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MÁRIO CESARINY DE VASCONCELOS
& NICOLAU SAIÃO
É assim que se faz a estória
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DUAS CARTAS (inéditas) E UM
RELATO
Palavras prévias
Estas cartas
que aqui se dão a lume fazem luz sobre circunstâncias que
aconteciam aquando da Exposição Internacional surrealista “O
fantástico e o maravilhoso”, realizada em 1984 no Teatro Ibérico
e seguidamente, pela mão do crítico Rui Mário Gonçalves, posta
na SNBA.
Na Nota
final se dão mais elementos que, cremos, se necessário
iluminarão o que nelas é abordado.
O relato, à
guisa de “reportagem”, que na parte final do bloco se insere,
descreve – como é patente - um certo ambiente que por essa época
envolvia a panorâmica lusitana, mormente nas suas relações com
os escritores e pintores surrealistas e outros autores
independentes – não contaminados pelo realismo orgânico.
NS
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Quadro de Nicolau Saião |
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1. De Mário Cesariny a NS (manuscrito)
Out. 84
Meu Caro Francisco
Nicolau
Depois de muitos picos e
oxalá não venham ainda outros mais agudos, o Catálogo da
Exposição ficou ontem entregue e agora eles que dêem ao dedo
atrasado. Se puder abrir no meio de Novembro já seria muito bom.
Concordo firme com o que na
tua última carta dizes do “anarquismo” do e dos Rosemont e o que
eu gostava bem é que lho dissesses a ele directamente. Apreciei
tanto a tua carta que pensei publicá-la no catálogo, mas parei,
porque: teria de ser revista, com vista à publicação; b) levava
os textos inseridos para um terreno de que, no geral, estão
alheios.
Assim, do que lá vem, e
como “responsabilidade” minha no ter posto, penso que será
bastante publicar, juntamente com o texto do Rosemont “Para o II
Incêndio de Chicago” (que é quanto a mim um belo texto de furor
poético) o texto do John Lyle de que fiz um Bureau (chata
palavra esta) Surrealista ainda este ano, texto que é contradita
formal aos apelos ó Marx ó Freud ó Trotsky ou Lenine; e ainda o
texto do Jean-Jacques Dauben/Timoty R. Johnson, que é
ultrapassagem serena da questão.
Repito-te que era muito
bom (sobretudo para ele) que, e agora que v/ estão em contacto
directo, lhe escrevesses dizendo. Mas teria de ser em inglês ou
francês porque lá o português não se ouve. Julgo que em espanhol
também poderia ser. Ou chinês.
O quadro do Mourato
tem que vir. O mesmo problema há em relação às esculturas da
Silvia Westphalen e do Pedro Fazenda, que são material pesado e
estão em Lagos.
O Carlos Martins tem
sido um amigo e um colaborador admirável, e não ponho um pêlo de
dúvida de que se esta Exposição se faz ou fez muito mais de
metade da força necessária a tal loucura é dele. Mas é também um
emotivo, uma emoção a andar, como de criança. Boa, que é a
diferença entre ele e o Cruzeiro Seixas, que sempre fez, ou
gostou de fazer, de criancinha má.
O que dizes dos “amigos”
de aí, quanto a ajudas (transporte do quadro do Mourato), está
um pouco contrabalançado pelo que a mesma gente tem feito aqui
para desembaraçar obstáculos inenarráveis e seculares. Assuntos
alfandegários medonhos e outros medos mais.
Hoje o Teatro Ibérico
estreia a Celestina. Vou ver.
O Nicolas Calas
refere-se a montras no texto que traduziste. E ainda que
isso esteja enterrado lá no 1940, eu ainda me lembro de ter
visto, pelo menos duas delas.
Velho, ã?
O Arpad Szenes caíu não
sei como e está com um osso para pegar. Com a idade dele isso é
pior do que mau. Escrevi-lhe e enviei-lhe o poema que lhe
dedicas e vai sair no catálogo.
A ideia é incitar o
osso.
Escreve ao Rosemont,
mesmo em chinez. Ou encontra aí quem te verta em inglês ou
francês. Eu, a ele, já disse o que tinha a dizer há pares de
anos.
Parece que o Robert
Green, a Debra Taub, o John Graham, o Ludwig Zeller, a Susana
Wald e o Granell vêm cá ver a Exposição. E há um Australiano
muito muito bom que diz que já não pode com tantos cangurus e
quer vir para a Europa. Arranjas-lhe vida de artista aí
em Portalegre?
