Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº 60. setembro-outubro 2016.
ÍNDICE

CANTARES DE JOSÉ AFONSO

 50 ANOS

1966/2016

Coordenação e textos de Manuel Simões e Rui Mendes

Notas de José Afonso

Edição: Nova Realidade / 1966

 

O livro Cantares teve até agora 4 edições (esgotadas de imediato). Duas da Nova Realidade (Tomar) e duas da Fora do Texto (Coimbra), sendo que a última edição do Livro veio a lume em 1995.

 

 

À MANEIRA DE PRÓLOGO
Manuel Simões
 

Do Choupal até à Lapa / Coimbra não tem sossego – eis dois versos do lirismo tradicional coimbrão que sintetizam, sem querer, uma situação inquieta ou a circunstância de uma cidade cheia de acidentes, submetida a uma torre brumosa, com o seu quê de inatingível, torre que está na origem da cisão entre dois mundos urbanos: um, com os seus rituais estranhos, os ritos e os mitos conjugando-se para a alienação dos jovens por meio do exotismo das grandes e pequenas cerimónias; outro, marchando com o seu tempo, procurando integrar-se ao nível das conquistas da técnica (até ao ponto que a sociedade lho consente). Daí esta nítida separação, o ar medieval da “Alta” estabelecendo fronteiras com o mundo exterior e com o qual só comunica por ligações artificiais, abstractas, sem raízes.

Ora José Afonso, sofrendo o choque destes dois mundos, é absorvido primeiramente por uma escala de valores nitidamente tradicionais: uma “praxis” reverenciando um passado longínquo, um sonho para a adolescência que presta culto a actos que celebrizaram tal e tal aventureiros de uma boémia acentuadamente gratuita. É então que percorre o ciclo da “saudade”, com o seu vocabulário próprio, a custo se movendo numa geografia de elementos míticos – o romântico Penedo, a Lapa feiticeira, o Choupal sonhador – elementos que entrarão na semântica da “saudade”, não sem ressuscitar as “folhas” secas de seus antigos tributos prestados ao Romantismo.

De extremo a extremo, Coimbra não tem sossego. Não pelas razões diluídas no fado tradicional, mas por outras bem mais importantes que sobressaem numa realidade urbana, ao rés destas ruas insólitas, narcotizadas por secretos venenos, realidade que desafia as palavras e as remete ao seu “País de origem”. E foi este desassossego, diariamente vivido, a pedra de toque para a consciencialização do jovem cantor de Fados, que era José Afonso: ausculta então a cidade para lhe conhecer o sangue; e o marcado rigor que circunscreve o polígono citadino, a hostilidade do clima, mas sobretudo a vitória nas eleições académicas de 1960, acabam por acentuar a progressiva tomada de consciência de quem, até então, tinha sido apenas o fútil representante de um lirismo deprimido e deprimente.

De facto, a partir de 1960, agrava-se o litígio entre duas formas de conceber o mundo, mesmo o pequeno universo encravado na cidadela. Foi um ano em que as pedras floriram e em que os poetas e cantores saudaram publicamente esse florescimento. Desenvolve-se um processo colectivo de actualização temática e musical das canções coimbrãs (perdendo o seu carácter subjectivo, vêm a enquadrar-se num processo geral de renovamento), na linha do qual se inscrevem os jovens dos Poemas Livres, Manuel Alegre com a sua Praça da Canção, acção em que se empenha toda a Academia então vitoriosa. A partir de agora, o estudante conhece o seu papel no devir histórico e a própria “Capa Negra” transforma-se num elemento de luta: Abre-te bem nos meus ombros / vira costas à saudade – cantará mais tarde Adriano Correia de Oliveira. 

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Redimindo-se da sua antiga expressão, os Cantares de José Afonso deixam de aclimatar-se no processo de sacralização do Fado de Coimbra. E, o que é mais importante, acabaram por se revelar adversos de tal processo, manifestando-se abertamente contra uma ideologia passadista, conservadora dos pés à cabeça, que tal é a ideologia sobre que assentam as antigas formas (hoje ainda com os seus servidores) e o decadentismo das suas proposições: um ambiente patriarcal, um bucolismo desbragado ou, ainda, um ruralismo sentimental – sempre uma evocação do passado em termos de passado.

Contra esta crise de consciência, apeia José Afonso alguns dos mitos vigentes. E o seu cantar torna-se então incisivo e mordaz, envolvendo a tão desamada geografia, que analisa agora em termos de rigor. A partir deste momento, a cidade está presente de outro modo, observada agora até frente às mais secretas armadilhas. Repare-se como nos fala das “meninas perdidas” do Lago do Breu, um poema que não dilucidará a complexa estrutura da prostituição, mas onde se acentua já uma preocupação de vulto frente às deformações sociais. E idêntico tema reconquista, mais recentemente, em Avenida de Angola, uma situação geográfica diferente mas utilizando processos semelhantes.

