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MAURÍCIO SILVA &
MÁRCIA FUSARO
Organizadores
MIA COUTO
Uma literatura entre palavras
e encantamentos
São Paulo, 2011
ÍNDICE
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Os sentidos e os
não sentidos da língua portuguesa: questões de língua e
linguagem nos contos de Mia Couto
MAURÍCIO SILVA*
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"nós falávamos uma
língua que não nos falava". (Mia Couto)
"o que eu quero é esse
desmaio gramatical,
em que o português perde todos os sentidos". (Mia Couto)
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Introdução
A literatura
africana de expressão lusófona, presente nos cinco países em que
o português - transplantado, a princípio, como língua do
colonizador - foi, finalmente, adotado como língua oficial, tem
se revelado um campo particularmente rico em possibilidades de
estudo e pesquisa, resultado de uma profícua produção estética e
de um inesgotável universo de criação no âmbito do imaginário
literário. Estudar, portanto, a produção ficcional de seus
autores e autoras é compreender como se organiza, no espaço
cultural lusoafricano, a concepção de mundo dos povos que ali
vivem, bem como sua relação com a própria língua portuguesa,
além de refazer o caminho histórico e cultural destas nações por
meio de uma interação entre a literatura e a realidade local.
Analisando o
desenvolvimento dessa produção literária, não há como negar –
sobretudo se pensarmos na produção mais recente – nem sua
procedência anticolonialista, no plano social e histórico, nem
sua vinculação com os conceitos de nacionalismo e identidade.
Com efeito, se essa literatura nasce vinculada a um projeto mais
amplo de luta anticolonial, o que lhe confere, às vezes, um
caráter de literatura militante, com o passar do tempo
ela passa a se ligar a um desígnio identitário-nacionalista,
resultando, primeiro, na afirmação da identidade cultural local,
com a valorização das singularidades nativas e humanitárias da
região; depois, na criação de uma consciência nacionalista,
incentivando a defesa de valores sociais comunitários.
De modo sumário,
pode-se afirmar sobre a produção literária africana de expressão
portuguesa que ela pressupõe, como sugere Pires Laranjeira, uma
variedade de atitudes estéticas (busca de autonomia,
reivindicação anticolonial, afirmação nacional, assunção étnica
e folclórica, uso do bilinguismo textual, exaltação rácica etc.)
visceralmente vinculada à constituição/afirmação da comunidade
africana (LARANJEIRA, 2000). No contexto descrito, Mia Couto
talvez seja o nome que melhor sintetize valores e promessas da
produção literária da África lusófona na contemporaneidade,
elevando essa mesma produção à condição imprecisa, mas
meritória, de arte universal.
Mia Couto (né
António Emílio Leite Couto) é, atualmente, o autor com maior
visibilidade no universo das letras africanas lusófonas. Natural
da cidade da Beira, em Moçambique, costuma ser comparado a outro
grande autor da língua portuguesa do século XX, o escritor
brasileiro João Guimarães Rosa, tanto por tratar de questões
relacionadas aos "mistérios" da vida humana, quanto pela
inventividade de sua escrita, numa permanente descoberta de
novas palavras e estruturas idiomáticas, que resulta, em última
instância, de um processo de cruzamento entre o português culto
e os vários registros linguísticos empregados pela população
local de Moçambique, num inusitado processo de criação,
apropriação e renovação do português. A vida do povo moçambicano
e sua cultura de modo geral estão representados em sua extensa
obra ficcional, onde não faltam o humor e o trágico, a
incorporação da linguagem cotidiana, a inclusão do fantástico e
do imaginário, tudo veiculado por meio de uma escritura
em que se destaca, como assinalamos há pouco, um intenso
trabalho de criatividade linguística.
