Cabeçalho de Manuel A. e Sousa
Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº61. novembro-dezembro 2016 . ÍNDICE
Homenagem de A viagem dos argonautas e do Triplov a José Afonso



 

Maria Estela Guedes
(Portugal, 1947). Poeta, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária, além de exegeta da obra de Herberto Helder. Faz parte do Conselho Editorial da revista
Incomunidade e colabora com Carlos Loures em:
http://aviagemdosargonautas.net/.
Dirige coleções na editora Apenas Livros, entre elas
cadeRnos suRRealistas sempRe. Tem umas dezenas de títulos publicados.
Foto: José Emílio-Nelson


MARIA ESTELA GUEDES

E se Zeca Afonso tivesse ganho o Nobel?

O Zeca Afonso nunca foi candidato, que eu saiba, ao Prémio Nobel. Porém, na mesma área ou parecida, já o seu colega Adriano Correia de Oliveira viu o nome sobre a mesa, na Svenska Akademien - e esta designação, "academia", só por si merecia o artigo, por nos depararmos, neste caso, com um mano a mano entre duas instâncias habitualmente adversárias: a academia e a contracultura. É o pomo da discórdia quanto à atribuição a Bob Dylan, mas é moroso indagar qual a verdadeira espécie do pomo, pois ele é múltiplo e camaleónico.

Do ponto de vista dos jurados do Nobel da Literatura, que estarão eles a premiar em Bob Dylan? A Literatura? Que Literatura? - Livros de poemas, de crónicas? Obras em suporte de papel, como ainda acontece com os livros? A excelência dos poemas cantados? As baladas, ou os blues, no seu todo letra+música? Eu diria que estas razões são insuficientes para justificarem tão magnífico galardão. Do ponto de vista da Academia Sueca, nada do que aduzi em perguntas foi motivo para a atribuição do Nobel da Literatura.

Muitos puseram o problema, em vista do silêncio prolongado do artista após a notícia da atribuição, de que a academia, isto é, o establishment, não pode absorver tudo, a contracultura não pode ser academizada, entrar na rotina da ortodoxia, do "arranjadinho", do "assim-é-que-está-bem". Esses não acertaram na suposição de que Bob Dylan iria recusar ou nem sequer responder aos senhores "burrocratas" da cultura, e a expressão entre aspas não é minha, só a utilizo por a ter utilizado também um dos mais icónicos poetas da contracultura em Portugal, um que se diz recusava prémios, e até a frequentação dos académicos evitava, como confessa a Joana Ruas, na carta que em baixo se apresenta, e note-se que já em 1976 o poeta mamalizava os académicos, embora de forma vaga e genérica, sem a conotação de um lado asinina e do outro tecnocrata:

"Estou contente por Você não frequentar os mamíferos das artes. Não prestam. Eu também não frequento. Passei por lá num momento de distração. Não cheirava bem. Mudei logo de geografia."

Bem. O Herberto cedeu à Academia e até teria cedido ao Prémio, porque, mais forte nele do que a repulsa pelo estereótipo, pelo standard, pelo discurso da moda que a academia implica - ao contrário da contracultura, que atira ao mundo com o nunca visto nem antes pensado, o novo, o original, por conseguinte aquilo que não sofre comparações com A, B ou C - mais forte do que o Amor, a Liberdade, o desejo de Obscuridade, em Herberto, era o desejo de conquistar alguma, um pouco de Eternidade. Ora, nas Letras, o pouco de Eternidade só é alcançável entrando nos salões da Academia, deixando que os académicos nos dispam, avaliem, nos metam as mãos nas algibeiras e os pulmões nas máquinas de Raios-X. Aí está ele, com todo o seu desdém, mas está, em congresso, neste mês de novembro, no Porto. E não está por ter morrido, já em vida se sentava em catedrais do saber como a Sorbonne.

Ninguém consegue escapar ao establishment, à academia, à cátedra, à tese de doutoramento. Sabemos de quem esperneia e diz não mas depois vai selecionando e deixando que o selecionem, mas este espernear é de autor, não é de obra. O autor defende-se e diz que não, o não da obra não se insere neste enquadramento. Mortos os autores, já as obras ficam livres, e perguntemos: que outra via de perenização da obra existe se não for a académica?

Podemos pensar na quantidade de likes e CDs e antes deles na quantidade de pessoas que assistem a concertos, compram singles e álbuns dos músicos como Bob Dylan. A quantidade equivale à eternidade? Não ponho em dúvida a qualidade, sim a duração do fenómeno artístico junto da sociedade. Bob Dylan é ouvido desde os anos sessenta, tal como Herberto Helder é lido desde os cinquenta. Que nos garante que ainda estarão vivos daqui a cem, duzentos anos?

