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Nicolau Saião
(Portugal). Poeta, publicista, actor-declamador
e artista plástico. Efectuou palestras e
participou em mostras de Mail Art e exposições
em diversos países. Livros: “Os objectos
inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares
perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de
Midas”, “Escrita e o seu contrário”. |
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NICOLAU
SAIÃO
Três perfis
de Contarelos para
mortos vivos
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1. GANIMEDES
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Quando Ganimedes,
o Meio-Poderoso, nasceu (numa noite vesga e tranquila de Agosto)
o Mundo sentiu um apertão, um espasmo, percorrer-lhe
raivosamente a cintura e a testa. Mas Ganimedes foi crescendo
forte e silencioso, vermelhos os cabelos, inquieto o nariz, os
dedos mindinhos mais compridos que os dos outros infantes.
Direis: nada nos garante que o vento terrinegro que nessa altura
percorria o laranjal, em ilustrados jogos, não tivesse
adivinhado-sabido o semicomeçar das trevas. Ainda que estranho
seja, nem a vaca nem o burro, aliás estarrecidos, recordaram
esperançosos antigas emoções. Ganimedes nasceu e cresceu, é
tudo: nem discurso disse nem fala botou, naquele acto de
rendição: Sòmente um gemido fino e solto, atendei, ficou a
assinalar e para todo o sempre o local do seu nascimento.
Ganimedes no Verão
caçou pardais. No Inverno matou cobras. No Outono atormentou
peixes e rãs. Na Primavera devorou borboletas e rasgou os
calções ao dormitar nos bosques. E depois da primeira comunhão,
de branco e azul fatiotado, sonhou com palácios distantes
cheínhos de fadas madrinhas.
Voltava triunfante
para casa, ao lusco-fusco, olhando o universo por cima do ombro.
As suas madrugadas eram de azougue e nos rios, lagos, fontes
(não esquecendo o espelho mágico que tanto o amava) estudava o
rosto inseguro. A barriga de Ganimedes, quando chovia, tinha a
cor da tristeza: por isso Ganimedes, futuro Senhor das Portas
Imprecisas, resolveu provocar o destino.
Agora,
sentado à mesa do Café, que linda e que fresca é, o serenal
Ganimedes pensava a sério nos mistérios, esperando Centaurus. O
velho palaciano, professor nas horas vagas, prometera aparecer.
Ganimedes, esse, cocou o revirão na existência.
Os olhitos
de perro de Centaurus, recorda o Meio-Poderoso, dançavam tem-te
não caias, abarcando Norte e Sul, Este e Oeste. Que pensar?
Beiça lambida, perna traçada, estômago pesado-leve, talvez fosse
melhor esquecer e mudar. Mas qual! É tão belo o cheiro dos
cobres! E nas unhas de Centaurus, olhos e ouvidos do rei, também
se entretopava com um bocado de imaginação o perfume desfeito
dos diamantes.
Agora, vede: a
respiração de Ganimedes, o Muitos-Anos potente, anos a vir, sobe
no ar feliz como uma aeronave esquisita. Que o hálito de
Ganimedes, direi antes que me esqueça, já visitou Tembuctu: não
é um simples bafo: dentro dele, com ele, agonizam épocas e sóis,
o que se conhece e o que jamais se entenderá, pergaminhos,
solenidades, clepsidras, visões; e de há muitas e muitas
badaladas que o Natal de Ganimedes começa onde o Natal de outros
acaba.
Contempla,
Ganimedes, o vaivém da avenida! Na tua mioleira ferve o querido
unguento das bruxas. No teu bolso direito o facalhão medita. No
algibeirão esquerdo uma palavra enrosca-se. Tudo terás,
Ganimedes! Já tiveste amigos poucos, já tiveste inimigos
defuntos, já andaste ao calor e ao frio, já gozaste na carne o
fedor dos beijos, já sentiste nas orelhas o caminhar dos maus
anos. No tempo velho ias tu, se bem me lembro, nos dezassete
fôlegos, tocou-te numa noite o buço o fresco braço de Emília.
Nevava com fartura. Era através de uma auréola que distinguias o
quarto de hóspedes. Andando em torno, fazendo do gelo o
princípio das eternas delícias, Emilia a Bela ria, ria.
Consagraste-te
depois ao sono e aos inventos da média maldade. Talvez por isso
o nariz te tivesse crescido com sabedoria e vigor.
Ganimedes ergue os
olhos. Ninguém lamentará a sorte que o espera. Cheira mal,
Ganimedes. Tão mal que obriga os que vão passando, sem que o
saibam, a apertar os dentes. Mas Ganimedes será o pavor e a
ressurreição e nada cessará de lhe pesar em cima.
Na cidade, num
largo ao longe, aves e cães debicam pedacinhos de pão escuro.
Também na cidade existem cães e aves esfomeadas. E a brutalidade
dos homens, a morte, nunca será infelizmente o acabar da
questão.
