Salvo entre os aficcionados leitores
de Rilke, poucos conhecem O amor de Madalena
(São Paulo: Landy, 2000). Trata-se de um sermão anônimo do
século XVII, traduzido por Rilke, em primorosa edição trinlingüe
(português, francês, alemão). De misteriosa história, o sermão
foi atribuído a religiosos franceses por diferentes
investigadores, desde que foi redescoberto em uma biblioteca
russa.
Longe de me interessar
por sua autoria, quero apreciar os torneios desse belo exemplo
do barroco, testemunho da mentalidade da igreja de Roma.
Fiel ao espírito da
Contra-Reforma, que não escapou dos esquemas mentais medievos, o
sermão foi pronunciado numa sociedade instaurada burguesa,
marcada pelos novos comportamentos advindos da modernidade, que
buscava na ciência as respostas negadas pela Fé.
Membro de uma Igreja
cujo fundador apenas selecionou homens como encarregados de
divulgar a boa nova
(=evangelho),
o pregador bem sabe que duas mulheres tornaram-se figuras
proeminentes dessa mesma Igreja. A primeira e a maior de todas é
a própria Mãe de Jesus, concebida sem pecado original, declarada
Virgem como dogma de fé e reconhecida com alma para ser assunta
aos céus. E tudo isso por iluminadas conclusões conciliares,
interpretantes do texto sagrado. Maria, portanto, não pode ser
vista como esposa do Cristo. A segunda mulher é a Madalena. A
tradição cumulou Maria de Magdala de traços míticos e a Igreja
passou a concentrar na Madalena o caráter da nova Eva, casta
esposa, símbolo da própria Igreja.
Naturalmente, resultado
de verdadeira exegese, pois os evangelhistas não se detiveram
longamente nessa mulher, a princípio tão igual a todas as
desconhecidas que integravam a multidão de seguidores do
Messias.
O orador sacro busca
fundamentos bíblicos, e perseguindo curvas e curvas vai compondo
a Madalena, ainda que a encontre no tempo de Moisés e no
Cântico
dos Cânticos,
usando de licenças que se alimentam da tradição e ultrapassam
obstáculos cronológicos. Dessa diversidade de traços, capazes de
estabelecer a unidade da figura desejada, graças às analogias
estabelecidas, instaura-se a Madalena.
Essa mulher reúne, além
daquelas do Velho Testamento,
a prostituta, a irmã de Lázaro, a testemunha da crucificação, a
que vai ungir o corpo do Messias, a que vê o Messias
ressuscitado e é encarregada de dar a notícia aos discípulos, a
que se retira para o deserto. É do amor dessa Madalena que diz
tratar o sermão.
Não podia ser menos do
que um amor exemplar para ser objeto de uma peça sacra.
Portanto, o discurso tem como objetivo falar do amor,
demonstrando o caráter especial desse amor, visto como situação
sensível, que reflete uma verdade histórica, bíblica,
tradicional: uma verdade da Fé. Assim quer o pregador.
O texto organiza-se em
partes. Começa construindo a mulher, ao tempo que sugere
anunciar um conceito de amor. Mas, o que importa não é definir
imediatamente o amor, mas exercitar-se em argumentos que
conduzam à indiscutível compreensão do objeto do discurso: o
amor (de Madalena). Prefere, então, o orador buscar o conceito
nas manifestações e nos comportamentos amorosos, que passa a
declinar e a analisar. Reconstitui o momento da entrega.
Reencontra o exercício amoroso. Pretende, com isso, ilustrar uma
definição a ser encontrada no conjunto das atitudes da amante e
do amado. De Madalena, o que se apura é um amor feminino: é
desejo, é vontade de tocar e ser tocada. Esses caracteres
conduzem a um comportamento que se compraz em lançar-se aos pés
do amado; em silenciar pedidos; em andar no rastro do amado; em
servir; em amar o vivo, o morto, o ressuscitado, o que partiu
para glória ao lado do Pai; em amar uma promessa de amor; em
acreditar no encontro na eternidade, no conjunto dos eleitos,
pilares da Igreja triunfante. O amor dessa mulher é
penitente,
como diz o pregador.
Como entender esse amor
irrestrito e exclusivo sem caracterizar o móvel de tão absoluto
sentimento? O orador oferece aos fiéis ouvintes (e a nós
leitores) a perspectiva do amado, para que melhor se aceite a
entrega de Madalena.
Seu amado
Atrai
poderosamente os corações,
torna-os ávidos e insaciáveis, conquista-os, domina-os, ata-os,
entrega-se a eles de mil maneiras (...) de tal modo que eles
aspiram só a ele; e assim que eles são comprometidos sem poder
mais soltar-se, ele se retira, se esconde, os testa fugindo e
impingindo-lhes privações horríveis.
