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EDITORIAL
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Maria
Estela Guedes (Portugal, 1947). Poeta, dramaturga,
historiadora da História Natural e da
Maçonaria Florestal Carbonária, além de
exegeta da obra de Herberto Helder. Faz
parte do
Conselho Editorial da revista Incomunidade,
e é membro do Instituto São Tomás de
Aquino e da Associação 25 de Abril. Dirige coleções na editora Apenas
Livros, entre elas cadeRnos
suRRealistas sempRe.
Tem umas dezenas de títulos publicados.
Foto: José Emílio-Nelson
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MARIA ESTELA GUEDES
Donis de Frol Guilhade n'A Ideia
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A Ideia
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Num esforço colossal, em período de crise,
com mecenato mínimo para todo o espaço cultural português, os
responsáveis pel' A Ideia, desde o fundador e
proprietário, João Freire, ao mais visível António Cândido
Franco, diretor nos últimos anos, deram à estampa um volume
quádruplo, o qual, somando-lhe o suplemento, constituído por um
caderno de poemas inéditos de Virgílio Martinho, se aproxima das
500 páginas. Foi lançado há dias, mas a data é de 2016.
Três pontos apenas para realçar: os
lançamentos têm sido feitos no Aljube, antiga cadeia, hoje Museu
da Resistência (e Museu do Teatro Romano). Não é indiferente o
local para os autores de uma revista cuja bandeira foi na origem
empunhada por anarquistas, e hoje continua abertamente a hastear
o seu apelo à cultura libertária, cultura capaz de libertar, não
só com a presença de um dos mais icónicos artistas portugueses,
o surrealista Artur do Cruzeiro Seixas, mas também com o tema do quádruplo
número da Revista, o Abjecionismo. E foi assim que, no
lançamento, o assunto veio à baila, por antonímia, no tema das
comunicações apresentadas: as prisões em Portugal.
O que mais óbvio se vai tornando, à
medida que cresce o número de volumes e páginas da revista, é
que ela tem sido um foco de concentração de escritores e
artistas, portugueses e estrangeiros, o que se torna notório nos
lançamentos, de auditório superlotado. Neste ponto, é justo
reconhecer que A Ideia já ultrapassou as suas
próprias fronteiras de livro, para ser entendida como
instituição cultural, à margem dos lugares comuns e
protegidos, como de resto é próprio da cultura que também disso
liberta.
Terceiro e último ponto, o tema deste
volume, lindíssimo, um objeto de arte valioso, quer pela arte
gráfica, quer pela poesia e pelas reproduções de artistas
plásticos, o tema é o do Abjecionismo. Deixemos as definições
para mais tarde, fique apenas o alerta de que o abjeto não foi
eliminado, existe hoje como há 50 anos, quando os surrealistas
prepararam a saída de uma revista que ficou no ovo, para só
agora eclodir dentro d'A Ideia, revista essa chamada
Abjecção, que o diretor atual, António Cândido Franco,
considerou a mais importante revista do Surrealismo em Portugal.
Não é difícil concordar, dado o nosso razoável conhecimento da
matéria, e muito superior domínio dela por parte de António
Cândido, cujo trabalho n'A Ideia tem sido também o de
reunir importante espólio surrealista e sobre o movimento no
nosso País.
Precisamos de escritores abjecionistas,
gente de armas capaz de não cruzar os braços perante a onda de
abjeção política e prática que no horizonte ameaça toda a
humanidade. Um dos abjecionistas presentes no nº 77/80 d'A
Ideia é Manuel Maria Barbosa du Bocage. Bocage sabia que
uma das armas mais poderosas para corroer o narcisismo de muitos
para quem o Poder só serve para alimentar o ego, é o ridículo. O
homem considerado mais poderoso na Terra, neste momento, é
um monumento de narcisismo, por isso vulnerável ao riso. Pratiquemos nesse alvo e colheremos alguns
bons frutos.
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A Ideia
Revista de Cultura Libertária
Nºs 77/80 . Outono de 2016
Preço voluntário
430 páginas ilustradas mais 18 págs de suplemento:
Virgílio Martinho, Vinte e um poemas
Dir. de António Cândido Franco
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Donis de Frol Guilhade: Quem?!
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Publicado n' A Ideia, Revista de
Cultura Libertária, Nºs 77/80, 2016
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Um único livro publicado, não por
vontade própria, antes por rogo do prefaciador, António Cândido
Franco, o qual nos informa sobre o essencial do autor. E
essencial no autor, para o autor, parece ser a questão da
identidade, pois basta atentar na capa do livro para
verificarmos que é um discurso hermético em torno da duplicidade
e multissignificação dos seus nomes: primeiro, os nomes de
autor, «luiz pires dos reys | donis de frol guilhade»; depois,
nomes do autor em título, que por isso apelam para a
investigação, oferecendo-se como alvo de descobrimento: «donis:
antre luiz i ziul» (Editora Licorne, 2015).
