REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


ns | número 63 | março-abril 2017

 
 






Nicolau Saião
(Portugal). Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário”.  
     

 

NICOLAU SAIÃO

 

Três perfis 

 

de Contarelos para mortos vivos

 

1. GANIMEDES

 

    Quando Ganimedes, o Meio-Poderoso, nasceu (numa noite vesga e tranquila de Agosto) o Mundo sentiu um apertão, um espasmo, percorrer-lhe raivosamente a cintura e a testa. Mas Ganimedes foi crescendo forte e silencioso, vermelhos os cabelos, inquieto o nariz, os dedos mindinhos mais compridos que os dos outros infantes. Direis: nada nos garante que o vento terrinegro que nessa altura percorria o laranjal, em ilustrados jogos, não tivesse adivinhado-sabido o semicomeçar das trevas. Ainda que estranho seja, nem a vaca nem o burro, aliás estarrecidos, recordaram esperançosos antigas emoções. Ganimedes nasceu e cresceu, é tudo: nem discurso disse nem fala botou, naquele acto de rendição: Sòmente um gemido fino e solto, atendei, ficou a assinalar e para todo o sempre o local do seu nascimento.

    Ganimedes no Verão caçou pardais. No Inverno matou cobras. No Outono atormentou peixes e rãs. Na Primavera devorou borboletas e rasgou os calções ao dormitar nos bosques. E depois da primeira comunhão, de branco e azul fatiotado, sonhou com palácios distantes cheínhos de fadas madrinhas.

    Voltava triunfante para casa, ao lusco-fusco, olhando o universo por cima do ombro. As suas madrugadas eram de azougue e nos rios, lagos, fontes (não esquecendo o espelho mágico que tanto o amava) estudava o rosto inseguro. A barriga de Ganimedes, quando chovia, tinha a cor da tristeza: por isso Ganimedes, futuro Senhor das Portas Imprecisas, resolveu provocar o destino.

      Agora, sentado à mesa do Café, que linda e que fresca é, o serenal Ganimedes pensava a sério nos mistérios, esperando Centaurus. O velho palaciano, professor nas horas vagas, prometera aparecer. Ganimedes, esse, cocou o revirão na existência.

     Os olhitos de perro de Centaurus, recorda o Meio-Poderoso, dançavam tem-te não caias, abarcando Norte e Sul, Este e Oeste. Que pensar? Beiça lambida, perna traçada, estômago pesado-leve, talvez fosse melhor esquecer e mudar. Mas qual! É tão belo o cheiro dos cobres! E nas unhas de Centaurus, olhos e ouvidos do rei, também se entretopava com um bocado de imaginação o perfume desfeito dos diamantes.

    Agora, vede: a respiração de Ganimedes, o Muitos-Anos potente, anos a vir, sobe no ar feliz como uma aeronave esquisita. Que o hálito de Ganimedes, direi antes que me esqueça, já visitou Tembuctu: não é um simples bafo: dentro dele, com ele, agonizam épocas e sóis, o que se conhece e o que jamais se entenderá, pergaminhos, solenidades, clepsidras, visões; e de há muitas e muitas badaladas que o Natal de Ganimedes começa onde o Natal de outros acaba.

    Contempla, Ganimedes, o vaivém da avenida! Na tua mioleira ferve o querido unguento das bruxas. No teu bolso direito o facalhão medita. No algibeirão esquerdo uma palavra enrosca-se. Tudo terás, Ganimedes! Já tiveste amigos poucos, já tiveste inimigos defuntos, já andaste ao calor e ao frio, já gozaste na carne o fedor dos beijos, já sentiste nas orelhas o caminhar dos maus anos. No tempo velho ias tu, se bem me lembro, nos dezassete fôlegos, tocou-te numa noite o buço o fresco braço de Emília. Nevava com fartura. Era através de uma auréola que distinguias o quarto de hóspedes. Andando em torno, fazendo do gelo o princípio das eternas delícias, Emilia a Bela ria, ria.

    Consagraste-te depois ao sono e aos inventos da média maldade. Talvez por isso o nariz te tivesse crescido com sabedoria e vigor.

    Ganimedes ergue os olhos. Ninguém lamentará a sorte que o espera. Cheira mal, Ganimedes. Tão mal que obriga os que vão passando, sem que o saibam, a apertar os dentes. Mas Ganimedes será o pavor e a ressurreição e nada cessará de lhe pesar em cima.

    Na cidade, num largo ao longe, aves e cães debicam pedacinhos de pão escuro. Também na cidade existem cães e aves esfomeadas. E a brutalidade dos homens, a morte, nunca será infelizmente  o acabar da questão.

    Como um lagarto apodrecido, Ganimedes sentado espera. Provocou o destino, fez-se por fora dos homens. Talvez por isso os pavilhões auriculares não se envergonhassem da fama, pesada e maternal, de peregrino e vidente. A sua cova será mais um rabisco a juntar a todos os outros.

