À MANEIRA DE
PRÓLOGO
Manuel Simões
Do Choupal até à
Lapa / Coimbra não tem sossego
– eis dois versos do lirismo tradicional
coimbrão que sintetizam, sem querer, uma
situação inquieta ou a circunstância de uma
cidade cheia de acidentes, submetida a uma torre
brumosa, com o seu quê de inatingível, torre que
está na origem da cisão entre dois mundos
urbanos: um, com os seus rituais estranhos, os
ritos e os mitos conjugando-se para a alienação
dos jovens por meio do exotismo das grandes e
pequenas cerimónias; outro, marchando com o seu
tempo, procurando integrar-se ao nível das
conquistas da técnica (até ao ponto que a
sociedade lho consente). Daí esta nítida
separação, o ar medieval da “Alta” estabelecendo
fronteiras com o mundo exterior e com o qual só
comunica por ligações artificiais, abstractas,
sem raízes.
Ora José Afonso,
sofrendo o choque destes dois mundos, é
absorvido primeiramente por uma escala de
valores nitidamente tradicionais: uma “praxis”
reverenciando um passado longínquo, um sonho
para a adolescência que presta culto a actos que
celebrizaram tal e tal aventureiros de uma
boémia acentuadamente gratuita. É então que
percorre o ciclo da “saudade”, com o seu
vocabulário próprio, a custo se movendo numa
geografia de elementos míticos – o romântico
Penedo,
a Lapa feiticeira, o Choupal
sonhador – elementos que entrarão na semântica
da “saudade”, não sem ressuscitar as “folhas”
secas de seus antigos tributos prestados ao
Romantismo.
De extremo a extremo,
Coimbra
não tem sossego. Não pelas razões diluídas
no fado tradicional, mas por outras bem mais
importantes que sobressaem numa realidade
urbana, ao rés destas ruas insólitas,
narcotizadas por secretos venenos, realidade que
desafia as palavras e as remete ao seu “País de
origem”. E foi este desassossego, diariamente
vivido, a pedra de toque para a
consciencialização do jovem cantor de Fados, que
era José Afonso: ausculta então a cidade para
lhe conhecer o sangue; e o marcado rigor que
circunscreve o polígono citadino, a hostilidade
do clima, mas sobretudo a vitória nas eleições
académicas de 1960, acabam por acentuar a
progressiva tomada de consciência de quem, até
então, tinha sido apenas o fútil representante
de um lirismo deprimido e deprimente.
De facto, a partir de
1960, agrava-se o litígio entre duas formas de
conceber o mundo, mesmo o pequeno universo
encravado na cidadela. Foi um ano em que as
pedras floriram e em que os poetas e cantores
saudaram publicamente esse florescimento.
Desenvolve-se um processo colectivo de
actualização temática e musical das canções
coimbrãs (perdendo o seu carácter subjectivo,
vêm a enquadrar-se num processo geral de
renovamento), na linha do qual se inscrevem os
jovens dos
Poemas Livres, Manuel Alegre com a sua
Praça da
Canção, acção em que se empenha toda a
Academia então vitoriosa. A partir de agora, o
estudante conhece o seu papel no devir histórico
e a própria “Capa Negra” transforma-se num
elemento de luta:
Abre-te
bem nos meus ombros / vira costas à saudade –
cantará mais tarde Adriano Correia de Oliveira.
/
Redimindo-se da sua
antiga expressão, os
Cantares de José Afonso deixam de
aclimatar-se no processo de sacralização do Fado
de Coimbra. E, o que é mais importante, acabaram
por se revelar adversos de tal processo,
manifestando-se abertamente contra uma ideologia
passadista, conservadora dos pés à cabeça, que
tal é a ideologia sobre que assentam as antigas
formas (hoje ainda com os seus servidores) e o
decadentismo das suas proposições: um ambiente
patriarcal, um bucolismo desbragado ou, ainda,
um ruralismo sentimental – sempre uma evocação
do passado em termos de passado.
