O Zeca Afonso nunca
foi candidato, que eu saiba, ao Prémio Nobel.
Porém, na mesma área ou parecida, já o seu
colega Adriano Correia de Oliveira viu o nome
sobre a mesa, na Svenska
Akademien - e esta designação, "academia",
só por si merecia o
artigo, por nos depararmos, neste caso, com um
mano a mano entre duas instâncias habitualmente
adversárias: a academia e a contracultura. É o
pomo da discórdia quanto à atribuição a Bob
Dylan, mas é moroso indagar qual a verdadeira
espécie do pomo, pois ele é múltiplo e
camaleónico.
Do ponto de vista dos jurados do Nobel da
Literatura, que estarão eles a premiar em Bob
Dylan? A Literatura? Que Literatura? - Livros de
poemas, de crónicas? Obras em suporte de papel,
como ainda acontece com os livros? A
excelência dos poemas cantados? As baladas, ou
os blues, no seu todo letra+música? Eu diria que
estas razões são insuficientes para justificarem
tão magnífico galardão.
Do ponto de vista da Academia Sueca, nada do que
aduzi em perguntas foi motivo para a atribuição
do Nobel da Literatura.
Muitos puseram o problema, em vista do silêncio
prolongado do artista após a notícia da
atribuição, de que a academia, isto é, o
establishment, não pode absorver tudo, a
contracultura não pode ser academizada, entrar
na rotina da ortodoxia, do "arranjadinho", do
"assim-é-que-está-bem". Esses não acertaram na
suposição de que Bob Dylan iria recusar ou nem
sequer responder aos senhores "burrocratas" da
cultura, e a expressão entre aspas não é minha,
só a utilizo por a ter utilizado também um dos
mais icónicos poetas da contracultura em
Portugal, um que se diz recusava prémios, e até
a frequentação dos académicos evitava, como
confessa a Joana Ruas, na carta que em baixo se
apresenta, e note-se que já em 1976 o poeta
mamalizava os académicos, embora de forma vaga
e genérica, sem a conotação de um lado asinina e
do outro tecnocrata:
"Estou contente por Você não frequentar os
mamíferos das artes. Não prestam. Eu também não
frequento. Passei por lá num momento de
distração. Não cheirava bem. Mudei logo de
geografia."
Bem. O Herberto
cedeu à Academia e até teria cedido ao Prémio,
porque, mais forte nele do que a repulsa pelo
estereótipo, pelo standard, pelo
discurso da moda que a academia implica - ao
contrário da contracultura, que atira ao mundo
com o nunca visto nem antes pensado, o novo, o
original, por conseguinte aquilo que não sofre
comparações com A, B ou C - mais forte do que o
Amor, a Liberdade, o desejo de Obscuridade, em
Herberto, era o desejo de conquistar alguma, um
pouco de Eternidade. Ora, nas Letras, o pouco de
Eternidade só é alcançável entrando nos salões
da Academia, deixando que os académicos nos
dispam, avaliem, nos metam as mãos nas
algibeiras e os pulmões nas máquinas de Raios-X.
Aí está ele, com todo o seu desdém, mas está, em
congresso, neste mês de novembro, no Porto. E
não está por ter morrido, já em vida se sentava em
catedrais do saber como a Sorbonne.
Ninguém consegue escapar ao establishment, à
academia, à cátedra, à tese de doutoramento.
Sabemos de quem esperneia e diz não mas depois
vai selecionando e deixando que o selecionem,
mas este espernear é de autor, não é de obra. O
autor defende-se e diz que não, o não da obra
não se insere neste enquadramento. Mortos os
autores, já as obras ficam livres, e
perguntemos: que outra via de perenização da
obra existe se não for a académica?
Podemos pensar na
quantidade de likes e CDs e antes deles na
quantidade de pessoas que assistem a concertos,
compram singles e álbuns dos músicos como Bob
Dylan. A quantidade equivale à eternidade? Não
ponho em dúvida a qualidade, sim a duração
do fenómeno artístico junto da sociedade. Bob
Dylan é ouvido desde os anos sessenta, tal como
Herberto Helder é lido desde os cinquenta. Que
nos garante que ainda estarão vivos daqui a cem,
duzentos anos?