    E enquanto o Meio-Poderoso vai aguardando Centaurus, sentindo nas mãos peludas e no pescoço o finante sol da tarde, de súbito compreende que nunca mais voltará a contemplar, do meio dos pinheirais antiquíssimos, o recuado e terrível luzeiro de Canis Minor.   

 

2.  BREBIS  

 

    No meio da noite, ao acordar de supetão, Brebis sente vontade de rir. Mentira parecerá mas por momentos, no mar do sono, notou-se ligeiramente iluminado; por momentos, sobre a calva monacal, ouviu adejar o fru-fru da clara santidade.

    No Casarão já começaram a palpitar os ecos dos que vêm de longes terras: cavalheiros-andantes, irmãos-chegados, dormidos-nas-encruzilhadas, manas-de-mau porte, corcundas, coxos, famélicos, leprosos; o costume, enfim, naquele santo retiro, onde chegam dia após dia, ano após ano, e grão mérito se junte e daí releve, os que desejam por bem a doçura jamais negada do repousar beatífico.

    Foi nessa altura, dizia eu, que o manso Brebis de orelha longa pela primeira vez olhou com atenção os dedos das suas mãos sabedoras.

    Outrora Brebis soubera coisas de muita espantação: o lugar que a aurora escolhe para nascer, por exemplo. Mas já esquecera tudo, as dúvidas não nos ligam às recordações. Como se calcula, a suavidade dos cânticos é grata ao coração do homem, eis a verdade.

    Na cozinha ronrona a voz seráfica de frei João Sem Cuidados, cantando o seu mote de esperançosa mágoa:

 

                   Frère Jacques, frère Jacques

                   dormez vous, dormez vous?

 

e no pátio lajeado os burricos de serviço, cobertos pela sombra lunar dos pessegueiros e das tílias, esperam o início do seu turno de bondades.

    Na Torre dos Grilos, aquela de tijolo e pedra que pelos anos fora crescera atá às barbas das nuvens, S. Estrabum exercita-se cantochando e responsando, ardente e comovido com o seu “métier” de grande purificador. A seus pés, um donato vai registando em velino as frases a celebrizar.

    No catre, irmão Brebis espreguiça-se para compensar e sente lá por dentro uma intensa alegria.

    Na cela quase nua, quase virgem, de velharias nos cantos, de certeza que se esconde uma invisível presença. Inventariemos: uma cadeira cambada, uma távola redonda, uma bacia de esmalte, um mocho empalhado (símbolo da coragem e da humildade) uma caveira de esculápio, um astrolábio, um globo. E Brebis. Inventariemos mais: uma gamela onde por vezes, com preguiça de ir ao urinol, faz o chichi; uma estante com “in fólios”, seis terços com as contas de pau-santo; um relógio de cuco; três exemplares do “Reader’s Digest”; um óculo para ver o destino; uma lamparina. E Brebis.

    Brebis olhou segunda vez, atentamente, as suas mãos cor de caca de recém-nascido e os dedos bondosos. E sente que na alma lhe vai caindo como que um trémulo pingo de negro licor.

    Brebis, como se sabe, já inventou uma nova filosofia: negar a existência das ruas que a partir do crepúsculo perdem a luz e a memória. Qualquer dia começará a comer o pão pelo lado mais escuro e cortará as unhas seis vezes por ano. Andará pelos corredores com a cabeça baixa, salmodiando ciência e reza. Olhará a luz que os vitrais coam, estremecerá de frio como a flama das velas, bimbalhará como os sinos das matinas, rirá para dentro devagar.

    Sentirá rumores de gente esquisita, com um odor lixado a incenso. Mas por enquanto, pensando nisto, apenas a sacola das migas se começa a queixar de abandono e desprezo.

    Diz para si próprio que o maior mistério é andar quando deve andar, dormir quando deve dormir, fazer a barba, entrar no refeitório com pratos de boa loiça, rir para o sol, rir para as árvores do monte, contar anedotas. Fugir dos ajuntamentos e não desejar a mulher do próximo. As rugas, os olhos fechados, ficam onde calha. Brebis, ausente em rugidos, sonolento enquanto velho, deixa escapar um gemido honrado. Um gemido sulfuroso.

    No salão onde as orações e os suspiros têm quentes frenesis, as preces misturam o arrependimento com o desejo de entusiasmo. Tanta gentinha! O oratório resplandece no meio dos rostos intensamente ardidos. Brebis começa a pensar que, dali para a frente, o resto da sua vida começará a ganhar em deslumbramento e santidade.

    …Que Brebis, aliás, repartirá pelos outros. Pois o regresso é sempre nobre e as sombras que tremem, quase mortas, mesmo assim pulsam misteriosamente como a paz magnífica das lágrimas redentoras.

 

3. VIDA E AVENTURAS DE JONAS P. CLAUSEWITZ

 

    Na tarde clara Jonas arrotou.

