REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


ns | número 63 | março-abril 2017

 
Alessandro Zir (Brasil). PPGICH/UFSC, GIFHC-ILEA/UFRGS.
azir@dal.ca
http://www.aletche.blogspot.com.br/2012/07/blog-post.html
 

ALESSANDRO ZIR

 

Conversa de etiqueta 

 

(peça em ½ ato)

 

Personagens:

Alessandro Zir, Cão de Gado Trasmontano, Ermelinda Bezerril, Estela Guedes, Herdeira do Vale de Lágrimas, Julieta, Sibila, Sibila Velada, Toby, Um Equivalente de Paul Valéry, Virgem dos Lobos.

Espaço cênico, cenografia, sonoplastia e iluminação:

Zuckerberg Intima Teatern.

 

SIBILA

(Velha e doente, rugas talhadas a formão.)

Mas que petulância!

 

ESTELA GUEDES

(Agarrada a uma jangada. Ao fundo, ruínas de uma estrutura magnífica.)

Então você acha que eu não devo ir?

 

SIBILA

(Rosto subitamente contorcido como de um tigre de quem arrancaram um osso das patas.)

Essa mulher é uma grossa. Quinhentos anos no formol — ou melhor, champanhe misturada com caipirinha — e nem uma vírgula mais delicada. Você deveria ir jantar é com a Calmundelei.

 

ESTELA GUEDES

Calmundelei?!

 

SIBILA

(Corte chanel de bico. Casaco de pele.)

Um desastre que conheci através dela no ano passado. Nunca vi coisa mais pedante. Parte o pãozinho com faca. O marido, que tem adoração por pudim de tapioca, pela mão só cumprimenta outros homens. Exige que os casais que recebem em casa durmam em camas separadas! Na verdade, estão sendo processados pelos pais dos dois meninos que adotaram na Índia!

 

ESTELA GUEDES

De fato, os brasileiros são admiráveis, exatamente como os portugueses. Só lhes acho um defeito — o hábito de estarem sempre numa de charme e sedução. Nós portugueses, ao contrário, temos o defeito de ficar sempre em guarda. Somos reservados e não estamos habituados a tantos querido e querida...

 

ALESSANDRO ZIR

(Traje de virgem dos lobos, caminha em direção à praia e para para admirar os jardins. Murmúrio de abelhas. Flores lilases, folhas cinzas e cor de prata.)

Odeio querido e querida, soa extremamente falso. As pessoas com quem interajo ainda bem que não usam. Eu uso muito senhor@ aqui, com gente mais velha que não conheço, por exemplo, mas às vezes de fato estranham.

 

ESTELA GUEDES

Tu és um europeizado, Alessandro Zir, um crédito para o teu país! És dos raros brasileiros que conheço a aceitar o tu sem pestanejar e a retribuir sem que o outro pestaneje.

 

ALESSANDRO ZIR

O tu é comum no Rio Grande do Sul, mas generalizado (usam tu pra tudo) e dai fica difícil fazer qualquer distinção de tratamento, por isso me agarro no senhor@. E o tu tal como usado em Porto Alegre tem uma particularidade estranha: usamos conjugado na 3a pessoa (tu faz). Quer dizer, para um porto-alegrense, usar tu com conjugação de 2a pessoa (tu fazes) soa empolado. Talvez seja fruto da capital ter ficado a meio caminho entre o Rio Grande do Sul e São Paulo (que usa você, naquele que é também o padrão televisivo, moderno do país). Eu acho importante manter o senhor@, por causa da variedade (não ter formas diferenciadas de tratamento nivela todas as pessoas, a intimidade acaba tão desgastada quanto o respeito e desaparece a possibilidade de transgressão). Minha experiência no Canadá é que (DEPOIS de uma primeira apresentação, não entre pessoas totalmente estranhas) acabam sendo mais informais até que os brasileiros: em geral preferem se chamar diretamente pelo primeiro nome (mesmo em relação professor-aluno, por exemplo, e mesmo por escrito, ao menos no caso de e-mails; acredito que nos EUA e Inglaterra seja mais ou menos assim também).