Como um lagarto
apodrecido, Ganimedes sentado espera. Provocou o destino, fez-se
por fora dos homens. Talvez por isso os pavilhões auriculares
não se envergonhassem da fama, pesada e maternal, de peregrino e
vidente. A sua cova será mais um rabisco a juntar a todos os
outros.
E enquanto o
Meio-Poderoso vai aguardando Centaurus, sentindo nas mãos
peludas e no pescoço o finante sol da tarde, de súbito
compreende que nunca mais voltará a contemplar, do meio dos
pinheirais antiquíssimos, o recuado e terrível luzeiro de Canis
Minor.
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2. BREBIS
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No meio da noite,
ao acordar de supetão, Brebis sente vontade de rir. Mentira
parecerá mas por momentos, no mar do sono, notou-se ligeiramente
iluminado; por momentos, sobre a calva monacal, ouviu adejar o
fru-fru da clara santidade.
No Casarão já
começaram a palpitar os ecos dos que vêm de longes terras:
cavalheiros-andantes, irmãos-chegados,
dormidos-nas-encruzilhadas, manas-de-mau porte, corcundas,
coxos, famélicos, leprosos; o costume, enfim, naquele santo
retiro, onde chegam dia após dia, ano após ano, e grão mérito se
junte e daí releve, os que desejam por bem a doçura jamais
negada do repousar beatífico.
Foi nessa altura,
dizia eu, que o manso Brebis de orelha longa pela primeira vez
olhou com atenção os dedos das suas mãos sabedoras.
Outrora Brebis
soubera coisas de muita espantação: o lugar que a aurora escolhe
para nascer, por exemplo. Mas já esquecera tudo, as dúvidas não
nos ligam às recordações. Como se calcula, a suavidade dos
cânticos é grata ao coração do homem, eis a verdade.
Na cozinha ronrona
a voz seráfica de frei João Sem Cuidados, cantando o seu mote de
esperançosa mágoa:
Frère Jacques, frère Jacques
dormez vous, dormez vous?
e no pátio lajeado os burricos de
serviço, cobertos pela sombra lunar dos pessegueiros e das
tílias, esperam o início do seu turno de bondades.
Na Torre dos
Grilos, aquela de tijolo e pedra que pelos anos fora crescera
atá às barbas das nuvens, S. Estrabum exercita-se cantochando e
responsando, ardente e comovido com o seu “métier” de grande
purificador. A seus pés, um donato vai registando em velino as
frases a celebrizar.
No catre, irmão
Brebis espreguiça-se para compensar e sente lá por dentro uma
intensa alegria.
Na cela quase nua,
quase virgem, de velharias nos cantos, de certeza que se esconde
uma invisível presença. Inventariemos: uma cadeira cambada, uma
távola redonda, uma bacia de esmalte, um mocho empalhado
(símbolo da coragem e da humildade) uma caveira de esculápio, um
astrolábio, um globo. E Brebis. Inventariemos mais: uma gamela
onde por vezes, com preguiça de ir ao urinol, faz o chichi; uma
estante com “in fólios”, seis terços com as contas de pau-santo;
um relógio de cuco; três exemplares do “Reader’s Digest”; um
óculo para ver o destino; uma lamparina. E Brebis.
Brebis olhou
segunda vez, atentamente, as suas mãos cor de caca de
recém-nascido e os dedos bondosos. E sente que na alma lhe vai
caindo como que um trémulo pingo de negro licor.
Brebis, como se
sabe, já inventou uma nova filosofia: negar a existência das
ruas que a partir do crepúsculo perdem a luz e a memória.
Qualquer dia começará a comer o pão pelo lado mais escuro e
cortará as unhas seis vezes por ano. Andará pelos corredores com
a cabeça baixa, salmodiando ciência e reza. Olhará a luz que os
vitrais coam, estremecerá de frio como a flama das velas,
bimbalhará como os sinos das matinas, rirá para dentro devagar.
Sentirá rumores de
gente esquisita, com um odor lixado a incenso. Mas por enquanto,
pensando nisto, apenas a sacola das migas se começa a queixar de
abandono e desprezo.
Diz para si
próprio que o maior mistério é andar quando deve andar, dormir
quando deve dormir, fazer a barba, entrar no refeitório com
pratos de boa loiça, rir para o sol, rir para as árvores do
monte, contar anedotas. Fugir dos ajuntamentos e não desejar a
mulher do próximo. As rugas, os olhos fechados, ficam onde
calha. Brebis, ausente em rugidos, sonolento enquanto velho,
deixa escapar um gemido honrado. Um gemido sulfuroso.
No salão onde as
orações e os suspiros têm quentes frenesis, as preces misturam o
arrependimento com o desejo de entusiasmo. Tanta gentinha! O
oratório resplandece no meio dos rostos intensamente ardidos.
Brebis começa a pensar que, dali para a frente, o resto da sua
vida começará a ganhar em deslumbramento e santidade.
…Que Brebis,
aliás, repartirá pelos outros. Pois o regresso é sempre nobre e
as sombras que tremem, quase mortas, mesmo assim pulsam
misteriosamente como a paz magnífica das lágrimas redentoras.