    Era o antes da noite e a cidade, semi-morta, esperava assustada a brisa do mar. Para os lados de Samarcanda, a Outra, Jonas divisava, através do mofo do rio, um brilho estranho de casarios desvairados, um jardim, os ameaços pintados da planície, uma capela enorme e silenciosa, dura, quente. E por debaixo da janela de Jonas, o preclaro, rei dos reis e sábio dos sábios, as folhas sempre sem flores das árvores do seu parque palacial estralejavam como pães de trigo talvez por causa daquele vento que vinha não se sabia de onde.

    Jonas, antes da primeira estrela, levanta-se. A cadeira de prata, aliviada do seu peso, suspira. Mas levemente, mas ternamente, que o peso de Jonas é doirado e de veludo negro as suas calças são. E doce o seu sentar de largos anos.

     O quarto, suspenso, como que amoroso e dado, morno, espia-lhe todos os gestos. E altos são os pensamentos de Jonas, que nele próprio pensa e no seu destino. Como está velho! Os cabelos, até os brancos, desapareceram e no crânio de Jonas, por bondade, uma luz cor de anil depositou os seus ovos e as suas esperanças. E assim é que a cabeça do Preclaro brilha vagarosamente na não-obscuridade.

     No seu princípio, ante o mar e ante a terra, enquanto as palavras que mais tarde – oh quão mais tarde – iriam poisar-lhe na língua limpa como manteiga e dela sair após, Jonas amara o seco roncar do oceano, onde – pensava ele – haviam habitado os seus ascendentes. Ou nele andado haviam, que o povo de Menchu-Pachu, ciente da direcção que oferece a terra a achar, para ela caminhara, mas com norte, e nele saudando o carinho do sol e dos cogumelos em pó. Pois que deles é que vinha a riqueza trágica de Menchu-Pachu, cujas chaves de cera e de bronze nas mãos doces de Jonas repousavam.

 

      Ouro canela marfim florete de espadachim leão jumento segmento de

      prazer ou de tormento raro porque é claro o lembrete do juramento

      como um não e um porque sim.

 

    E eram os pensamentos do Grande Rei que num soprar instantâneo lhe viajavam através das circunvalações, lhe traçavam violências para haver, glórias para estimar, duas crianças ameaçadas por um rouxinol, o divisar de relógios podres na moleza de um salão que Jonas amava, que haveria de amar quando à noite, bem na noite, no meio do palpitar das velas tremulantes da sua câmara de dormir o seu fiel Culhambas até ele viesse e junto ao leito esperasse o seu gesto de olhos, o seu aceno de queixo e depois de ouvir o sapiente ensino das suas palavras para um governo de mestre aguardasse a chegada de Blazina, a por demais amada. Jonas dir-lhes-ia, com a brancura da alegria na sua face mártir, o quanto os relógios todos lhe eram queridos, com os seus minutos lentos e poderosos. Pois não é através deles, da sua marcha por entre as horas esquivas, que a grandeza dos grandes se ademonstra?

     Jonas, sabe-o, não morrerá. Defeso lhe é morrer, vedado lhe será jazer em pedra e em vermes, e nunca no seu corpo rodeado de prantos e cetins repousarão os dentes verdes e agudos de alguém do além-túmulo. Ah mas agora é a morte. Da dúvida, da inquietação dos outros que lá por fora andam, daqueles que pouco sabem e quase nada podem. Que para Jonas é todo seu o dizer para onde - a mais bela das mortes, a da indecisão e da procura de pequenas escusas para os que não encontraram a verdade que é dele e de mais ninguém. O saber para quê, o como e o com certeza, e ficar desta maneira junto à janela, com a silhueta envolta em macia pele de animais do quase polo sul, serenamente, sustentando o seu ardor amado de ser a Lei, a Vida, o Sempre. O ontem e o hoje e o permanente.

    Frente ao rio, lodoso e luzindo como uma flama no horizonte, Jonas arrotou. Saída é a lua, embora a noite espere. E como um traço de cal no céu se firma. E a ele lhe anuncia, Jonas o puro, rei dos reis e sábio dos sábios, o de Menchu-Pachu a loira e a morena, que também na madrugada não cumprida Dona Leonarda virá com Blazina já ida, com o seu silêncio senhoril e sensual sentado num escabelo. E ali ficará até que Jonas, com o gesto do seu queixo, com o vazio ondeante da sua mão, lhe acaricie o ombro vidrado de recordações e de mistérios e sonolências. Antigas, da sua existência vizinhas, comuns e raras.

    Pois de Jonas, o Preclaro, é a sabedoria do mundo que nele achou seu mando. E nele perdurará. Enquanto o Universo rolar para o lado de Altair, o astro de todas as realidades sobrepostas.

    Inteiras, inconquistáveis.   

 

                                                                                             ns

 
 

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