 

SIBILA VELADA

(Com entusiasmo)

Confesso-me uma Alessandrete, e exulto de alegria e júbilo!!

 

ESTELA GUEDES

(Desconfiada.)

Na Inglaterra, como em Portugal, e se calhar em toda a parte, a exigência de sir e equivalentes depende da distância. Um sargento, se quer ser obedecido, exige o tratamento de sir. Pela mesmíssima razão eu e outros filhos de outros tempos tratávamos os nossos pais por senhor e senhora. O tratamento entre iguais português/brasileiro é uma acrobacia linguística, exige atletismo, porque realmente é muito difícil. O você brasileiro e o tu português, embora os mais apropriados, causam impressão como lixa na pele. Incomoda-me tratar por você um amigo brasileiro, mas se o trato por tu ele sente lixa na pele. E inversamente.

 

ALESSANDRO ZIR

Sim, o caso do sir referi nesse sentido mesmo: é uma regra convencional relativa à distancia (respeito), mas da qual se abre mão espontaneamente na grande maioria dos casos. Meu orientador, por exemplo, não gostava sequer de ser chamado pelo sobrenome (isso por qualquer aluno), pedia para ser chamado pelo nome, diretamente. Com outros usa-se o sobrenome, mas é muito raro você usar professor por exemplo, ou doctor, ou qualquer forma de tratamento (pode até soar estranho pra eles). Sei que quando vão fazer intercambio na Alemanha, por exemplo, são orientados expressamente para serem menos informais e utilizarem sempre pronomes de tratamento. O tu e o você no Brasil dependem de região (um paulista não usa tu praticamente pra nada, assim como um gaúcho não usa você praticamente pra nada). Mas a peculiaridade maior do Brasil eu acho a seguinte: mesmo num ambiente formal (universidade, sala de aula), um aluno mais jovem pode se dirigir a um professor desconhecido utilizando tu ou você, como se a regra convencional relativa à distancia simplesmente não existisse. Eu acho isso meio que falta de educação, e foi por isso na verdade que também chamei atenção para países de cultura inglesa, pois acho que lá essa informalidade radical também pode ocorrer, mas nunca em países como a Alemanha, França e creio eu Portugal, porque soa uma grosseria. Vê que a diferença entre vous/tu, Sie/du no francês e no alemão são muito marcadas e seguem padrões bem determinados. Isso não existe em inglês (usa-se indiscriminadamente o you). Também não existe mais em português (porque o você não é mais equivalente ao vous ou Sie), só que vocês portugueses utilizam muito senhor/senhora (o que mantém a distância nas situações necessárias que são varias). Já os brasileiros quase não usam senhor/senhora, porque tende a soar formal demais, algo arcaico, até mesmo irônico e/ou ofensivo. Você pros paulistanos equivale a tu, e é usado para tratar qualquer tipo de pessoa, em relações de intimidade inclusive; os gaúchos utilizam tu para tratar qualquer tipo de pessoa, mesmo em situações que exigiriam distância. Gaúchos e paulistanos vão utilizar senhor/senhora para tratar alguém de 90 anos pra mais, ou se for um funcionário de companhia aérea atendendo um cliente, no mais tendem a usar muito pouco.

 

ESTELA GUEDES

Nós, em vez de senhor e senhora, até usamos a 3ª pessoa. Assim: o Alessandro já reparou que toda esta conversa dava um bom artigo para o Triplov? Eu gostava. Se o meu amigo estiver de acordo, e tiver um tempo disponível, bem podia copiar daqui os textos para uma página Word e mandava-a. O Alessandro ainda sabe o meu endereço de email?

 

SIBILA VELADA

(Casaco de pele. Olhar de basilisco, voz de barítono. Feroz.)

Não dou boleia!! E se ver isso é papo só pra tête-à-tête.

