Cabeçalho de Manuel A. e Sousa
Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº61. novembro-dezembro 2016 . ÍNDICE
Homenagem de A viagem dos argonautas e do Triplov a José Afonso


Foto: Valter Vinagre
Júlio Conrado  (Olhão, 26.11.1936, Portugal). Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro), centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão, inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010), Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia: Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009). 
 
JÚLIO CONRADO

Nos 30 anos de Um amor feliz

 

O porquê de uma leitura incompleta, lapso gerador de um remorso só devidamente equacionado quando o tempo e o distanciamento agudizam a extensão da lacuna, não é de explicação aceitável quando as razões aduzíveis são o descaso e a preguiça. Se relativamente ao romance de David Mourão-Ferreira Um Amor Feliz não houve descaso – a edição inaugural do livro fora-me oferecida pelo autor com uma dedicatória amigável e ainda percorri uma vintena de páginas – uma certa forma de preguiça pode ter “adiado” a leitura crítica até aos dias de hoje, quanto a mim o melhor álibi para justificar o diferimento. Todavia levei a peito vencer a falta de empatia com as propostas iniciais do romance – porventura a causa escondida da primeira rejeição – e a tirar a limpo uma pendência que viria a ser também condicionada pela avalancha de literatura passiva que inflaccionou de laudas encomiásticas a recepção da obra. Que me perdoe o David, onde quer que agora repouse, a tardia assunção de uma nova atitude, que decorre, ao menos, da empenhada leitura integral do seu livro e também de algumas achegas externas perante as quais me curvo respeitoso e obrigado.*      

Começo, no entanto, por dizer que voltei a “sentir” os travões inibidores do passado na segunda tentativa de abordagem à ficção romanesca de DM-F na justa medida em que a sua escrita poética desde sempre me tocou, sendo a imediata comparação entre uma e outra causa do retraimento da tempestiva reaproximação. Em poesia, seja num poema de fundo, numa letra para fado ou numa quadra castiça, David não cede um nico à facilidade. Cada verso é pesado, ritmado, medido, e cada estrofe é um prodígio de equilíbrio estético, sustentados pela rigorosa disciplina por ele imposta ao trabalho lírico. Na prosa romanesca não é bem assim. Julgo que no primeiro terço, quando a narrativa anda à procura de um norte para orientar na mensagem a temática escolhida, os desníveis de qualidade formal torpedeiam a ambição de amplitude desde cedo sintomática das ambições do autor. Diálogos lassos, uso e abuso do advérbio de modo, indecisa formulação ambiental, um certo empastelamento da narrativa com repetições desnecessárias, são empecilhos que dificultam a adesão incondicional do leitor, por essa altura já a fazer esforços para não bater em retirada ante os obstáculos que se lhe deparam. Dir-se-ia que David procurava um estilo, mas que a prosa lhe saía rebuscada, minada ainda, talvez, por um treino de ensaísta que dificultava a fluidez do discurso ficcional na direcção desejável à captação da mensagem pelo receptor-alvo.

Desta vez, porém, não havia preguiça e o esforço continuado em levar o livro até ao fim foi culminado com a rectificação de uma atitude apriorística inócua. Atitude fora de tempo? Admito que sim. Mas perfazendo o livro neste ano de 2016 a bonita idade de 30 anos e não cessando a editora (Presença) de o reimprimir (a 17ª edição data de 2009) parece-me de todo legítimo emendar a mão, não corrigindo qualquer opinião anterior, que não existiu, mas colmatando o “buraco” da indiferença contemporânea da primitiva versão.

A dado passo, nesta nova fase, fui forçado a reconhecer que no livro alguma coisa mudara. E mudara no escritor. Fiquei com a impressão – e perdoe-se-me o impressionismo pois David já cá não está para aprovar ou não – o autor-narrador porfia em divertir-se com a própria teia que está a tecer e nos leva a participar, cada vez com maior empenhamento, no desenrolar do enredo, logo, a divertirmo-nos também. Um Amor Feliz é, evidentemente, um romance de relações perigosas. A livros celebérrimos, muito populares, cujo tema era a traição conjugal, chama-se-lhes agora “romances de adultério” e tiveram o seu auge nos séculos XVIII, XIX e princípios de XX. O romance de David sendo igualmente “de adultério” corresponde a uma evolução deste tipo de problema que não passa já pela noção de pecado ou de ilícito criminal mas por uma espécie de convenção mais ou menos snobe que entre os membros da classe abastada naturaliza a figura do “amante” como questão inerente a uma qualquer alteração de mentalidades, um tique de casta superior muito ao gosto do novo-riquismo dos anos oitenta do século passado. Ou seja: já não há tragédia no adultério, já ninguém precisa de desafiar ninguém para um duelo por motivos passionais ou lavar a sua honra por outros meios violentos, pondo em risco a própria vida. Os grandes protagonistas deste “caso” são Y, amante do escultor Fernão, o pediatra assistente marido de Y e a pediatra, superiora hierárquica deste e mulher do escultor, que jamais põe em causa a “fidelidade” do consorte, e segundas figuras com desempenhos formidáveis como Floripes, a empregada doméstica que se ocupa das limpezas no atelier do escultor e sua filha Zu, cabeleireira. E um poeta muito conhecido, quase sempre de cachimbo na boca.  