Autor refinado, tanto
no trato da composição quanto no da linguagem, Mia Couto não
abandona as tradições populares de seu povo, buscando contemplar
aquela moçambicanidade sempre perseguida pelos autores
daquela região. Dessa sua idiossincrasia estética disse Patrick
Chabal com propriedade:
“Mia Couto reflecte no seu trabalho a diversidade do discurso
popular. Explora as subtilezas do português moçambicano, falado
actualmente em Moçambique, que é distincto do português de
Portugal. Enquanto muitos outros escritores moçambicanos ainda
usam o português ‘clássico’, relativamente neutro, Mia Couto
está na vanguarda dos que tentam integrar o português de
Moçambique na sua escrita” (CHABAL, 1994, p. 68)
Buscando vincular, de um lado, aspectos mais propriamente
relacionados à língua portuguesa e, de outro lado, elementos da
ideologia que perpassa toda sua produção literária - esta última
compreensivelmente vinculada ao processo de colonização
historicamente vivenciado pelo continente africano -, nosso
artigo analisará como a questão linguística se apresenta ao
leitor nos contos de Mia Couto. Desse modo, ambas as categorias
aqui observadas - a que, por conveniência, chamamos de língua
e linguagem - congregam-se no sentido de dar à sua
produção ficcional não apenas maior consistência estética, mas
também maior alcance ideológico, na medida em que elas se
inserem no amplo conjunto de reflexões proposto pelo
pós-colonialismo, base teórica do presente artigo.
Assim, em Mia Couto,
há que se distinguir uma questão da língua e uma questão
da linguagem, ambas inseridas no contexto do
pós-colonialismo: a primeira, mais relacionada ao processo de
reconstrução idiomática do português no continente africano; a
segunda naturalmente vinculada a uma reflexão ideológica que se
reflete, metaforicamente, no substrato metalinguístico de sua
ficção.
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Língua e linguagem no
contexto do pós-colonialismo
Já se tornou um
truísmo entre os pesquisadores das áreas da linguística e da
literatura o fato de haver uma necessária intersecção entre os
conceitos de língua/linguagem e ideologia, já que todos eles
atuam em conjunto – pautando-se, em tese, nas relações
intercomunicativas –, no sentido de decifrar os meandros da
existência humana e analisar sua inserção numa dinâmica social
complexa. Esse é, aliás, um fato que pode ser percebido nas
considerações que Bakhtin faz acerca da conotação ideológica da
palavra:
"a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. Na realidade
toda palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não
comporta nada que não seja ligado a essa função, nada que não
tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e
sensível de relação social" (BAKHTIN, 1988, p. 36).
Este matiz ideológico
do discurso linguístico e, por extensão, do literário encontra
no solo africano, talvez como em nenhuma outra região, as
condições propícias para se desenvolver, renovando um vínculo
entre palavra e ideologia que surge como um verdadeiro
imperativo. Por isso, pode-se dizer que a opção das
ex-colônias de Portugal pela língua portuguesa veio acompanhada
pela disposição inalienável a um uso "libertário" do
código linguístico, uso que se manifesta em dois sentidos
complementares: como oposição/resistência ao poder colonial e
como inovação literária a marcar uma identidade cultural
lusoafricana. Tal fato faz com que a língua portuguesa não
apenas assuma uma participação determinante na construção de um
ideário africano, afirmando-se como um idioma de relativa
unificação política, mas também atue como discurso formador de
povos autônomos, exprimindo – literariamente ou não – sua
realidade. Afinal de contas, como já se salientou uma vez, "as
visões de mundo não se desvinculam da linguagem, porque a
ideologia vista como algo imanente à realidade é indissociável
da linguagem. As ideias e, por conseguinte, os discursos são
expressões da vida real. A realidade exprime-se pelos discursos"
(FIORIN, 1988, p. 33).
