REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


ns | número 63 | março-abril 2017

 
 
Luís Costa (Portugal) escreve poesia e mais algumas coisas. Nasceu numa Sexta - Feira Santa. Já teve o prazer de participar em várias revistas digitais e também (com 4 poemas) no primeiro número da Revista Objeto Surrealista DEBOUT SUR L'OEUF. mas até agora continua inédito em livro. Para além disso pouco há a dizer. Ah!Diz que a biografia do poeta é a sua poesia, pois, a seu ver, fora do poema o poeta não existe. Ama a poesia, mas também a odeia. Sim, poetar é para ele uma questão de ódio e amor. Uma violência amorosa. Talvez mesmo o ( des ) contínuo assassinato do eu para que o poeta se faça. 

 

LUÍS COSTA

 

O excelso vómito

 

I will not go

Prefer a Feast of Friends

To the Giant Family

 

James Douglas Morrison

O poeta não pode escolher.

O poeta tem de escrever. escrever.

 

Escrever é uma gangrena.

Escrever é o começo do suicídio.

Ponderas o suicídio  mas falta-te o apego

De subires às profundezas da água

Ou desceres às árvores como uma assunção

 

Resta-te o préstimo da inutilidade  as mãos

Vestidas a ouro. a cinza.

Cais de borco  na merda. os olhos

Revirados como os bois.

 

Tateias à procura de compaixão

Tu que nunca acreditaste na compaixão.

 

(Agora, na cegueira. vês o gume do cutelo.

 Belo. absolutório.

 

A sua clínica lucidez ante o abismo.)

O Paraíso

 

 

Bebes um café. lês o jornal.

Ouves as notícias: luxúria.

Ódio. traição. mortandade.

 

Fumas. cagas. escreves

Um poema. como um deus

Observas os astros. vomitas.

 

Assim amamentas o paraíso.

Escrevo com os lábios em ferida e a testa

Aberta pelas armas de um deus maníaco

Para que o meu cântico se afogue nos cântaros

Do desespero sem nunca ter subido às aéreas

Paisagens das hipócritas e afáveis almas

Que querem acreditar que o mundo é um céu

E a vida um sol e a natureza paz e harmonia

Ah afasto as mãos da arrogância da glória

Humana, e escrevo para conseguir aceitar este inferno

Esta orfandade, como se uma dádiva dos deuses fosse

E todos os meus escritos serão, prometo,

Só para as moscas e para os vermes. prometo.

Podia falar-vos dos meus medos

As ânsias maquiavélicas

Que me visitam ao meio da noite

As ruas da minha infância (depois da chuva)

Crianças de pé descalço 

Sugando o sol por entre os dedos

Os loucos que gosto de espreitar

Por cima do muro do asilo

(Os fabulosos loucos que tanto amo!)

E todos os fantasmas que me povoam

 

Mas não, hoje prefiro falar-vos das aves

As aves as aves as aves

E a morte das aves. a sua luz.

Elevas-te como uma torre dada

À cólera de um pai

Que já não pode amar  pois

Arrancaram-lhe o coração

O fruto onde a beleza se fazia

Agora  um ninho de lombrigas

 

Elevas-te  excelso

Semelhante ao ouro dos excrementos.

Resolves fechar-te

Fechar o mundo à tua volta

E escrever  até que os olhos

Te ardam  até que os dedos

Se cubram de pus e frieiras

Até que o corpo adoeça

E se torne um texto  um texto

Terrível  furioso  devastador  

Um actus fidei.

Na obscuridade de um quarto

Todo nu, diante de um espelho,

Herança de teus pais,

Semelhante a um dogma, contemplas

O sombreado dos teus músculos

E a longa cicatriz por onde

Sob o júbilo dos estiletes

O coração um dia te foi extraído

E ris e chilreias como um massacre.

Ponderas o crime terrífico

O crime imaculado, a morte

De deus nas tuas mãos incendiadas

E cobres o rosto

E na imensa escuridão

Com os lábios em chaga

Procuras soletrar um nome

 

Um nome  para que na avareza abismo

Se possa fundar um nó.

O bom poeta deve cultivar

a destreza do assassinato

                            Luís Costa

 

 

Se de facto queres ser poeta, não te curves
perante os poetas consagrados (não te deixes levar
pela Sofrósine). ergue-te contra eles,
cultiva uma certa "Anmaßung” (húbris),
pois também eles cagam e mijam e morrem tal como tu.

Luís Costa

O poeta ergue-se do seu leito ainda luminoso

O poeta ergue se  procura  escuta

Mas não encontra  mas não ouve nada

Só a mudez de um deus degolado

 

A mudez...

Ah esse som horrível  fétido  pardo

 

O poeta sabe que tem de desbravar

O território das palavras ocupadas

Gastas  podres de tão ocupadas

Ocupadas com os louros dos rouxinóis

 

O poeta está sozinho nos bosques do desespero

Ante as palavras  sozinho  cerceado pelas palavras

O poeta sabe que para sobreviver tem de ocupar

O território das palavras ocupadas:

 

Tornar-se o grande bárbaro  o cândido algoz

Assassinar os poetas. 

