Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº 60. setembro-outubro 2016
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José Roberto Baptista (Brasil). Editor da ARTE-LIVROS Editora.
Foi professor universitário e Diretor-Acadêmico de tradicionais instituições de ensino superior em São Paulo. É estudioso da fenomenologia parapsicológica e autor, entre outros, do livro Introdução ao Estudo da Parapsicologia (Arké, 2007), além de já ter escrito vários artigos sobre o tema. Dirigiu o IEP-SP - Instituto de Estudos Psicobiofísicos de São Paulo voltado, exclusivamente, ao estudo e ao ensino da Parapsicologia.

JOSÉ ROBERTO BAPTISTA

Desgraçadamente aposentado

Todos aqueles que se aposentam, e comigo não foi diferente, sentimos uma certa felicidade ao nos vermos livres do cumprimento de horários e afazeres que ao longo de algumas décadas estivemos atrelados. Vivenciamos uma nova situação. Estamos livres!

Contudo, o tempo do aposentado não é o mesmo tempo daqueles que estão em atividade. Disso estou convicto.

Tudo vai bem nas primeiras semanas. O vento da liberdade nos acaricia fraternalmente. Depois... bem, depois a coisa começa a andar de lado.

 Do nada você passa a conferir se o relógio, por algum motivo acima do bem e do mal, está quebrado; e se depara com a triste realidade, dura, indiferente: NÃO! o relógio não está quebrado. Daí... "preciso fazer alguma coisa".

É uma espécie de voz fantasmagórica que começa a nos assombrar. Algo semelhante ao "demônio de Sócrates" em versão moderna.

Tirando-se as dores nas juntas,  gases acumulados por longos períodos no sofá, estados depressivos e insatisfação pela existência, nada acontece na vida do aposentado. Nem mesmo a lâmpada do corredor queima. É o começo de uma longa, mas longa mesmo,  excetuando-se os casos de morte súbita,  via crucis.

O que posso fazer? Não aguento mais ficar parado. Que horror! Uma infeliz ideia surge boiando nos mares da esperança.

Vou arrumar outro emprego. Tenho experiência e maturidade para isso. Crasso engano.

Currículos são encaminhados por todos os meios. Desde os mais tradicionais, saudosos e, consequentemente, fora de moda, envios via correio, sempre registrados, como reza a tradição e manda a experiência, até aqueles enviados pelos inconvenientes, embora atuais, endereços eletrônicos. Estes, nas mãos da maioria dos aposentados sempre engasgam. Copia aqui, cola ali, abre a página tal, fecha o maldito do arquivo... Ih! não deu certo. Chama a neta, pior a emenda que o soneto. No fim, após um longo período de choro e ranger de dentes, a coisa, pelo menos aparentemente, vai.

Ufa! Que alívio. Uma alegria inconfessa toma conta do sensível e idoso  ser.

Mas, como tudo passa, o alívio e a alegria transformam-se em insônia e uma nova fase se instala: a ansiedade.

O tempo passa e nada. Absolutamente nada. Nem mesmo uma mensagem gentil, mesmo mentirosa, mas gentil, utilizada nos tempos de outrora, mas já esquecida nos tempos modernos, do tipo: "Recebemos seu currículo. Caso você seja selecionado, entraremos em contato".

Nada.

Então, vá tudo para o inferno. Não preciso me sujeitar a isso. Quer saber, vou pintar a casa.

Essa decisão, quando anunciada por um aposentado, cai como uma bomba para a esposa que já vê um desastre anunciado. Um profético tsunami doméstico se aproxima. Mesmo assim, com um ânimo hercúleo, a pintura começa. Mas... não termina.

A sala fica bicolor. De um lado novinha, do outro, bem, deixemos isso pra lá. É apenas um detalhe.

Novos sóis, novas ideias e novas investidas. O Senhor provê a cada dia.

Vou cozinhar.  Vou fazer o frango que minha mãe fazia. Outro tsunami é pressentido por aquela que jurou estar junto até o final da vida,  tanto na alegria como na tristeza. Tudo mentira! Nesse momento não há juramento que dê conta. Tudo é esquecido.  

Mas nada, nem mesmo a novela de época da TV Globo, consegue afastar o desejo culinário do velho guerreiro.

Cebolas e tomates picados, alhos amassados, frango cortado em pedaços, tudo, absolutamente tudo, preparado. Avante!

Mas, logo em seguida ao "Avante" o cheiro de frango queimado espalha-se pelo ambiente, imediatamente associado ao visível e indisfarçável  olhar, ao mesmo tempo enigmático e condenatório, da esposa. Perde-se uma batalha, mas não a guerra. Persistência é o lema.

A jornada em busca de um tempo que não se quer perdido continua.

Nova ideia, novo destino: ACADEMIA. Exercícios fazem bem para o corpo e para a alma. É o que diz o cartaz logo na entrada, ao lado do caixa.