Todos estes e muitos mais assuntos podem levantar-se quanto à atribuição do Prémio de Literatura a um músico, entre eles a anulação das hierarquias, sempre presentes em etiquetas como "alta cultura", "cultura erudita", "poesia popular", "literatura marginal" - e é saudável o entendimento de que a cultura e a literatura são uma só, sem altas, baixas, marginais nem underground, bem comportadas e obscenas. O caso Bob Dylan abre portas numa velha casa, cheia de teias de aranha lineanas - todo o sistema de classificação vem, em mais próxima instância, do Sistema Naturae de Lineu (1758, 10ª ed., a adotada) e visa delimitar o saber em grupos e subgrupos que nos permitam viver numa casa mental bem arrumada. Não saberíamos pensar sem isso, a argumentação traça referências entre pontos conhecidos e nada como a discussão de prémios para testarmos a incapacidade de avaliação do que fosse novo em absoluto, ou seja, desprovido de pontos comuns com objetos semelhantes.

Os prémios atribuídos à arte são absurdos - outro tema a debater. Não se trata, em poesia, de saber quem é o melhor, sim o que é mais distinto. O melhor apura-se face a instrumentos científicos de avaliação, estilo fita métrica, balança, relógio ou termómetro. Neste caso estão os desportistas: temos 300 parecidos a percorrer a mesma distância, vamos lá a ver quem chega à meta em menos tempo. Em arte, esse tipo de avaliação é inapropriado. Podemos medir número de livros vendidos, mas bem sabemos que qualquer "Aprenda a ganhar milhões numa semana" venceria a corrida contra qualquer obra como "Os Lusíadas". E no entanto, neste caso, o número fica do lado de Bob Dylan, como ficaria do lado do Zeca Afonso, que homenageamos neste número da Revista TriploV, por muito que nem um nem outro sejam exemplo de músicos que batem recordes de venda de discos ou DVDs.

São demasiadas as interrogações e demasiadas as correntes de ar que este prémio suscita. Não há tempo para responder. Direi apenas que não me desagrada ver premiado Bob Dylan, pelo que ele representa, pelo que fez por nós, adolescentes que fomos com ele e depois jovens adultos, não pela literatura, ou pelo menos não pela Literatura entendida como arte de escrita sobre suporte de papel. O impacto dos músicos nos jovens é avassalador, o meio de difusão é palpitante. Os poetas podem girar obsessivamente em torno do corpo, mas o cantor entrega-se e é tocado, bebido, inspirado por auditório que grita e desmaia, tal a veemência da paixão que transita entre ele e nós.

O que passa, as novas ideias, os novos desejos, as novas necessidades, transforma as sociedades. O Adam Lambert não beijou o namorado na boca no final de uma performance, enfiando-lhe a língua pela garganta abaixo como um ET? Dirão: isso garantiu-lhe notícias em todos os meios de comunicação durante um mês. Sim, claro, esse geniozinho não o é só na música. Mas importa aqui para o caso é que a arte transforma, e vem transformando com força desde que nos anos sessenta os jovens começaram a cantar contra a guerra e a defender o amor livre. Make love, not war. Tal como o Zeca. Que diriam os portugueses se tivesse ganho o Nobel o mais contestatário dos nossos cantores, aquele cujo poema "Grândola, vila morena" é símbolo da nossa revolução? A diferença entre ele e Bob Dylan é apenas de escala, Portugal é um país pequeno. De resto, o que eles cantaram, se ainda não se fez, como a Luz, já criou dedos capazes de carregarem nos interruptores. O Zeca não teria ganho pela literatura, nem pela música, sim por ser um símbolo da Liberdade.

Quanto ao resto, meus amigos, já Verlaine o declarava, tout le reste est Littérature.

Quanto ao resto, que se lixem os académicos, com o meu excecional aplauso para a Academia Sueca, que não parece estar a assimilar Bob Dylan, sim a procurar ser assimilada pelo mundo novo, o das manifestações culturais dinâmicas em grande escala. Sim, porque a cultura de Dylan, a nossa, é francamente maioritária, por isso é ela a dominante.

 
 
BOB DYLAN AO VIVO, NO NEWPORT FOLK FESTIVAL, EM 1964
https://www.youtube.com/watch?v=OeP4FFr88SQ


MEMORIAL «GRÂNDOLA"  E ZECA AFONSO, EM GRÂNDOLA

Fotos de Joaquina Pires
As paredes deste monumento estão cobertas de palavras. Além delas, inclui a Declaração dos Direitos do Homem. A palavra, enquanto ideal transmissível, é o seu principal ornamento.
 
 
 
ZECA AFONSO AO VIVO, NO COLISEU, EM 1983
https://www.youtube.com/watch?v=ERXpCjbwny0
 
 
Carta de Herberto Helder gentilmente oferecida pela destinatária, Joana Ruas
 
 
 
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