Todos estes e muitos mais assuntos podem
levantar-se quanto à atribuição do Prémio de
Literatura a um músico, entre eles a anulação
das hierarquias, sempre presentes em etiquetas
como "alta cultura", "cultura erudita", "poesia
popular", "literatura marginal" - e é saudável o
entendimento de que a cultura e a literatura são
uma só, sem altas, baixas, marginais nem
underground, bem comportadas e obscenas. O
caso Bob Dylan abre portas numa velha casa,
cheia de teias de aranha lineanas - todo o sistema
de classificação vem, em mais próxima instância,
do Sistema Naturae de Lineu (1758, 10ª
ed., a adotada) e visa delimitar o saber em
grupos e subgrupos que nos permitam viver numa
casa mental bem arrumada. Não saberíamos pensar
sem isso, a argumentação traça referências entre
pontos conhecidos e nada como a discussão de
prémios para testarmos a incapacidade de
avaliação do que fosse novo em absoluto, ou
seja, desprovido de pontos comuns com objetos
semelhantes.
Os prémios atribuídos à arte são absurdos -
outro tema a debater. Não se trata, em poesia,
de saber quem é o melhor, sim o que é mais
distinto. O melhor apura-se face a instrumentos
científicos de avaliação, estilo fita métrica,
balança, relógio ou termómetro. Neste caso estão
os desportistas: temos 300 parecidos a percorrer
a mesma distância, vamos lá a ver quem chega à
meta em menos tempo. Em arte, esse tipo de
avaliação é inapropriado. Podemos medir número
de livros vendidos, mas bem sabemos que qualquer
"Aprenda a ganhar milhões numa semana" venceria a corrida contra qualquer
obra como "Os Lusíadas". E no entanto, neste
caso, o número fica do lado de Bob Dylan, como
ficaria do lado do Zeca Afonso, que homenageamos
neste número da Revista TriploV, por muito que
nem um nem outro sejam exemplo de músicos que
batem recordes de venda de discos ou DVDs.
São demasiadas as
interrogações e demasiadas as correntes de ar
que este prémio suscita. Não há tempo para
responder. Direi apenas que não me desagrada ver
premiado Bob Dylan, pelo que ele representa,
pelo que fez por nós, adolescentes que fomos com
ele e depois jovens adultos, não pela
literatura, ou pelo menos não pela Literatura
entendida como arte de escrita sobre suporte de
papel. O impacto dos músicos
nos jovens é avassalador, o meio de difusão é
palpitante. Os poetas podem girar obsessivamente
em torno do corpo, mas o cantor entrega-se e é
tocado, bebido, inspirado por auditório que
grita e desmaia, tal a veemência da paixão que
transita entre ele e nós.
O que passa, as
novas ideias, os novos desejos, as novas
necessidades, transforma as sociedades. O Adam
Lambert não beijou o namorado
na boca no final de uma performance,
enfiando-lhe a língua pela garganta abaixo como
um ET? Dirão: isso
garantiu-lhe notícias em todos os meios de
comunicação durante um mês. Sim, claro, esse
geniozinho não o é só na música. Mas importa
aqui para o caso é que a arte transforma, e vem
transformando com força desde que nos anos
sessenta os jovens começaram a cantar contra a
guerra e a defender o amor livre. Make love, not
war. Tal como o Zeca. Que diriam os portugueses
se tivesse ganho o Nobel o mais contestatário
dos nossos cantores, aquele cujo poema
"Grândola, vila morena" é símbolo da nossa
revolução? A diferença entre
ele e Bob Dylan é apenas de escala, Portugal
é um país pequeno. De resto, o que eles
cantaram, se ainda não se fez, como a Luz, já
criou dedos capazes de carregarem nos
interruptores. O Zeca não teria ganho pela
literatura, nem pela música, sim por ser um
símbolo da Liberdade.
Quanto ao resto, meus
amigos, já Verlaine o declarava, tout le reste
est Littérature.
Quanto ao resto,
que se lixem os académicos, com o meu excecional
aplauso para a Academia Sueca, que não parece
estar a assimilar Bob Dylan, sim a procurar ser
assimilada pelo mundo novo, o das manifestações
culturais dinâmicas em grande escala. Sim,
porque a cultura de Dylan, a nossa, é
francamente maioritária, por isso é ela a
dominante.
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