 

ALESSANDRO ZIR

Oi, tenho o e-mail sim. O melhor seria colocar como questões, que de fato acho interessantes. Tem outras coisas, que algumas pessoas acham pedantes, mas que também acho curiosas e relevantes. Por exemplo, eu aprendi que um homem não toma a iniciativa de dar a mão a uma mulher, nem uma pessoa mais jovem a uma mais velha, porque para iniciar um contato físico entre desconhecidos a iniciativa deve partir de quem está em posição social privilegiada. Aqui no Brasil, é comum pessoas que você nunca viu, mais jovens que você, às vezes até prestando algum serviço, tomarem a iniciativa de dar a mão, e elas fazem isso como um sinal de submissão, cordialidade, o que pra mim é uma coisa verdadeiramente bizarra! Outra coisa que atrapalha muito: sempre se deixa as pessoas saírem primeiro de um lugar antes de as outras entrarem — pois bem, no Brasil não respeitam isso e dai dá atropelos. Também não se tem o habito de deixar livre o lado esquerdo nas escadas rolantes, o que obriga todo mundo (mesmo os apressados) ficar parado admirando a paisagem do shopping...

 

SIBILA VELADA

(Faz estalar um chicote preto como betume.)

A questão é que entope. Entope!! Ainda a querer que eu dê boleia?!! Dungdevourer...

 

ESTELA GUEDES

(Desviando o olhar.)

Fico à espera do texto, com as questões que quiseres. O assunto é relevante. Don't care about strange posts, people are old and need attention.

 

SIBILA VELADA

(Ri alto. A maquiagem volta a se desfazer em rugas.)

Cuidado! Existem muitos chulos no Facebook!!

 

ALESSANDRO ZIR

(Tendões flexionados. Olhos virados pra cima em sinal de admiração.)

Hahaha! I was indeed wondering about strange posts.

 

VIRGEM DOS LOBOS

(Legítima, nascida há milhares de anos atrás e rodeada por seus milhares de ancestrais. Elmos de folhas verdes. Maçãs vermelhas e brilhantes. Uma tigela repleta de Cornish cream.)

O esnobismo consiste essencialmente em querer impressionar os outros. O esnobe é alvoroçado como uma lebre — criatura tão insatisfeita com a própria condição que passa a vida toda a querer surpreender os desprevenidos com a exibição de uma honra ou título inusitado e assim consegue se convencer daquilo em que não acredita.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

(Com um doce sorriso.)

Famigerada Alice, que show! You rock my dear!!

 

VIRGEM DOS LOBOS

Tínhamos o Comendador Landelino Bicudo, por exemplo, cujo esnobismo era de uma textura tão crassa que podia ser cheirado e deglutido de longe. Mas não eram agradáveis nem o gosto e nem o cheiro. Foi de uma forma mais sutil que caí em tentação. Ermelinda Bezerril. Uma senhora encantadora cuja graça etérea borrifava e desinfetava os grandes da sua grossura natural. Não era raro cabecear de sono. Olhava então para os seus azulejos. Ela gostava de olhar para os azulejos. E de conversar com o mordomo. Pouco se importava com o que pensassem dela.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

Os aristocratas são mais livres que nós. Mais espontâneos! Excêntricos!! Helena Blavatsky mantinha rigorosamente a castidade com o auxílio de um pepino intrujão.

 

VIRGEM DOS LOBOS

Foi assim que aprendi que meu esnobismo não era de um tipo intelectual. Entre afofar Einstein ou o Duque de Loulé, eu optaria pelo segundo sem pestanejar! Alguém que possa alimentar os cães com as próprias mãos. Ossos pingando de graxa e sangue. Gente elegante, ágil, fora do comum.

 

ERMELINDA BEZERRIL

(Toucado com aba, laço de fita e aigrette, mangas bufantes.)

E quando você recusou o chá com Paul Valéry?!

 

VIRGEM DOS LOBOS

(Seminua, diante do espelho num provador.)

Tanto quanto odeio andar malvestida, odeio sair para comprar roupas. Ligas principalmente. Então recusei. E aí foi uma enxurrada ainda maior de convites. A situação ficou desesperadora e afinal tive de comprá-las.

 

ERMELINDA BEZERRIL

(Divagando.)

The dear dead days beyond recall...

 

UM EQUIVALENTE DE PAUL VALÉRY

(Tartamudeando.)

Se a senhora me permite, eu não gostei muito do seu livro. Na verdade causou-me uma péssima impressão.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

Reparem, por favor, no extremo requinte destas duas frases!

