Dylan, para
Estela.
Estela, continuando as
nossas conversas de Lisboa, pequenos tópicos de
labirinto para sua Fuga de Dylan Nobel:
Dylan. A obra literária:
“Tarântula”, que naufragou, tendo recebido
péssimas críticas e com o próprio Dylan, sempre
tão autoconfiante, terminando por renegá-la.
“Crônicas”, uma obra consistente. Mas tudo isso
é mínimo comparado ao infinito de sua Música.
Primeira reflexão que li sobre o Dylan pós
Nobel.
A respeito de “I'm the
walrus”, Lennon disse: “Naquela época eu estava
escrevendo a la Dylan. Hoje tento apenas
utilizar um bom inglês”. Ele se referia aos
escritos automatistas de “Tarântula”, mas... e
quanto ao bom inglês?
Caetano Veloso afirmou
que se sente mal com certas pessoas que parecem
eternamente possuídas por algo imenso, tão maior
que elas, que se torna impossível qualquer
definição mais clara de pensamento, e acha ainda
que essas possessões são perigosas porque
implicam sempre numa questão de poder. O
possuído estaria sempre acima de qualquer razão.
Conclui taxativo: “Dylan é assim. Eu não. Eu sou
solar. Gosto de me explicar. Mas o Dylan é um
gênio”.
Duas vezes que me
recordo desse termo na boca de Caetano foram
para Bob Dylan: A outra ocorrência foi na
Rolling Stone, num comentário sobre os Beatles.
Ele achava que esses teriam realizado um produto
de perfeito acabamento para o mercado. “Já Dylan
é um gênio”. E nesse instante Caetano parece
curiosamente possesso por todo o hermetismo que
ele odeia em Dylan. Essa afirmação comparativa
brota mesmo de uma força estranha.
E então já damos em
Herberto Helder, poeta obscuro, como você bem
disse, Estela, um homem da contracultura em
Portugal.
Inês Pedrosa, escritora
e jornalista portuguesa, escreveu em 2011,
matéria relacionando a canção brasileira, mais
especificamente a de Caetano Veloso e de Chico
Buarque De Hollanda (que pelas contribuições
linguísticas e filosóficas seriam as melhores do
mundo) com a música dos Beatles. Ela pensa que a
junção do melhor texto com a melhor música
resulta na melhor canção, e tenta justificar sua
tese com “Língua”, de Caetano Veloso, que
segundo ela seria não só a maior canção da
língua portuguesa, mas do planeta Terra. Comenta
Inês ainda que não há nessas canções brasileiras
de sua predileção espaço para certo tipo de
lamento amoroso, fragilidades que já se
evidenciariam nas mais emblemáticas obras dos
Beatles, como “Yesterday”. Ironiza “Michelle”,
“Imagine” e outras. Como intenso amante de Chico
e Caetano acho que nas supostas fragilidades que
ela aponta só caem mesmo os que também conseguem
compor heavy metal. Nos Beatles a força do rock
está presente em qualquer balada. Inês Pedrosa é
muito espirituosa, e suas provocações são
deliciosas, é o que me dizem as razões
auditivas.
O que você acha disso, Estela, e o que você
imagina que o Herberto Helder diria?
Para mim, o que mais
conta em Lennon não são os versos nem as linhas
melódicas, mas cada sílaba cantada. É
absurdamente visceral.
“A letra ele (o crítico)
até critica, mas a música não.” Chico Buarque
numa rápida entrevista.
Quando Dylan recebeu o
nobel alguém escreveu que se regozijavam
duplamente as comunidades literárias e musicais.
Penso que na união de letra e música vivemos uma
outra coisa, mais real ainda justamente por eu
não saber definir. Creio, rs.
“O mar, quando quebra na
praia, é bonito, é bonito.” (Dorival Caymmi).
Uma grande canção oceânica. E esses versos tão
somente lidos?
“Strawberry Fields
Forefer”, “Penny Lane”, "Eleanor Rigby”, são
para mim aproximações da irracionalidade
concreta em nossa sensibilidade, como quer Dalí
em “Sim ou a paranoia”, por volta de 1933, cerca
de uma década antes de Jorge Luis Borges
insinuar sutilezas afins no conto “Tlön, Uqbar,
Orbis Tertius”. Se os Beatles concordariam com
tal ideia é outra questão. O real que nessas
canções se revela é de uma alta surrealidade.
Desconheço as imagens de “Tarântula”.
Dylan declarou que
expansores de consciência o mantinham atento
para que pudesse criar as canções, mas que na
hora de criá-las não o influenciavam. Caetano
não gosta de marijuana e teve pânico ao tomar o
ayahuasca. Quando questionado por George Martin
sobre o que foi mais determinante em Sgt.
Pepper's, Paul McCartney respondeu numa palavra:
maconha. E foi Dylan quem apresentou a erva aos
Beatles. Só para sutilizar alguns
estruturalismos, rs.
A título de correção
Allen Ginsberg riscou um poema de Paul
McCartney, sentado bem ao ladinho dele, segundo
a foto da matéria que eu li.
E então a academia já
reconhece a contracultura, Estela?
Em seu último livro, “O
lado ativo do infinito”, Carlos Castañeda faz
uma dedicatória a Tom Jobim, elogiando as
delicadas melodias que revelam o guerreiro. Isso
foi em 1993. Em 1974, ou perto disso, Tom deu
uma entrevista em que não sobrou quase nada pra
ninguém. Nem pro Chico, nem pro Vinícius, nem
pro Noel. Foi quase tudo para “meu mestre, Don
Juan”.
E onde ficam os
neologismos anticerebrais de Antonin Artaud se
dizendo plagiado por Lewis Carrol em
“Jabberwocky”? Lennon dizia que algumas de suas
canções eram “passeios pelo outro lado do
espelho”.
Esses “neologismos”,
Estela, merecem capítulo à parte.
Sting nem acreditava,
pelo que li numa entrevista à antiga Bizz, na
possibilidade de grandes temas existenciais na
canção. Não mencionou Bob Dylan, e não sei se o
conhecimento de Chico e Caetano desviariam essa
perspectiva.
E muita gente viva têm
se queixado de canções com demasiadas ideias,
pensamentos. Um contraponto.
Pascal Quignard,
autor de “Todas as manhãs do mundo” (livro que
virou filme com Gérard Depardieu no papel do
compositor Jean de Sainte-Colombe) e de “Ódio à
música”, entre outros, acredita numa trama
sonora correspondente ao enredo visual dos
sonhos, trama à qual os músicos
estariam
eternamente ligados.
E então, Estela,
gostaria muito de saber que se vive em Bob
Dylan. Música? Letra? Ou certo teor de
substância não identificável pelo critério
nobel?
Beijos do Mário e da Ana
Lee, que também adorou nosso rápido e intenso
encontro em Lisboa.
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