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3. VIDA E AVENTURAS DE JONAS
P. CLAUSEWITZ
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Na tarde clara
Jonas arrotou.
Era o antes da
noite e a cidade, semi-morta, esperava assustada a brisa do mar.
Para os lados de Samarcanda, a Outra, Jonas divisava, através do
mofo do rio, um brilho estranho de casarios desvairados, um
jardim, os ameaços pintados da planície, uma capela enorme e
silenciosa, dura, quente. E por debaixo da janela de Jonas, o
preclaro, rei dos reis e sábio dos sábios, as folhas sempre sem
flores das árvores do seu parque palacial estralejavam como pães
de trigo talvez por causa daquele vento que vinha não se sabia
de onde.
Jonas, antes da
primeira estrela, levanta-se. A cadeira de prata, aliviada do
seu peso, suspira. Mas levemente, mas ternamente, que o peso de
Jonas é doirado e de veludo negro as suas calças são. E doce o
seu sentar de largos anos.
O quarto,
suspenso, como que amoroso e dado, morno, espia-lhe todos os
gestos. E altos são os pensamentos de Jonas, que nele próprio
pensa e no seu destino. Como está velho! Os cabelos, até os
brancos, desapareceram e no crânio de Jonas, por bondade, uma
luz cor de anil depositou os seus ovos e as suas esperanças. E
assim é que a cabeça do Preclaro brilha vagarosamente na
não-obscuridade.
No seu
princípio, ante o mar e ante a terra, enquanto as palavras que
mais tarde – oh quão mais tarde – iriam poisar-lhe na língua
limpa como manteiga e dela sair após, Jonas amara o seco roncar
do oceano, onde – pensava ele – haviam habitado os seus
ascendentes. Ou nele andado haviam, que o povo de Menchu-Pachu,
ciente da direcção que oferece a terra a achar, para ela
caminhara, mas com norte, e nele saudando o carinho do sol e dos
cogumelos em pó. Pois que deles é que vinha a riqueza trágica de
Menchu-Pachu, cujas chaves de cera e de bronze nas mãos doces de
Jonas repousavam.
Ouro canela marfim florete de espadachim leão jumento segmento
de
prazer ou de tormento raro porque é claro o lembrete do
juramento
como um
não e um porque sim.
E eram os
pensamentos do Grande Rei que num soprar instantâneo lhe
viajavam através das circunvalações, lhe traçavam violências
para haver, glórias para estimar, duas crianças ameaçadas por um
rouxinol, o divisar de relógios podres na moleza de um salão que
Jonas amava, que haveria de amar quando à noite, bem na noite,
no meio do palpitar das velas tremulantes da sua câmara de
dormir o seu fiel Culhambas até ele viesse e junto ao leito
esperasse o seu gesto de olhos, o seu aceno de queixo e depois
de ouvir o sapiente ensino das suas palavras para um governo de
mestre aguardasse a chegada de Blazina, a por demais amada.
Jonas dir-lhes-ia, com a brancura da alegria na sua face mártir,
o quanto os relógios todos lhe eram queridos, com os seus
minutos lentos e poderosos. Pois não é através deles, da sua
marcha por entre as horas esquivas, que a grandeza dos grandes
se ademonstra?
Jonas,
sabe-o, não morrerá. Defeso lhe é morrer, vedado lhe será jazer
em pedra e em vermes, e nunca no seu corpo rodeado de prantos e
cetins repousarão os dentes verdes e agudos de alguém do
além-túmulo. Ah mas agora é a morte. Da dúvida, da inquietação
dos outros que lá por fora andam, daqueles que pouco sabem e
quase nada podem. Que para Jonas é todo seu o dizer para onde -
a mais bela das mortes, a da indecisão e da procura de pequenas
escusas para os que não encontraram a verdade que é dele e de
mais ninguém. O saber para quê, o como e o com certeza, e ficar
desta maneira junto à janela, com a silhueta envolta em macia
pele de animais do quase polo sul, serenamente, sustentando o
seu ardor amado de ser a Lei, a Vida, o Sempre. O ontem e o hoje
e o permanente.
Frente ao rio,
lodoso e luzindo como uma flama no horizonte, Jonas arrotou.
Saída é a lua, embora a noite espere. E como um traço de cal no
céu se firma. E a ele lhe anuncia, Jonas o puro, rei dos reis e
sábio dos sábios, o de Menchu-Pachu a loira e a morena, que
também na madrugada não cumprida Dona Leonarda virá com Blazina
já ida, com o seu silêncio senhoril e sensual sentado num
escabelo. E ali ficará até que Jonas, com o gesto do seu queixo,
com o vazio ondeante da sua mão, lhe acaricie o ombro vidrado de
recordações e de mistérios e sonolências. Antigas, da sua
existência vizinhas, comuns e raras.
Pois de Jonas, o
Preclaro, é a sabedoria do mundo que nele achou seu mando. E
nele perdurará. Enquanto o Universo rolar para o lado de Altair,
o astro de todas as realidades sobrepostas.
Inteiras,
inconquistáveis.
ns
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