O Mourato deve
vir ver a Exposição! Trá-lo contigo.
Grande
abraço
Mário
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2. De NS a MC (a
carta a que este se refere na sua)
26 Set. 84
Mário:
Apresso-me a escrever-te
para te dizer que, com efeito, o papel do Rosemont é de
facto de mais. É, pelo menos, um bom serviço prestado aos kgb e
companhia, sob a sua capa anarcaqueirante.
Não alinho nisso; seria
bom compreender-se que, também eu, não concordo com a sua
inclusão no Catálogo; o fantástico e o maravilhoso, sendo a
inteligência e a poesia em funcionamento prático, não se
compadecem com a vizinhança de pistolinhas de Chicago. Aquilo
não é revolucionarismo, é politiquice às três matracadas.
Creio que é urgente
mandares dizer a Rosemont que a Exposição nada tem a ver com
anarquistas federados ou só de chapelinho; para que tudo não se
complique e comece a ficar macacal. E dê merda.
Por outro lado, importa
dizer de uma vez por todas: eu não sou anarquista, explicando:
sou libertário porque surrealista. A minha estadia junto
dos anarquistas ibéricos foi um equívoco provocado pelo
facto de eu julgar que as pessoas que se dizem livres têm poesia
na cabeça e no corpo, trocando: que são a própria poesia.
Quem são a própria poesia são os
poetas: tu, eu, o Martins, assim . Os outros podem sê-lo
eventualmente, mas não se têm notado nada. São anarquistas de
aviário ou “pistoleiros” puros e simples. A Anarquia, para mim,
teria de ser a poesia em movimento. Mas aqui (ou em todo o lado?
Espero que não) é só a politiquice duma dada extrema. Que vão
para a pôrra, definitivamente. O único anarquista verdadeiro é o
homem criativo, o Poeta, que não se curva a cores e traquitanas.
E disse, caraças!
Concordo pois contigo e Carlos
que importa levar a Rosemont as “actas de Niceia” (passe a
piada!). O texto dele parece-me menos surrealista que exaltado.
E a exaltação assim é meia-mantença de um outro conformismo.
Prefiro os índios e os esquimós, mais que os americanos em
(pseudo?) rebeldia. Tenho a ver com os Dogons (assim como com
Basile Valentim) nada tenho a ver com Marx e Lenine. E pronto,
punheta!
Cago tanto na LSD como nos
manifestos eleitoralistas. Tanto me urino nas bombas de compra
ou de fabrico próprio como nos artefactos dos cabrões dos
militares e estados-maiores. E acabei.
Amanhã te mandarei o resto da
tradução do Calas. Acredito no valor do livro dele se o dizes.
Aliás estes textos dele não são maus, são só horrivelmente
ingénuos (embora necessários, e além disso a inteligentsia
de cá é tão estúpida que não irá dar por nada). Depois, um dia,
falaremos disso.
Os meus textos que apontas não
estão publicados em nada a não ser as cópias fotocopiadas que te
mandei – com excepção do Picasso.
Agrada-me que tenhas colocado
esses para publicação no catálogo.
Talvez dentro deste tempo eu
tenha dinheiro para editar um livro (que dizes a “Objectos
inquietantes” ou outro?) Fala disto. Procura por favor uma
tipografia que faça BARATO, PÁ. Davas capinha? Então vê lá isto.
Estou um bocado melhor, depois falaremos de viva voz.
E viva a Poesia, a revolta e a
beleza sem amarras nenhumas.
E vejam lá isso sobre o
Rosemont. Se não, qualquer dia estão a fabricar bombas atómicas
de bolso. O que é tão mau como o resto.
Abraço grande do
Francisco (nome civil de NS, também
manuscrito)
NOTA - :
Coincidindo com os prolegómenos da Exposição "O fantástico e o
maravilhoso", o diretor do quinzenário Voz anarquista
(Francisco Quintal) aceitara a minha sugestão de ali ser dada a
lume uma "página surrealista" organizada por nós (eu e Mário);
assim sendo, juntámos colaboração de surrealistas nacionais e
estrangeiros; Franklin Rosemont (EUA), para além de um bom texto
sobre o surrealismo destinado ao Livro-Catálogo da Exposição (e
que conto publicar numa próxima edição) mandava um outro
destinado eventualmente à dita página no qual, visto o
anarquismo – conforme à tradição - ser de esquerda, se
debruçava com extrema "militância esquerdista" sobre o momento
português - manifestamente devido ao desconhecimento do que de
facto sucedia em Portugal, onde os surrealistas eram
marginalizados e fortemente hostilizados (bem como muita outra
gente) pelo partido político que ali representava o império
soviético e liderava as operações de conquista do poder em
conformidade.