Adónis, apetece então interpretar,
contra a evidência das cantigas de amor e de amigo de D. Dinis e
Johan Garcia de Guilhade, nomes alheios implicados nos próprios,
como esclarece António Cândido. Toda ou quase toda a leitura é
possível, incluída a que remete para o narcisismo, enquanto
busca da alma refletida no espelho das águas. Porém, já o facto
de se integrar a identidade dos antepassados na de Luiz Pires
dos Reys, e de em rigor ortográfico não ser este o nome que
figura no BI do autor, garante que a situação identitária é algo
mais holístico do que egocentismo e narcisismo pessoais.
Que visual apresentam os poemas,
antes de mais nada? A língua em que foram escritos não é o
português da norma, mesmo dando-se o caso de que a língua da
escrita literária, quanto mais original, mais se afasta dela.
Nunca porém o afastamento pode extremar-se ou passamos a
confrontar-nos com uma língua que não é a nossa. Pois o livro
chega quase a esse extremo, vamos dizer que chega a um estado
adonísico do português, e por tal entenda-se um estado próprio
de Adónis, deus da beleza e juventude na mitologia grega, por
isso objeto de amor por parte de outras divindades.
Esta língua, por se situar na
fronteira do reconhecível e do inteligível, lembra o crioulo: a
expectativa de acharmos a chave para abrirmos a porta do código
torna irresistível o desejo de ler, tal como terá sido
irresistível o amor despertado em Afrodite pelo jovem e belo
Adónis. E o que há de tão desejado na descodificação, ou na
revelação dos segredos encriptados na semente das palavras?
Penso que na raiz de todo o desejo existe algo de messiânico, é
uma expectativa de salvação que nos move ao longo dos textos.
Porque bem sabemos que na matriz do crioulo, como na matriz da
língua adonísica de Donis de Frol Guilhade, reside um português
de lei, mas sem tempo nem lugar, cujo léxico pode ser
constituído por vocábulos usados pelos trovadores, lidos n’
Os Lusíadas, em Aquilino, enfim, trazidos daqui e dali e
sobretudo de uma fundura de alma que cria um duplo da língua
idêntico ao duplo do autor, algo como um português mítico,
assente não só nos arcaísmos, termos raramente usados,
neologismos e decomposição das palavras em parcelas autónomas de
significação, mas também no nosso imaginário. É uma língua
sonhada, sebastiânica, para uma sonhada pátria mais adonísica do
que aquela em que vivemos, seja exemplo o poema da página 34,
talvez intitulado «… e Ómega : a ínclita regénese da pátria»:
eis virá al
fim O que vem
promisso ao jus’to
n’O cristi | áfanos
condiz emos mar
a nau’tas alleluias&hossanas
em multidom cord’atam-se
os fiéis e os in
deveros ao cordeiro corDato
o que i nos prova
se atem prono e há
imo lado imutábil
hodierno te filho
geneRey: tôdolos
últimos hão ser primevo
alfim se adeja
~u gesto u vem renovo
- virá… e O h’eis.
Por isso Adónis adapta-se aos
segredos desta poesia que mantém com o mistério uma relação de
formosura e encantamento. Adónis era um menino de extrema
beleza, transformado em flor – ou frol, como quer o registo de
língua medieval – após a morte. A poesia é um culto à beleza e
aos mistérios da regeneração cíclica da vida; quer o mito de
Adónis quer os textos (de) «Donis de Frol Guilhade» tal
documentam.
Quanto à identidade, é certo que
faz convergir para ela a multiplicidade dos temas, assuntos e
motivos que iluminam os poemas, na maior parte representativos
da História de Portugal no seu período glorioso de descoberta de
novos mundos; assim, o livro o cada passo nos desvenda navios,
ondas, adamastores, velas e ventos, âncoras, mares e rios
sagrados e figuras das diversas religiões. A superior missão que
o autor atribui aos mareantes, manifesta na espiritualidade de
figuras búdicas, egípcias ou das cruzes e referências ao culto
cristão, com os seus santos e Trindade, espelham a imagem de uma
pátria que é alma. Por conseguinte, é a alma-pátria a real
identidade manifesta nos nomes de pessoas.
Navegar na língua é navegar na
História, e navegar na História Portuguesa é uma peregrinação em
demanda do Santo Graal. Nada de mais belo na nossa aspiração:
tal como Adónis, também Sebastião é considerado o mais belo (dos
santos).
No rosto refletido no espelho da
água, o poeta adonísico encontra-se então com a sua alma, a
pátria portuguesa. Exemplo disso é a glossolalia intemporal
sobre o seu nome que ostenta o duplo título «em língua
d’almo:/almafrol» e remata com as variantes antroponímicas:
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frol de guilhade donis
guilhade donis de frol
donis de frol guilhade
(p.45)
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Para terminar, confesso que Luiz Pires
dos Reys escreve num dos mais originais, secretos e messiânicos
registos de língua portuguesa que já me foi dado conhecer.
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