Quando a seguir ao Natal do ano passado
saí de Viena d’ Áustria a caminho de Klagenfurt,
levava em mente o cumprimento de uma promessa assente no
agradecimento ao autor de uns cinquenta títulos pelo muito que
ele me havia dado, inesquecíveis momentos partilhados que
encheram dias e horas, anos e memórias de transcendentes
instantes de graça. A sua luta entre o Bem e o Mal, o interior
que nos devora de todas as obsessões, nos reduz a seres cansados
do quotidiano, onde as solicitações da vida nos fazem atirar
para longe a imagem pungente de Jesus Cristo tal como no-lo
apresentam os Evangelistas e todos os místicos ignotos num mundo
dependente da glória vã, da riqueza e das honrarias.
|
Nevava. O lugar onde Green (1900-1998) está
sepultado, a igreja de Sankt Egid, na pequena cidade de
Klagenfurt, protegida pelas montanhas brancas e pelas sombras
das árvores que ele tanto amou, no estado de Caríntia,
imobiliza-se elegante e acolhedor lá no alto, num aglomerado de
prédios que serpenteiam o burgo gracioso onde não faltam igrejas
e mosteiros e atmosfera abastada que é o retrato do país.
De Viena até lá o autocarro levou quatro
horas e meia, como um fantasma que atravessa as serras pela
calada da noite, num dia cinzento chorando lágrimas de neve alva
e decorando as faldas do caminho de arabescos frios e brancos.
Por vezes, a velocidade diminuía, o veiculo baixava a voz
monótona, decerto para não acordar as pequenas aldeias submersas
nas avalanchas de neve ou não cair nos lagos silenciosos junto à
estrada. Por todo o lado, maciços densos aspergiam o rumor da
montanha, espécie de longo murmúrio abafado, como uma prece
salmodiada numa língua desconhecida, mas num timbre que nos
obrigava a levantar o olhar para a magnificência da paisagem
brumosa. Dentro do carro estava-se bem. Perdido nos meus
pensamentos, quase não dei pelas dolorosas horas sentado,
circunscrito a um espaço, banhado da satisfação de cumprir a
promessa que havia feito a mim mesmo há algum tempo.
A principal razão que levou o autor de
Moira, de nacionalidade americana e toda a vida parisiense, a
escolher como última morada a Áustria, prende-se com o facto de
uma pequena paróquia nos arredores de Paris, dirigida por um
pároco retrógrado, ter-se recusado a receber Éric Jourdan
(1930-2015), o seu filho adoptivo. O sacerdote foi claro:
“Recebo-o a si, mas não Éric”; E porquê? Acontece que Éric
Jourdan Green, pelos dezassete anos, escreveu um romance logo
proibido pela Censura Francesa. Sim, sim lá também há disso! O
livro saiu em 1956 e só vinte nove anos depois foi levantada a
interdição. O seu título: Les Mauvais Anges. Dentro, em 164
páginas, é narrada a vida de um grupo de jovens pela idade do
autor, todos homossexuais, e a história é de uma violência e
poesia extremas, mais tarde continuado sob a mesma temática em
outros romances que Jourdan amplia e apura. Li-o em segunda
edição e achei-o sem grande interesse. Mas então como aparece
Klagenfurt? Por acaso. Os dois andaram sempre a viajar. Green,
profundamente católico, Éric nem por isso (embora para o fim da
vida, falecido o pai adoptivo, julgo que retornou à Igreja). A
diferença de idades era de trinta anos. Conheceram-se quando o
escritor de Sud andava pelos 56/57 anos e ele dezassete. A
relação durou até à morte de Julien Green e ao que parece de uma
fidelidade impressionante de que é testemunho a página Last
Days, escrito por Éric Green no derradeiro tomo do Diário Le
Grand Large du soir.
Assim, tendo os dois um dia chegado a
Klagenfurt, e sendo Green um devoto de arte religiosa, logo se
prendeu de admiração por uma imagem da Virgem exposta na igreja
de Santo Egídio. Em conversa com o prior, este oferece-lhe o
lugar que eu visitei numa das capelas do lado direito de quem
entra, os dois vão poder deste modo ficar para a eternidade
juntos.
Para a sua capela, o escritor encomendou a
um artista local, Jos Pirkner, a obra Emanaus que não me pareceu
bem conseguida por demasiado confusa atendendo ao reduzido
espaço visual. Em frente à campa, gravado numa pedra de mármore,
este inspirado texto que reproduzo em tradução. Coroando a laje:
Eco sumo resurrectio (João 11-25).
|
Julien Green e a vasta noite da
eternidade
Se eu estivesse só no mundo,
Deus teria feito descer O seu Filho
Unigénito
Para que Ele fosse crucificado e assim me
salvasse.
Eis um estranho orgulho - direis.
Não creio que tal ideia
Tivesse atravessado mais do que uma cabeça
cristã.
Quem, portanto, O julgou,
Condenou, golpeou e O crucificou?
Não duvidem um segundo - fui eu.
Fui eu que tudo fiz.
Cada um de nós pode dizer a mesma coisa,
Todos tal como somos e em todos os cantos
do mundo.
Se é preciso um judeu
Para lhe cuspir no rosto
Eis-me aqui.
Um funcionário romano para O interrogar,
Um soldado para O torturar com desprezo,
Um homem cruel para O fixar com pregos na
cruz
A fim de que Ele aí fique até ao fim dos
tempos,
Esse serei ainda eu, sei fazer tudo se
necessário for.
Um discípulo para O amar,
Eis o mais doloroso de toda esta história.
O mais misterioso também.
Porque, enfim, Tu sabes bem
Que esse serei eu.
|