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O relato-“reportagem”:
“Pela porta do cavalo”
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No decorrer da turbulenta sessão surrealista aqui referida
e durante a qual se esboçaram entre alguns assistentes amoráveis
pequenas cenas de pugilato e outras danças a carácter
propiciadas por espectadores fãs dos situacionistas de Leste,
além de um poema (já publicado em diversos órgãos e espaços
informativos) Mário Botas – que ali nos fôra acompanhar como
espectador - teve a gentileza de me oferecer um desenho
aguarelado de excelente feitura. Perdido sem apelo nem agravo
entre os eflúvios da zaragata ficou ele, creio que capturado por
um desembaraçado anónimo admirador do pintor - o que a ninguém
dói mais que a mim, seu feliz proprietário durante o melhor de
aí uns vinte minutos… ou duas horas.
Sei, por tradição
escrita e oral, que há uns senhores (ensaístas ou biógrafos,
lhes chamam) que têm por mester traçar a vida e os cometimentos
dos que em esta vida pintaram ou poetaram. Dedicado a esses bons
espíritos, poupando-lhes assim trabalho moroso de investigação,
é que segue este resquício de texto, enviesado porque os tempos
não dão para mais.
Ora foi que no
passado dia 1 de Novembro dei comigo, de juntura com o Mário
Cesariny, num salão de Alcântara a falar de surrealismo. A
sessão foi algo picaresca. No meio de gente atenta e
interessada houve (e ainda bem, ou mal) uns fulanos que não
aguentaram o Artaud, os negros Nauba em livro que lhes dei a
ver, os poemas do Mário e os meus próprios. No meio da conversa
deram de si, o que foi curioso de contemplar. Já toda a
gente sabe que no Movimento político luso (digamos assim por
comodidade) há, discreta e séria, uma doce corrente meio nazi/
meio estalinista, expressa ou camuflada. Tão camuflada que por
vezes nem os próprios se reconhecem. Bem certo é que o estampido
das suas cabeças por dentro lhes dificulta às vezes o
conhecimento intrínseco de si mesmos, mas o que não está bonito
é que deixemos os vindouros sem isto lhes assinalarmos.
A palestra sucedeu
no âmbito da Semana de Presença Libertária. Antes de nós tinha
actuado o Grupo Mandrágora com uma peça em um acto de Jorge de
Lima Alves, “Jau”, que está a preparar-se para enfrentar o
público. Bons moços, os de “Jau” precisam, fundamentalmente, de
dinheiro. Como não lhes sairá, seguramente, a Taluda por estes
meses mais chegados, talvez outra entidade abone.
Depois de eu ter
apresentado uma breve resenha dos prolegómenos dadaístas e
surrealistas, Mário Cesariny “para lançar uma ponte entre todos
e que permitisse intervenções e perguntas”, começou a ler umas
linhas de Artaud, do seu livro “Viagem à terra dos Tarahumaras”.
Foi quase a seguir que começou a bagunça (peço desculpa
aos meus futuros biógrafos mas não posso utilizar outro termo
menos vernáculo): um senhor de barbas, atingido pela voz do
autor de “A cidade queimada” e pelos ecos de Artaud, increpou
logo o ledor, perguntando-lhe com laivos que pensou irónicos se
“aquilo era uma lição de antropologia”. O que ele queria, viu-se
depois, era que os surrealistas dissessem ao que vinham, como os
pajens de antanho. Qual era o seu presente e, eventualmente, o
seu futuro. Antes de lhe responder, o que fiz seguidamente, uma
senhora do sector interessado desfechou-lhe com vivacidade o que
ele estava a pedir: “que aquilo não era um comício e, se não
estava interessado na voz dos poetas, podia sair e arejar o
ambiente”. O rapaz de barbas, que devia ser um tímido, calou-se
prudentemente.
