Revista TriploV . ns . nº 64. abril-maio . 2017 . ÍNDICE.
Homenagem do Triplov aos Capitães de Abril

 

 

 

Paulo Nogueira (Portugal). Docente da  Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto.

 

PAULO NOGUEIRA

Não basta escrever, isso é uma fantasia

 A Universidade encontra-se hoje mergulhada numa obsessiva busca do “texto científico”. Sem que exista, aparentemente, um único modo de o encontrar, a lógica universitária tende cada vez mais a uniformizar os processos de escrita e de produção textual. Trata-se de uma tentação do científico cujas representações sobre a escrita e o escrever reflectem-se, além disso, nos discursos eleitos para falar sobre textos, particularmente com os estudantes, não importando o nível de graduação em que tais estudantes se encontrem. Este problema tem implicações diversas, e reduz, por vezes até de uma maneira violenta, a diversidade de operações e linguagens inscrita nas práticas de escrita. Alinhando com o paradigma do lucro no qual assenta o mundo do ensino e da aprendizagem, a Universidade persiste na tentativa (ilusória) de resolver os problemas de expressão escrita dos seus “clientes” pelo lado da instrução de modelos úteis de texto, sobre os quais recaem actos únicos de classificação e validação da performance académica. A transmissão baseada num índice de fórmulas textuais, ou a apresentação de questionários de resposta múltipla, constituem, entre outras, as práticas discursivas mais concordantes com tal paradigma, ainda que do seu interior surja igualmente a ideia meio difusa de que o mais importante é a voz própria de cada pessoa perante o texto que escreve e lê. Na maioria dos casos, esta realidade conduz-nos a uma visão espartilhada e insuficiente. Se de um assunto fazemos mil, como diria Montaigne a propósito do que para si significa pensar, escrever e viver, a ocorrência de escrever um texto constitui-se, na verdade, numa profunda instabilidade das formas que à partida julgamos seguras e confiáveis. É na vontade de controlar os desvios aleatórios, as oscilações e as incoerências das nossas acções, as quais, como um todo, “correm o risco de se meterem no texto”, que a Universidade institui o comércio das escritas científicas na forma de artigos breves que entre si concorrem. Este protocolo estendeu-se um pouco por toda a parte, e os seus efeitos há muito que podem ser observados no totalitarismo das formas úteis de escrita que hoje em dia predomina no espaço da formação universitária. E todavia, o protocolo ao qual me refiro inscreve-se na minha actividade docente na Universidade ligada ao ensino da escrita e à educação artística. Mas talvez devido a isso eu veja o trabalho de escrita justamente enquanto tal, um trabalho, sobretudo um trabalho feito através da rasura (não é o texto pronto que interessa) para cada um ser a sua própria pessoa e, porque tal me parece ligar-se com o desejo, conhecer-se a si mesmo nesse perpétuo ensaio no qual pode tornar-se escrever.

Há vida além da escrita científica, ainda que as “escritas daninhas”, nas palavras da Luiza Neto Jorge, estejam em perigo. Lembro-me do saudoso Manuel António Pina com quem trabalhei na minha tese de doutoramento. Enquanto conversávamos sobre uma das suas experiências em que foi professor na universidade durante os anos de 1970, ele dizia-me “qual programa, qual carapuça!”, “era conversar, reflectir, conversar sobre as notícias de jornal que tinham saído nesse dia, de literatura, falar de poesia, falar da vida e fazer comentários, ouvir os comentários dos outros, discutir os comentários dos outros, não havia programa nenhum”. O campo de possibilidades aberto por uma falta destas não anula a existência de um programa de escrita; pelo contrário, tal ausência e negação constituem-se num trabalho de desobediência fundamental no exercício de pensar o sentido de um texto à luz de convenções meramente académicas e, por isso, pré-concebidas como se de naturezas dadas estivéssemos a falar. Estamos em 2017, e eu pergunto-me a que se deve ainda a matriz hierárquica e exclusiva da escrita presente na Universidade, mesmo sabendo que é de uma empresa que eu falo. O utilitarismo posto nos usos da escrita, ao partir da ideia de que o saber é qualquer coisa que não nos pertence, parece-me apenas reproduzir uma certa ideologia do sujeito segundo a qual a forma ganha sempre sobre o conteúdo. Há um território a fazer através da escrita, e por essa razão é que falamos de aprendizagem. De um modo geral, os estudantes com quem trabalho neste campo pertencem às áreas da educação, da psicologia, das artes visuais e das ciências sociais. Para estes estudantes escrever constitui-se numa prática encadeada por textos orais e escritos, cujos enunciados resultam de complexos processos de subjectivação nos quais a experiência humana (a deles próprios e a nossa, portanto) têm lugar. Como trabalhar, então, num duplo registo de subjectividade que me parece estar muito além do protocolo científico em circulação na Universidade? O protocolo é precisamente esse, aquele que impõe o bom uso do método e o resumo enquanto género do discurso que a todos deve dizer respeito. Independemente do que se tenha a dizer, o uso da linguagem surge ao serviço de grandes bens, a disciplina mental, a análise, a excelência. A forma de escrita aí praticada, não falando do novo esperanto que é o inglês, diria Julien Gracq, surge como o caminho mais curto e cómodo da “comunicação trivial”, mas científica.

A imposição progressiva de um tipo único de escrita é hoje uma clara evidência, e os estudantes depressa se apercebem da necessidade de o dominar. Trata-se de um regime académico que declara mortas as outras escritas, apagando além disso a memória e a imaginação que cada pessoa transporta para a escrita de um texto. Pode parecer um capricho, igualmente académico, defender a pluralidade das escritas na Universidade, ou admitir que tudo o que os estudantes hoje em dia produzem não passa de um exercício de estratégia, da procura de um ganho imediato, sujeitando-se, portanto, aos simulacros de uma escrita cuja forma é tida por universal no mundo do ensino e da ciência. Seja como for, parece-me realmente importante que a Universidade reflicta sobre como escreve, e de que modo tal processo se atravessa na nossa relação com o saber. A ser assim, a total subordinação do escriba (estudante e professor) à forma do texto científico já não me parece, contudo, um mero capricho. 

 
 
 
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