 

VIRGEM DOS LOBOS

(Cinta-liga. Penteado arrematado num profile de flores com tule. Depois de limpar delicadamente o canto da boca no guardanapo de pano.)

Fique à vontade para odiar meus livros mais do que eu odeio os seus, senhor Valéry.

 

UM EQUIVALMENTE DE PAUL VALÉRY

(Subitamente à vontade. Confiante.)

Achei que tivesse lido a resenha que eu escrevi...

 

VIRGEM DOS LOBOS

As únicas críticas que realmente me atingem são as não-impressas. Privadas, digo. De forma que vim aqui infinitamente mais preocupada com minha aparência enquanto mulher do que com minha reputação de escritora.

 

ERMELINDA BEZERRIL

E no final você nem apareceu mais. Me disse que estava cansada de receber convites para conhecer outros escritores. Que o senhor Valéry (adotemos o nome) era educado e fazia de tudo para distraí-la, mas que era difícil entender por que é que ele achava que você estivesse tão interessada em pigmento indiano.

 

VIRGEM DOS LOBOS

Coisas que acontecem. Eu me desculpava, e quanto mais me desculpava mais você insistia. Até que teve a ideia de vir me visitar. E veio. Foi quando descobri que o seu esnobismo exigia pouco mais que um pedaço de bolo queimado, uma sala tão bagunçada quanto possível e dedos imundos de tinta!

 

ERMELINDA BEZERRIL

Ah, como eu queria ser escritora!

 

VIRGEM DOS LOBOS

(Vestido preto. Olheiras profundas. Retorcendo os dedos.)

E eu trocaria tudo por ser uma anfitriã como você!

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

Are you of the unfortunate class?

 

VIRGEM DOS LOBOS

Mas eu senti sua falta. De Valéry nem tanto.

(Flutuando num elemento, exposta a um raio invisível.)

A nostalgia que sentimos por uma cristaleira no meio da sala de estar.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

A mão que balança o berço. A morte — forma mais elevada de vida! Deus maldito!

 

VIRGEM DOS LOBOS

A feminilidade era muito forte em nossa família. Éramos famosas por nossa beleza — a beleza de minha mãe, a beleza de Estela desde sempre me trouxeram alegria e orgulho.

 

JULIETA

(Depois de apagarem todas as luzes e um estouro, se materializa do nada, vaporosa. Num vestido preto com estampa de flores vermelhas, púrpuras e azuis. Silêncio de 15 segundos e diz consternada.)

Coisa de brutamontes.

 

VIRGEM DOS LOBOS

(Chapéu alpino. Lama dos pés à cabeça. Grita em voz de criança.)

Mamma!

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

(Em toga de juiz.)

Kaput! A omissão do promotor em retransmitir ao juiz a denúncia de tortura em audiência de custódia deu-se em 80% dos casos. Nos outros 20%, o Ministério Público arquivou a denúncia como caluniosa. Lêmure, devorador de corpos, quem é você?

 

VIRGEM DOS LOBOS

Foi uma sensação imediata. Baixei a mão instantaneamente e deixei que ele me batesse. Um sentimento desesperado de tristeza, como se eu me tornasse consciente de algo terrível, da minha própria fragilidade. Esgueirei-me pra longe dali sozinha, numa depressão horrível.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

Curo faniquito. Money refunded.

 

TOBY

(Sentado num canto, cigarro na boca, olhando por cima do jornal. Imóvel.)

De que tipo de material era feito Landelino?

 

VIRGEM DOS LOBOS

De cérebro tinha pouco, mas muita emoção. Tudo despejado num corpo perfeitamente adaptável. Extremamente bonito, perfeitamente saudável — nada esperado de um rapaz da sua idade lhe faltava. A sociedade o recebeu de braços abertos. E era tão sem cérebro que nunca foi além do círculo restrito dos seus amigos de classe média alta. E jamais se colocou numa posição em que pudesse ser criticado.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

Amigo íntimo do tenente-coronel Ferreira-Ferronha, do senhor Felipe Augusto Picão, do robusto tenor Amadeu de Melo Costa-Sorvedouro, do Bento dos olhos azuis, do jovem ascensorista, de Henrique Flores célebre herdeiro da Casa de Sousa, do neto do senhor Paz, do mulato Genival Clemente, dos oito remadores da várzea do velho Colégio Americano, de Bento e seu esplêndido Cão de Gado Trasmontano, da duquesa pensionista de Ávila & Bolama.