 

Aqui não há sentimentos bonitos

Aqui cheira a urina  fezes  sangue ultrajado

 

Aqui é o mundo tal como ele é

Um mundo de lama  vómitos  escarros

Distante dos dourados salões onde as palavras

Nobres se glorificam a elas mesmas

 

Aqui tudo arde  arde  e as crianças

Relincham à procura dos pais e das mães

Que se perderem quando ousavam caminhar

Por sobre a água  como Jesus ousavam

 

Agora deambulam por baixo da água

Com a tumba às costas  deambulam

     

Aqui é o Inferno o Inferno o Inferno

 

E lá em cima nos dourados salões

Brinda-se com champanhe e palavras

Bem modeladas  justas  pesadas a ouro

Como quem expurga anéis.

Optou por habitar a transgressão da página

No regaço da luz que obscurece

Mais do que ilumina

 

Tornar - se invisível nessa luz  e escrever 

Escrever como quem anda por sobre as águas

           

Na pura solidão do anonimato

Como um suicida  escrever para os loucos

Escrever para os mortos.

 para Houellebecq

 

 

Um universo de uma beleza cruel

Um universo onde deus é um cão raivoso

Um universo onde todos os corredores acabam no abismo

Um universo tão frágil como a glória dos espelhos

Um universo monstruoso

Frio

Sem grandeza

 

Onde nada existe

Só a penúria da poesibilidade.

Tornei-me o grande renegado  traí a poesia

Com palavras obscuras de tanta claridade

 

Conspurquei a página com palavras baixas

Sujas  baixas que jamais alcançarão o pódio dos mestres

 

Irado  escarrei na altivez das suas metáforas

 

Sou de facto o grande traidor  já só me resta

A benevolência da impiedade. 

Velut infantem pectori suo admotum aluit

 

 

Misericórdia, o teu doce úbere na boca

Velha e desdentada de teu pai, ainda capaz

De te fazer vacilar as entranhas

 

Toda a luz se reflete no rosto circunspecto

Oh famosa luz que obscureces mais

Do que iluminas!

 

Ah aquela boca desdentada e paupérrima

Oh divino êxtase!

 

Ah como bebe  avidamente  de tua teta

O fresco pus da existência.

Percorrem as ruas das periferias

Os anjos de granito velho observam-nos

Do cimo das suas gaiolas

Mas eles não querem saber dos anjos

Nem de sapiências dadas ou circunscritas

Amam a redundância dos oxímoros

A glória das horas vermelhas

Sem compromissos entregam-se à vida

Mesmo ainda quando escutam

O sibilar das navalhas

Ou o cântico avassalador das temíveis serpentes

Nas praças do desespero

Desafiadores povoam os limites

Os olhos iluminados

Como uma noite nas clareiras da noite,

Ternamente cruéis, ainda isentos de morte.

Abominável esta monotonia

Abominável este cheiro a leite podre

Abominável esta paisagem

Tão bela  tão sublime  tão polida

Tão vista de não vista

Sempre a mesma  nunca a mesma

Mas a mesmasempremesma

 

Abominável esta casa  esta casa de que

Com soberanas pestanas  dizes: minha!

Tua? Tua?!

 

Só um muro e um pequeno buraco no muro

Tudo tão aberto de tão fechado

Um muro  um pequeno buraco no muro

Do outro lado? o nada? o mistério?

O lugar do não-lugar? A não palavra?

 

Não questiones  não questiones

Não digas o que não se pode dizer

Talvez só te reste o afago do garrote

 

 

Ah! berra  vocifera  relincha

Deita-te ao chão  bate com a cabeça no muro

Bate  até que o sangue escorra

Fresco  luminoso  negro… bate

 

Ah  ri  ri  relincha  enlouquece.

A luz sangra

no colo dos pais.

 

Os mortos

Rompem o ecrã.

 

Súbitas e vazias:

As crianças

 

Os seus olhos

Dando flor. para dentro.

Um poema corre o risco de não ter sentido,

e não seria nada sem esse risco.

                                                   Derrida

A boca: uma chaga suja e húmida

Mordaz como um bíblico paul

Oh emérito delito!

(Risco de não ter sentido)

Por onde todos os ecos possíveis  sobem

 

Ah o outro que se ergue

Um animal ultrajado

O outro  um animal contra as muralhas do eu

O pós - eu

Um suor doentio que introduz

A decapitação à identidade

 

Vá  come o pão  e despeja

A amável taça da cicuta  

Ao alto  para que o poema se erga  

Como uma estaca.

 

This is the end, beautiful friend

This is the end, my only friend

 

                                 The Doors

in memoriam Gérard de Nerval

 

O meu amigo que, irado, perguntava

Quem sou, o que faço aqui, o que posso fazer

Enforcou se no portão de um cemitério

Num entardecer outonal

 

O meu amigo que discutia comigo

Sobre o suicídio e o defendia como opção

Bamboleia, emérito, na minha memória

Como um anjo atonal

 

O meu amigo suicida que sabia

Que tudo se encaminha para o desastre total

E que só a loucura nos pode curar

Está agora sentado numa cadeira no Averno

 

E urina e vomita sobre os altares. 

 
 
 
 

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