimento cineclubista português, de que Ernesto de Sousa foi um dos fundadores. Foi produzido sem dinheiro do Estado, sem o amen do regime. A Cooperativa dos Espectadores definiu a angariação dos fundos para o filme e como uma forma de se “opôr aos compromissos exclusivos de especulação comercial, no interesse de um público esclarecido na produção de filmes de qualidade”.

Este esforço de ascensão à qualidade (entenda-se, por qualidade, a ruptura com o estado das coisas vigente, tanto em termos de produção como de realização), está patente na ficha técnica, na tessitura de pessoas que são chamadas ao filme, onde também é de referir o poeta Alexandre O´Neill (1924-1986), figura cimeira do movimento surrealista português.

O filme  foi seleccionado para o festival de Cannes, onde ganhou a menção Especial do Júri do Melhor Filme para a Juventude. Ernesto de Sousa foi preso pela Pide (polícia política) em Maio de 1963, para evitar que este estivesse presente na exibição do filme. A atribuição do prémio, teve um óbvio carácter político, de crítica ao regime ditatorial, que veio a perdurar até ao ano de 1974.

Entre o fascínio e a incomodidade, a “mentira vital” da arte afirma-se como forma de supervivência, por oposição à sobrevivência, que enforma o quotidiano claudicante.

Uma frase de Maria perdura na memória. Ela transforma João Barbela e a sua arte no mesmo: “ É a tua arte, é o que tu és!”.  

 

Cartaz do Dom Roberto
 
HOMENAGEM DO TRIPLOV A ERNESTO DE SOUSA
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
EDITOR | TRIPLOV  
ISSN 2182-147X  
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