Parte importante dos seus Cantares é dedicada às crianças. Na sua vida docente, José Afonso tem contactado intimamente com os meninos “sem condição”, com os meninos “do mal trajar” deste país de mar e sol. Correu com eles nos areais calcinados do Mondego, depois nas dunas algarvias, o suficiente para lhes conhecer as carências de toda a ordem. E se em Menino d’Oiro parece querer preservar o seu “menino” de toda a corrupção, levando-o um tanto idealisticamente no seu veleiro, em Menino do Bairro Negro pretende, pelo contrário, enfrentar a humilhação:

Tira os olhos do chão

Vem ver a luz

 

ou, com o seu grito de protesto, declarar ao mesmo tempo esta certeza:

 

Se não é fúria a razão

Se toda a gente quiser

Um dia hás-de aprender

Haja o que houver

 

Mas o cantor apercebe outros horizontes e, com eles, renovados Cantares onde o poeta atinge, talvez, a melhor expressão do seu poder criador. Em Crónica de uma Vila, Cantar Alentejano, Ó Cavador do Alentejo e Grândola Vila Morena, são as terras transtaganas que estão presentes, com a gravidade dos seus problemas, alguns dos quais nos são apresentados em canções de experimentado vigor crítico, vigor que se manifesta na incomodidade destes cantares do Sul, uma lâmina dissecando o desamor do clima:

 

Ó cavador do Alentejo

Quem te viu e quem te vê

Há muito que te não vejo

Cantar sem saber porquê.

 

E o poeta conhece a situação, a circunstância geográfica, a evolução histórica:

 

Aquela andorinha negra

Bate as asas p´ra voar

Ó Alentejo esquecido

Inda um dia hás-de cantar.

//

O tratamento do tema não é aspecto de menor importância nos Cantares de José Afonso. É evidente, todavia, que os poemas são expressamente feitos para serem musicados (com algumas excepções, claro), facto que os subordina a uma estrutura rítmica por vezes estranha, embora de belo efeito nas canções. E o que ressalta desde logo é a forma declaradamente popular que imprimiu aos poemas, retomando modelos tradicionais que implicam até a poesia trovadoresca. Esta matéria tradicional tem, contudo, um tratamento específico em José Afonso, particularmente pela feição popular que lhe deseja imprimir, daí resultando uma aproximação efectiva entre o Cantor e o Povo. 

Mas restarão dúvidas de que estamos em presença de verdadeiros Cantos Populares? É evidente que não se trata de cantos escritos pelo povo nem para o povo; mas trata-se de Cantares logo adoptados pelo povo, por estarem de acordo com a sua maneira de pensar e de sentir. Isto porque “o que distingue o canto popular no quadro de uma nação e da sua cultura… (é) o seu modo de conceber o mundo e a vida” ( António Gramsci – Literatura e Vida Nacional  ) . 

De facto, ao ouvir-se José Afonso pela primeira vez, há uma pergunta que logo nos acode. – “ Que voz é esta, tão nova e substantiva que, imediatamente, se nos torna familiar?” De tal modo se identifica com as nossas aspirações que nos parece tratar-se de uma voz que sempre nos acompanhou, connosco percorrendo este “areal onde não nasce o dia”, agora amplificando e dando forma nova aos Cantos ouvidos nas duras tarefas do Povo.

 

Manuel Simões

1966

 

CANÇÃO

Rui Mendes

      O homem abriu a luz do dia e as suas mãos encheram-se de auroras e de fogo, e o homem sentou-se à sombra azul dos seus filhos e, de voz embargada, começou a soletrar o incandescente Livro dos Vivos, pensando – ia alta a manhã – que abril já sonhava com as púrpuras mães do maio de forquilha ao ombro, por esses campos fora.

*

      E o homem, erguendo-se na imanência do mundo, juntou a força da sua voz às escarpas dos ventos e das marés, alteando a ferocidade e o peso cantante das palavras, e os seus olhos, ó redonda e sobreviva esperança, eis que fundiam nos pórticos das trevas os tumultuosos gritos da folhagem de certa guitarra encarnada, como se fossem uma constelação de barcos e de remos despenhando os céus.

*

(Raiava de púnico sangue o mar as crinas dos cavalos e, danados, os cães da Europa rugiam)

 

Rui Mendes

 
REFERÊNCIAS

MEMÓRIA de JOSÉ AFONSO

http://infinitomutante.blogspot.pt/

CANTARES de JOSÉ AFONSO

(Disco)

https://www.youtube.com/watch?v=IMLxwuTAxG8&feature=share

 

2 de Agosto de 2016

 
 
 
 
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