 

TOBY

(Anágua transparente. Deitada de bruços na cama, os braços lançados para trás prendendo o cabelo.)

Sabia o necessário sobre armas e cavalos. Sabia como se vestir. Todos os nossos amigos do sexo masculino entravam nesse jogo. Eram enfiados do lado de cá da engrenagem para saírem do outro mais ou menos aos sessenta anos como diretores, almirantes, ministros, juízes. É tão impossível pensar neles como seres naturais quanto imaginar um cavalo de arado galopando selvagem pela rua.

 

VIRGEM DOS LOBOS

(Em transe diante de uma macieira, os olhos hipnotizados pelos sulcos do casco. Lua cheia.)

A árvore parecia ter relação com o suicídio. Passar por ela era como ser tragada num abismo de desespero, impossível de escapar. Fiquei paralisada.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

(O palco subitamente volta a ficar escuro. Luz negra. À frente, um demônio com a pele toda besuntada de azeite e purpurina. Ela, vestidinho branco minúsculo, salto alto, sentada num estrado. Cabelos descoloridos, maquiagem carregada. Voz rouca e arrastada. Esganiçando-se.)

Merda total, e perdeu a parada! E é por isso que eu estou de saco cheio! Eu não aguento mais com essa história de golpe de Estado pra cá, e golpe de Estado pra lá!

(Levantando apoiada no cotovelo com um drinque e um charuto de maconha na outra mão.)

E terceiro mundo, e subdesenvolvimento... Mas eu não posso mais! Que que é que eu tô ganhando com isso?! Há seis anos que eu tô atrelada... em Brahms, eu não sei nem por quê! Eu não sei, eu não sei por quê!

(Suspirando, baixa a voz. Descendo do salto.)

Deve ter uma outra vida por aí. Uma outra vida sim, que eu não conheço, mas que eu vou tentar.

 

VIRGEM DOS LOBOS

Como foi que me tornei consciente do que sempre esteve lá — sua beleza assombrosa? Talvez nunca tivesse me tornado consciente e aceitasse a beleza dela como um dom natural de mãe, que ela tivesse pelo simples fato se ser mãe.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

(Exausta, abandonada. Os traços de juventude todos roubados e desaparecidos.)

Fêmea exuberante! Ciclópico é o meu desejo de ser por ti pisoteado!!

 

VIRGEM DOS LOBOS

(Pensativa.)

Mas tirando a beleza (caso seja possível separar uma coisa da outra), como ela era? Julieta era muito rápida, direta. Uma pessoa prática, surpreendente. Podia ser ácida, não gostava de nenhum tipo de afetação. Uma mulher severa, com uma bagagem de sabedoria que lhe conferia um quê de melancolia. Tinha a sua própria cota de infelicidade em que mergulhar quando estava sozinha.

Mas era a atmosfera da casa. Tudo estava repleto dela. O que foi provado naquele 9 de julho de 87. Nada sobrou depois daquele dia, senão um sentimento de calmaria desolada e inexorável.

 

TOBY

In the end the world without end. Lembro de Estela implorando que você a perdoasse pelo susto.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

(Em transe.)

Serpente pantagruélica devoradora de leite materno — deslocando-se de florestas há milênios para secar-lhe avidamente o seio.

(Desperta. O rosto subitamente crispado.)

O instinto é o que rege o mundo. Na vida, na morte.

 

VIRGEM DOS LOBOS

Quando a enfermeira me levou até o quarto, soluçando, fui tomada por uma vontade incontrolável de rir. Como em outras situações de crise, repetia para mim mesma: eu não sinto coisa alguma! E então vi aquele homem sentado ao lado dela na cama. A morte torna tudo tão irreal...

 

CÃO DE GADO TRASMONTANO

(Patas cobertas de neve.)