Quando as linhas de força de todas estas individualidades de papel e tinta se cruzam em alta tensão David Mourão-Ferreira atinge um empolgante patamar de realização artística que já subjugou o leitor, mesmo o reticente, que não se afastará do livro antes da derradeira página. Chega a pensar-se que Fernão é o alter-ego de David, uma vez que o escultor tem um passado de mulherengo deveras impressionante ainda que viva com Y uma paixão assolapada por inaptidão do marido em cumprir os mínimos dos deveres conjugais processando a história com superior minudência as escapadelas de Y ao atelier do escultor para se amarem. Este, aliás, é chantageado pelo marido de Y, através da mulher pediatra num imbróglio pelintra de tráfico de influências que acaba por não resultar. No contexto, Floripes e Zu sobem a grande altura como personagens secundárias, de recorte trivial, cujas falas de uma espontaneidade demolidora condimentam a intriga com as “verdades” que o conspícuo atelier nelas inspira. 

Mas não. Fernão não é o alter-ego de David. O alter-ego de David é o próprio David, o grande poeta que incentivará Y a escrever melhor poesia e sobre a qual exerce um inusitado fascínio, ajudado pelo seu ícone favorito, o imprescindível cachimbo. Cachimbo que já seria adereço suficiente para reconhecer na personagem o equivalente da vida real tantas vezes é ele mencionado para identificar o portador. David, portanto, “rouba” Y a Fernão, mas nas páginas finais desmonta toda a estrutura da trama, ponto por ponto, denunciando a sua intervenção como autor-narrador responsável pela arquitetura do romance, e revelando o pobre escultor como uma marioneta por si manipulada, convocada para um desfecho esclarecedor como naqueles romances policiais em que o investigador reúne todos os suspeitos no salão para nomear o criminoso ou como nos filmes de Hitchcock em que o realizador aparece sempre na fita. O narcisismo de David Mourão-Ferreira impediu-o de manter escondida a mão que geria a trama, tornando inútil o diplomático diálogo final entre escultor e poeta porquanto são numerosas as pistas salpicadas no texto que indiciam a sua presença activa na confecção do produto. Mas que ganhariam em ter sido mantidas tapadas para que o leitor pudesse gabar-se de as ter destapado.  

Por fim, na solidão do atelier, Fernão recebe um dia uma carta de Y.

Terá ela levado com os pés do famigerado poeta garanhão e estará de volta?  

Jamais o saberemos. O romance atinge o seu termo sem que a carta seja aberta.

E isso importa, depois de termos chegado onde chegámos e de sabermos como?  

Independentemente do tema do adultério e do que o rodeia, Um Amor Feliz é um cáustico testemunho da sociedade portuguesa ilustrada do início dos anos oitenta com seus tiques de novo-riquismo, seus ainda mal digeridos contrastes resultantes da mudança de regime, seus políticos corruptos ou incompetentes, suas redes de influência, o ridículo dos partys em embaixadas, a mediocridade cultural e um sem número de outras manchas no cadastro de que, como país, segundo David, não devemos orgulhar-nos. Felizmente que o escultor tem em Lisboa o atelier que é simultaneamente ninho de amor e, bem longe, no Monte Estoril, o doce lar onde reside com sua mulher, a fiel pediatra que lhe tolera tudo, sempre tão embrenhada no seu trabalho e na carreira que de nada desconfia – não tem a sensibilidade para os “cheiros” da impagável Floripes. 

Ah, Mestre, Mestre, se este divã falasse, era cá um destes berreiros de mulherio que até se ouvia na Outra Banda! Mas de há uns meses a esta parte sei muito bem que tem sido sempre a mesma senhora, que o meu nariz nestas coisas nunca se engana, e deve ser pessoa de grande categoria, lá isso deve, porque fica sempre tudo muito bem cheiroso e muito asseadinho […] Ai que se esse espelho fosse um quadro com os retratinhos à la minuta de todas as madamas que têm aqui vindo!... Eu é que sei, não que as tenha visto, mas até houve muitas ocasiões em que elas eram às três e às quatro na mesma semana, agora uma, agora outra, e deviam ser todas da alta, olá se deviam, mas eu distinguia-as logo pelo perfume, que este meu nariz nunca se engana. 

A Floripes.

*Destaque para o notável texto de Teresa Martins Marques Clave de Sol / Chave de Sombra que foi sua tese de doutoramento e que resultou de uma absorvente tarefa de inventariação e investigação do espólio de David Mourão-Ferreira a par de uma penetrante análise da sua obra literária. A especialização em José Rodrigues Miguéis e David Mourão-Ferreira veio a ser recentemente acrescentada com o estudo biográfico sobre Amadeu Ferreira, um dos mais importantes divulgadores da Língua Mirandesa, falecido em 2015. O Fio das Lembranças, Biografia de Amadeu Ferreira, assim se intitula o livro. Recorde-se que Teresa Martins Marques também é ficcionista, tendo feito a sua estreia no romance com o livro A Mulher que venceu D. Juan.    

 
 
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