Não há-de ser nada!
volto a casa à noite com o saco cheio
de tretas
após ter corrido o dia inteiro
pelas vossas ruas
e valetas
deito-me na cama entre a espada e
a parede
vi cães mortos de trânsito e de
sede
na cidade gelada! descanso em
pesadelos!
mas isto já passa!
isto não há-de ser nada!
cravadas há muito no meu corpo
estão as notas
de um piano
mudo
que a surdez e a solidão rainhas
de nós todos
cavaram a martelo
sobre isto tudo!
em cima da tumba vai ficar somente
a flor de plástico a aguçar o
dente
para a vida vomitada! dói-me a
barriga!
mas isto já passa!
isto não há-de ser nada!
dia a dia vejo o sol a ser dobado
e metido dentro
de cabidela
esparguete sem carne que mata com
miolos de fome
o filho do dono
da cadela
é no talho que compro os foguetes
para a festa
com gente de cabo a rabo! e o
vazio é o que resta
essa tosca marmelada! tenho os
olhos peganhentos!
mas isto já passa!
isto não há-de ser nada!
o suor executa o arco-íris sobre o
meu esqueleto
murcho
e a histeria colectiva faz queimar
o último
cartucho
a bala não me atinge mas um amigo
meu
leva com ela nas ventas e já
morreu!
é vossa esta jogada! é uma
vergonha!
mas isto já passa!
isto não há-de ser nada!
pensei por muito tempo em me calar
viver deixar-vos morrer
sem saberdes de mim
mas pode alguém viver sem outros?
mas pode alguém amar sem outros?
se isto que digo é assim
então só resta cantar
e esperar a vida no fim
a dor que sinto entretanto
da vida que desperdiço
a dizer o que sabeis
muito bem pela calada
põe-me o cérebro às três pancadas!
mas isto já passa!
isto não
há-de ser nada!
(Janeiro-Fevereiro
de 1974)
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