Depois de Cesariny
lhe ter dito que, ao contrário dele, não acreditava no progresso
ocidental, que era o que repassava a sua intervenção, pouco na
história e ainda menos no futuro da literatura, afirmei-lhe por
minha vez que me parecia que Artaud, pondo de parte o interesse
evidente do seu relato, todo percorrido por uma aragem de paixão
e imaginação, não estava morto. “Neófito, não há morte”, como
dizia o Fernando Pessoa. Além disso, era de nos interrogarmos se
não estariam mais mortos os laboriosos mentores da cultura
cristã inventora da corrida em frente (para o abismo). Quanto ao
surrealismo, vai indo bem e de saúde: a poesia sob todas as
formas é o que lhe interessa, os totalitarismos o que não lhe
quadra. Disse alguns textos do Cesariny e meus, espalhando
revoada de diabos. Recompostas as coisas, tracei um panorama do
que se pode entender por acção poética: prospecção do humor
negro, do amor e da alta Aventura, da ligação ao
não-autoritarismo, à Beleza e ao repúdio do que por detrás dela
se esconde como um rinoceronte: o horrível do Belo,
exemplificado entre nós por sarcófagos altifalantes como José
Augusto França, Prado Coelho, universitários e outra gente de
fraque. Expliquei mais ou menos em tempo porque é que aderimos à
chamada Utopia dos Grandes Transparentes, porque negamos a
religião clerical e o Poder, seja ele de Estado ou de sector.
Foi a seguir, quando coloquei o Dada retardado Vaneigen no lugar
que lhe compete (estraga-albardas mascarado de sacristão,
exemplificado pela repugnante frase “a Esperança é a trela da
submissão”) que alguns rapazes ficaram um pouco ourados. Após
dar a minha opinião sobre o que eles pretendem destruindo a
Poesia e a Arte (a arte lúcida e viva) e que é simplesmente
destruir a forma mais eficaz de criatividade, dei a altura e a
água ao Mário que mostrou sem margem para confusão a razão de
serem os adeptos de Vaneigen iguaizinhos aos moços de Brejnev:
adesão a um comportamento rígido e totalizador, sequelas sexuais
não resolvidas, ódio à Vida no mais alto grau, adesão a esquemas
maniqueístas. Depois de me referir ao exemplo que Bradbury
equacionou no seu magnífico “Fahrenheit 451”, uma sociedade
crestadora dos livros, das pinturas, mergulhada na masturbação,
no comer-dormir-trabalhar e na delação, foi aí que tive
oportunidade de ver saltar do canto um indivíduo espumando de
fúria que, parecendo conhecer-me, achou “que tinha de
acabar-se com a Arte e os artistas”. Retorqui-lhe que só
havia um meio para isso – prender em campos de concentração os
ditos, queimar os quadros e instaurar a polícia total do
pensamento e do corpo. Pelo que me dizia respeito garantia-lhe
que, mesmo numa cela, mesmo retalhado, continuaria a fazer
versos, se não escritos pelo menos pensados. O indivíduo em
causa, persistindo, afirmou-me que o que lhe interessava era
“destruir o surrealismo”, programa aliás digo eu já no mapa de
certos sujeitos como Hitler, Mussolini e Salazar. O que o
indivíduo queria significar era sem dúvida “destruir a poesia”
que para ele ao que percebi é apenas alibi e truque.
Censurado por
alguns assistentes, com quem chegou a envolver-se em disputa
física apartada por outros, a pessoa tentou continuar a conversa
lá fora, não sem antes me tentar aplacar dizendo-se magoado por
eu o ter comparado ao Brejnev. De facto comparei-o mal:
parece-se mais com um jovem e desaparecido membro da
“Jugendgroup” que vi num filme sobre a Segunda Guerra Mundial.
A sessão, ao que
percebi, iria acabar mal se um interveniente não tivesse vindo
pôr termo ao espectáculo (passe a ironia) falando na hora
tardia.
E foi só.
Resta-me garantir
aos jovens assistentes interessados que continuarei a poetar.
Isto serve também para os não interessados. Agradeço também a
atenção expressa pelos outros assistentes: mulheres e homens. E
até sempre…
ns
Nota – Este texto foi publicado
na página cultural do semanário alentejano “A Rabeca”, órgão de
informação onde na altura colaborava.
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