Roupas especiais, tênis, muita disposição e... olhares, infinitos olhares, muitos condenatórios; e a mensagem chega ao feliz, e mais que isso, felicíssimo desportista, como por telepatia:  Que é que esse "tiozinho" veio fazer aqui? Vai acabar enfartando.

Olha, pessimismo ou não, a verdade é que é assim. Só elogiam os velhos diante das câmeras de TV. Também, o que se poderia esperar? Que os entrevistados deixassem aflorar os seus mais vis sentimentos e revelassem o que se esconde nas profundezas de seu âmago? E ainda em frente a uma câmera de TV?  

Ora, que conversa.

Até velho fala mal de outro velho. Direto. É assim porque é assim. Ponto.  Deixemos a hipocrisia no urinol. (para os mais jovens que nunca ouviram falar, urinol é uma espécie de vaso apropriado para urinar).

Ah! por falar em vaso...[1]

Quem nunca presenciou os olhares e bufadas em filas de banco quando chega um velhinho?

O velho mal chega e já é olhado com desprezo.

Lá vem o provecto cidadão passar na minha frente.

E de nada adianta um ou outro ancião dispensar o direito ao atendimento prioritário, a coisa engasga da mesma maneira. Não tem saída. E para piorar, alguns da terceira idade ainda não ouvem o  maldito blim blim das campainhas, sinal de chamada para o próximo da fila apresentar-se.  São necessárias uma infinidade de  blins blins, mais um montão de gente, em uníssono, gritando histericamente "É O SEU NÚMERO", "É O SEU NÚMERO". E, entre discretos e quase silenciosos lábios: - VAI LÁ CACETE. TÁ SURDO?

É um tormento.

Eu que sou velho não aguento. Imagine o resto.

Mas, entre translúcidos desgostos, o candidato da vez apresenta-se. Indiferente a tudo e a todos; vai em direção ao caixa, orgulhoso de si mesmo, altivo, mas, concordo, muitas vezes, indeciso em relação a qual dos caixas deve dirigir-se.

Novos e raivosos, embora ainda disfarçados, avisos dos enfileirados clientes: Senhor,  é no caixa 2. À sua esquerda. Não! À esquerda. Jesus! como é que a família deixa um senhor desses sozinho?!

Não tem jeito. Nem mesmo aqueles programas de auditório, também conhecidos como cultos religiosos, que vão ao ar todos os dias da semana, em todos os horários, do dia e da noite, que não obedecem finais de semana, nem feriados, conseguem prender a atenção dos velhos. Concordo, são engraçados... mas, particularmente, não aguento mais ver tantos milagres. Virou lugar comum.  Milagres de todos os tipos, discursos de louvor, intimidades divinas reveladas por padres e pastores de todas as denominações e por aí vai.

Além dos milagres alguns ainda mandam colocar, talvez como um reforço, sei lá,  um copo com água sobre um móvel para ser abençoado pelo padre, bispo, pastor... enfim pelo religiosos que conduz o ato para, ao final da liturgia, ser bebida por aquele que sofre algum mal, seja físico ou espiritual. Assim dizem. Mas, só no final. Tudo planejado para segurar o velho (e outras milhares e milhares de pessoas) diante da televisão. Acho isso pura maldade.

Tem velho que já tomou tanta água abençoada que não consegue ficar quieto no sofá por mais de dois minutos. Inferniza a família toda dizendo que está com a bexiga solta. Nada. É só parar de ver esses programas por dois dias e tudo voltará ao normal.

Para piorar, se é que é possível piorar alguma coisa, num desses programas disseram para os fieis espectadores ajoelharem. E nem alertaram que os de idade mais avançada não precisariam fazê-lo. Bem, ajoelhar é até um ato de humildade. Concordo. Mas, o problema para alguns, com muitos anos de experiência, mas que ainda não criaram juízo, é levantar.

Presenciei, mais que uma vez em igrejas, anciãos que, após ajoelharem-se para uma oração, precisaram de dois benevolentes parceiros de fé para poderem levantarem-se. Pode uma coisa dessas?

Será que ninguém percebe que para muitos idosos ajoelhar-se (e consequentemente levantar-se depois) é pior que comer farofa com hashi?

Mas que falta de sensibilidade é essa?

Todavia, por vezes, fico pensado com meus botões: O que há de errado em ser velho (além é claro de lotar os prontos-socorros e passar na frente dos outros nas filas de bancos e aeroportos (o que chateia alguns poucos insensíveis) NADA.

 Velho é velho. O que fazer? Afinal, os que têm alguma sorte chegarão a ser velhos. É a vida, embora mais próxima da morte, continua a ser a vida. Ponto.

[1] Para preparar-se uma boa caipirinha basta juntar açúcar (duas colheres) e sumo de limão (1 limão) num copo, ou outro recipiente qualquer, macetar com o pilão e, em seguida, completar com pinga de boa qualidade.

Obs. Caipirinha de vodca, que muito se popularizou aqui no Brasil, para mim é o mesmo que galinhada de carneiro. Invenção de quem nunca teve nada melhor a fazer. 

 
 


 
 
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