(p. 29).
E ainda assim, os
corações devem continuar plenos de amor por este Ser tão digno
de ser amado.
E aí está o principal
interesse do texto (ou de minha leitura...): atestação da
fidelidade da profissão de fé amorosa daquela que ama,
considerando-se o caráter de exceção do amado. E não se diga que
me deixei contaminar pelo barroco do texto, por estar também me
desdobrando em planos, para desenvolver minha leitura. Quero
apenas percorrer os labirintos da argumentação, tentando
aproximar-me do cuidado e dos ardis com que foram construídos no
púlpito.
Proferido numa sociedade
burguesa e laica, que a passos largos consolida as fronteiras
entre Igreja e estado, o sermão desenvolve não apenas uma
verdade defendida pela doutrina, mas também disciplina uma
atitude feminina.
Como o pregador
mergulhou numa variedade de fontes para pintar sua Madalena,
permito-me fazê-la portadora dos traços femininos sem conotações
do sagrado, para melhor entender a mentalidade que pretende
falar do amor de uma mulher.
Na penitência do amor,
conforme o texto, a mulher vai cumprindo o exercício de desejar
sem ser satisfeita; de submeter-se diante da grandeza do amado;
de gozar da delícia de calar-se e servir obedientemente. Não é
em vão que no retrato de Madalena estão contidas as pinceladas
da Samaritana – mais uma Maria/Miriam; num mundo de homens que
falam, interpretam e que vão espalhar a
boa nova, elas
estão sempre solícitas diante do hóspede e do viajante, do líder
e dos discípulos.
O amado é sábio, líder,
herói, iluminado: “suas fugas são
atrativos, suas demoras impaciências, suas recusas dons, seus
desdéns carícias” (p. 40).
Temos uma amante submissa. Temos um amado que lhe permite ser
amado. O amor feminino qualifica-se pelo seu objeto: homem
amado. É o objeto do amor que torna esse amor superior,
especial, definitivo. Ensina o texto que “o amor pode tudo;
ousa tudo”. Mas, argumenta com o desejo não satisfeito, com
exílio da amante. Então, o que pode o amor? O que ousa o amor?
Apenas amar, eis a resposta. E o que responde a alma masculina a
esse amor? Deixa-se amar. O jogo de sedução masculino, traduzido
pelo texto, tem como objetivo fazer-se amar: quer conquistar a
amante para ser amado; não sabe amar: sabe ser amado. Ou (sendo
um tantinho barroca também): ama para ser amado. Faz promessas
de prazer absoluto, desde que seja amado absolutamente. Sua
condição suprema de amado consolida-se na medida do amor
recebido: dedicação, fidelidade, obediência, imitação,
sacrifício de prazer, imolação da vontade particular em
benefício da vontade e da glória do amado. O masculino,
permitindo ser erigido objeto da dedicação amorosa, justifica e
eleva o amor à condição suprema.
Jogo de contrastes, num
contexto que tanto precisava de alimento para a Fé, quanto
necessitava de disciplina nas relações homem-mulher;
evidentemente, ditando o exemplo para o segundo termo do
binômio....
Madalena/Igreja é dita
esposa casta - irmã e esposa: interdita, fora dos sagrados
objetivos do par amoroso; permitida, para o cumprimento dos
mesmos objetivos. Resolvido o aparente paradoxo: a castidade
consiste em dedicação, obediência, fidelidade, silêncio,
sacrifício, renúncia, sublimação do desejo, exaltação do amado,
distanciamento do amado, esperança de delícias glorificantes da
amante-penitente. Madalena/Igreja esposa de Cristo é imposta
como modelo do feminino, da esposa do cabeça da família – Cristo
cabeça da Igreja - vejam-se as palavras rituais do sacramento do
Matrimônio.
A voz masculina do
pregador, se pode traçar, com conhecimento de causa, a
arrogância masculina na relação amorosa, quer ensinar o caminho
do deserto, indicado para Madalena, como viagem especial da
amante, para celebrar, na sublimação da fé (amorosa), a memória
do amado.
Afastando-se, porém, o
olhar da linearidade do texto bíblico,
deserto é
metáfora da ausência do amado, da frustração do desejo, do
exílio do prazer, do vazio de felicidade feminina, da danação de
corpo faminto. Ao amado resta não saber o quanto deve ser
sublime dar e receber carícias amorosas, na cúmplice intimidade
mulher-homem, no aqui e agora da alegria do encontro
completamente impenitente.
O resto... bem... o resto é retórica.
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