Nesse contexto
específico, a literatura adquire papel de relevo no processo de
afirmação da identidade cultural africana, particularmente em
Moçambique e Angola, onde ela conquistou plena
representatividade como instrumento de resistência ao poder
colonial, sobretudo no que ela apresenta de possibilidades de
manipulação criativa a instaurar uma nova realidade cultural. A
transgressão do registro padrão da língua portuguesa, por
exemplo, torna-se, desse modo, meio simbólico de
veiculação dos anseios libertários da população, sendo utilizada
a partir de perspectivas estéticas ideologizadas, já que se
volta, a um só tempo, para a manifestação de uma causa
revolucionária e afirmação de uma identidade coletiva
pós-colonial. Das sociedades emergentes, como são as sociedades
moçambicana e angolana e suas congêneres lusoafricanas, surgem
estéticas igualmente emergentes, isto é, expressões artísticas
comprometidas com a liberdade política da sociedade em que as
mesmas se inserem: são manifestações estéticas em que a função
social é, para além de significativa, orgânica, expressando-se,
sobretudo, por meio de um sistema estético em que língua e
linguagem perfazem um conjunto dinâmico que ultrapassa o mero
significado "linguístico" que ele possa sugerir.
Daí o fato, por
exemplo, de as literaturas que representam as nações
lusoafricanos terem na transgressão do código linguístico uma de
suas marcas mais sugestiva, a exemplo do que fazem Mia Couto e
Luandino Vieira, por exemplo, instaurando uma verdadeira
tradição da transgressão. Uma tradição e uma transgressão,
diga-se de passagem, que trazem em sua própria razão de ser
modos de atuação que servem como paradigma para toda a
literatura contemporânea destas regiões, como já assinalara
Manuel Ferreira:
“uma das características estilísticas introduzidas por alguns
poetas da Mensagem, e que vão ser continuadas pelas
gerações seguintes, é não só a integração das palavras da
língua-mãe, com relevo para o quimbundo, como também a
reapropriação pela escrita da cadeia falada do português dos
musseques, e ainda a justaposição de versos do quimbundo e
português” (FERREIRA, 1987, p. 124).
Por isso, estendendo
ainda mais a abrangência do apelo ideológico que a literatura de
Mia Couto alcança por meio do processo transgressor aludido,
pode-se afirmar que, sem se limitar à dimensão idiomática
propriamente dita, seu processo de reescritura da língua
portuguesa incide diretamente sobre a própria constituição de
uma consciência pós-colonial, servindo assim de substrato
ideológico e expressivo ao conceito de moçambicanidade.
Com efeito, criador de uma narrativa inovadora, Mia Couto tem
produzido um conjunto ficcional que traz como índice mais
relevante de sua genialidade artística exatamente uma singular
capacidade de reorganização da mundividência moçambicana a
partir do processo de recriação linguística presente em toda sua
produção literária.
Os estudos
relacionados ao pós-colonialismo ganham maior destaque a partir
da década de 1980, como as obras de Edward Said e Bill Ashcroft.
O primeiro, em seu célebre estudo sobre o orientalismo,
buscou analisar o surgimento do Oriente na história das relações
europeias como uma construção ideológica, definindo o próprio
conceito de orientalismo como um discurso que é, antes,
"produzido e existe em um intercâmbio desigual com vários tipos
de poder, moldado em certa medida pelo intercâmbio com o poder
político [...], com o poder intelectual [...], com o poder
cultural [...], com o poder moral" (SAID, 1996, p. 24). Já o
segundo, de modo um pouco mais otimista e relacionando a
literatura à ideia de resistência - o que pode resultar no
conceitos de literatura de resistência ou resistência
literária -, lembra que tais conceitos vinculam-se à ideia
de uma luta pela libertação nacional, embora não no
sentido limitado de militância. Assim, na opinião do autor, em
relação à literatura, a ideia de resistência está associada à de
transformação, na medida em que o colonizado pode perfeitamente
adquirir o capital cultural do colonizador em seu próprio
benefício, podendo, inclusive, transformá-lo em uma arma
anticolonial:
"Despite the power of colonial representation [...], despite the
ubiquity and influence of the tropes by which the colonized
subjects are marginalized, the colonial subject is never simply
a tabula rasa on which colonial discourse can inscribe
its representations: his or her engagement of the culture
presented as capital may be extremely subtle. This is, in a
sense, a key to post-colonial discourse: post-colonial societies
can not avoid the effects of the
colonization, but those effects need not necessarily be seen as
a tragic consequences of cultural subjugation, nor a cultural
contamination to be rejected at all costs. The effects of
imperial culture are a form of capital - neutral in itself but
politically potent in its possibilities - acquired and utilized
in the negociation of post-colonial cultural transformation.