Ute ute ute ute ute ute ute ute!

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

(O rosto fosforescente.)

Açarg ed aiehc Airam eva! God!! 

 

TOBY

Falava um francês parisiense perfeito, sem sotaque. Lembro do livro de Quincey — Confissões de um Comedor de Ópio, em cima da escrivaninha.

 

VIRGEM DOS LOBOS

Mas as irmãs eram de um materialismo intransigente. A tortura infame do sapatinho chinês parecia brinquedo de criança perto da disciplina que tia Aida impunha às filhas, a fim de fazê-las casar uma com o Barão de Água-Izé outra com o Visconde de Vitela.

 

TOBY

O que fez de nós, como dizia a governanta, pessoas tão bem relacionadas.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

Será que você poderia me passar de volta o purê de batata?!

 

VIRGEM DOS LOBOS

Foi em Veneza que ela conheceu Eriberto Bicudo.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

O pai do Comendador Landelino (Bicudo).

 

VIRGEM DOS LOBOS

Apaixonou-se completamente por ele e casaram. É tudo que se sabe do acontecimento mais importante da vida dela. Como todo homem muito bonito morto de forma trágica, não foi a personalidade dele que restou mas uma lenda. A face pra sempre ofuscada pela áurea da morte e da juventude. Para tia Aida ele era “ah, querida, um raio de luz como jamais conheci outro igual! Quando Eriberto sorria... quando Eriberto surgia na sala!” O homem perfeito — heroico, belo, generoso, um Aquiles. E genial, e gentil, simples e também o marido dela.

 

TOBY

Estela contou-me que mamãe costumava dormir sobre o túmulo dele.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

Em Orchardlea.

 

VIRGEM DOS LOBOS

Eram apaixonados. E foi através daquele relacionamento que tive minha primeira visão do que é o amor entre um homem e uma mulher. Como um rubi, radiante, claro, intenso. Vermelho.

 

TOBY

Nada é mais musical — mais lírico — que o amor entre duas pessoas jovens.

 

VIRGEM DOS LOBOS

E por que é que nossas vidas tinham de passar por essa tortura e serem corroídas por tais gafes — o golpe fortuito e brutal da morte das duas pessoas que deveriam, sob condições normais, ter feito da nossa vida uma vida feliz, ou natural. Não estou pensando neles, estou pensando no dano infligido.

 

TOBY

(Flutuando num barquinho de papel em alto mar.)

Depois da morte dela, papai se tornou cada vez mais tirânico.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

O segundo marido, você quer dizer! Vocês são filhos do segundo marido!! Assunto privado a resolver com a viúva.

 

VIRGEM DOS LOBOS

Passou a ter um ciúmes doentio de Estela. Efeito da sua excelente educação unilateral

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

Espírito analítico de Cambridge: clareza e concisão elementares.

 

VIRGEM DOS LOBOS

Trabalho cerebral intenso, mas completamente alheio à música, ao teatro, à divagação. Aos sessenta e cinco anos, acabou um sujeito completamente isolado, aprisionado em si mesmo. Atrofiados os esteiros da sensibilidade.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

To feel the present sliding over the depths of the past, it is necessary...

 

VIRGEM DOS LOBOS

Paz. A superfície tranquila, habitual. É por essa razão que toda quebra — como mudar de casa — me causa uma ansiedade atroz, destrói a plenitude da vida.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

(Dedos e lábios sujos de romã.)

Sabe-se que os deuses nos levam a sério quando se passa a enxergar a vida como sumamente real. E tem se aumentado o sentimento da própria importância.

 

VIRGEM DOS LOBOS

(Borboletas, passarinhos, lama e cavalos.)

Lembro da cautela e da astúcia da voz de Henry James. Estalos de língua e murmúrios. Desde muito cedo tive a chance de conviver com gente notável. E até hoje me parecem ligadas ao que é excêntrico, fora do comum, causa estrondo.

 

HERDEIRA DO VALE DE LÁGRIMAS

(Da coxia. Apontando para um batráquio sozinho no meio do palco.)

Safe arrival of the Antichrist.

 
 
 
 

EDITOR | TRIPLOV

 
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