Contra esta crise de
consciência, apeia José Afonso alguns dos mitos
vigentes. E o seu cantar torna-se então incisivo
e mordaz, envolvendo a tão desamada geografia,
que analisa agora em termos de rigor. A partir
deste momento, a cidade está presente de
outro modo,
observada agora até frente às mais secretas
armadilhas. Repare-se como nos fala das “meninas
perdidas” do
Lago do
Breu, um poema que não dilucidará a complexa
estrutura da prostituição, mas onde se acentua
já uma preocupação de vulto frente às
deformações sociais. E idêntico tema
reconquista, mais recentemente, em
Avenida de
Angola, uma situação geográfica diferente
mas utilizando processos semelhantes.
Parte importante dos
seus
Cantares é dedicada às crianças. Na sua vida
docente, José Afonso tem contactado intimamente
com os meninos “sem condição”, com os meninos
“do mal trajar” deste país de mar e sol. Correu
com eles nos areais calcinados do Mondego,
depois nas dunas algarvias, o suficiente para
lhes conhecer as carências de toda a ordem. E se
em Menino
d’Oiro parece querer preservar o seu “menino” de toda a corrupção,
levando-o um tanto idealisticamente no seu
veleiro, em
Menino do Bairro Negro pretende, pelo contrário, enfrentar a
humilhação:
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz
ou, com o seu grito de
protesto, declarar ao mesmo tempo esta certeza:
Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver
Mas o cantor apercebe
outros horizontes e, com eles, renovados
Cantares onde o poeta atinge, talvez, a melhor
expressão do seu poder criador. Em
Crónica de
uma Vila, Cantar Alentejano, Ó Cavador do
Alentejo e Grândola
Vila
Morena, são as terras transtaganas que estão
presentes, com a gravidade dos seus problemas,
alguns dos quais nos são apresentados em canções
de experimentado vigor crítico, vigor que se
manifesta na incomodidade destes cantares do
Sul, uma lâmina dissecando o desamor do clima:
Ó cavador do Alentejo
Quem te viu e quem te vê
Há muito que te não vejo
Cantar sem saber porquê.
E o poeta conhece a
situação, a circunstância geográfica, a evolução
histórica:
Aquela andorinha negra
Bate as asas p´ra voar
Ó Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar.
//
O tratamento do tema não
é aspecto de menor importância nos
Cantares de José Afonso. É evidente, todavia, que os poemas são
expressamente feitos para serem musicados (com
algumas excepções, claro), facto que os
subordina a uma estrutura rítmica por vezes
estranha, embora de belo efeito nas canções. E o
que ressalta desde logo é a forma declaradamente
popular que imprimiu aos poemas, retomando
modelos tradicionais que implicam até a poesia
trovadoresca. Esta matéria tradicional tem,
contudo, um tratamento específico em José
Afonso, particularmente pela feição popular que
lhe deseja imprimir, daí resultando uma
aproximação efectiva entre o Cantor e o Povo.
Mas restarão dúvidas de
que estamos em presença de verdadeiros
Cantos Populares? É evidente que não se trata de cantos escritos
pelo povo nem para o povo; mas trata-se de
Cantares logo adoptados pelo povo, por estarem
de acordo com a sua maneira de pensar e de
sentir. Isto porque “o que distingue o canto
popular no quadro de uma nação e da sua cultura…
(é) o seu modo de conceber o mundo e a vida” (
António Gramsci –
Literatura e Vida Nacional
) .
De facto, ao ouvir-se
José Afonso pela primeira vez, há uma pergunta
que logo nos acode. – “ Que voz é esta, tão nova
e substantiva que, imediatamente, se nos torna
familiar?” De tal modo se identifica com as
nossas aspirações que nos parece tratar-se de
uma voz que sempre nos acompanhou, connosco
percorrendo este “areal onde não nasce o dia”,
agora amplificando e dando forma nova aos Cantos
ouvidos nas duras tarefas do Povo.
Manuel Simões
1966
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