Ultimately, it is this transformation, rather than a simple
opposition, which fulfils many of the goals of resistance"
(ASHCROFT, 2001, p. 44).
Como estamos
sugerindo aqui, tanto a questão da língua quanto a da linguagem
inserem-se no universo da teoria do pós-colonialismo, o que
parece ser particularmente verdadeiro no contexto dos países
africanos, onde, segundo Russel Hamilton, se verificaria um viés
contestatório do regime colonial, resultando, no âmbito
literário, numa produção reformista e experimentalista, por meio
da qual se procura “re-escrever e assim re-inventar a África”
(HAMILTON, 1999, p. 16). De fato, essa constante tensão
que as sociedades africanas mantiveram e mantém, historicamente,
com o poder colonizador - o que implica, entre outras coisas,
como mostra Thomas Bonnici, na crioulização das línguas
europeias e numa constante prática contradiscursiva, em relação
ao discurso colonial (BONNICI, 2005) - é o que faz das
literaturas pós-coloniais manifestações estéticas de resistência
ao e de renovação do cânone literário ocidental, contexto em que
o trabalho voltado especificamente para um processo de rasura e
reelaboração da língua/linguagem do colonizador adquire um valor
incontestável. Inventa-se, assim, por meio da literatura
pós-colonial produzida no continente africano - em especial a
literatura de expressão lusófona - um sujeito e uma nação
pós-coloniais que, ultrapassando os limites da discussão
dos efeitos da colonização, passa a se referir a "uma ampla gama
de experiências políticas, culturais e subjetivas, que se
deslocam no tempo (pré e pós-colonial) e se situam em diferentes
lugares" (SCHMIDT, 2009, p. 142).
Como poucos autores
contemporâneos da literatura africana lusófona em geral e da
literatura moçambicana em particular, Mia Couto busca, ao
máximo, explorar todas as possibilidades que a língua lhe
oferece, a fim de atingir efeitos poéticos e
resultados ideológicos até então inalcançáveis.
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Língua e linguagem
nos contos de Mia Couto
A questão da
língua/linguagem em Mia Couto pode ser apreendida em todos os
seus livros, dos teóricos aos ficcionais e, entre estes últimos,
tanto nos seus contos quanto em seus romances.
Nos romances, por
exemplo, ela surge em toda sua infinita potencialidade, como se
observa, por exemplo, em O Último Vôo do Flamingo (2000),
obra que tem no humor uma de suas características mais
marcantes, fato que resulta, entre outras coisas, de situações
inesperadas, quando não do puro nonsense. Há,
evidentemente, um conflito entre o mundo europeu (aqui
representado pelo italiano Massimo Risi) e o africano
(representado pelo narrador), tema recorrente em Mia Couto,
tratado de modo seguro, sem alguns ranços militantes que,
eventualmente, poderiam empanar a narrativa. Em meio a essas
questões, de fundo mais ideológico, por assim dizer, proliferam
criações neológicas, transgressões sintáticas, recursos orais,
além de uma série de considerações direta ou indiretamente
relacionadas à linguagem propriamente dita: o poder das
palavras, a voz dos falecidos, a importância da fala... Em A
Varanda do Frangipani (1996), um dos mais consagrados
romances de Mia Couto, destacam temas como o conflito entre a
tradição nativa africana e a tradição portuguesa, bem como entre
o passado – representado pela tradição – e o presente –
representando a modernidade. Trabalhando com ciclos distintos
(começa com um morto, figurando um ciclo que se fecha; passa ao
retorno desse morto à vida, simbolizando um ciclo que se abre;
para, finalmente, voltar à condição de morto, num ciclo que
volta a se fechar), trata-se de uma narrativa particularmente
marcada pelo jogo de identidades (Ermelindo Mucanga/Izidine
Naíta), em que não se dispensa uma reflexão sobre o problema da
desterritorilização (como no caso de Domingos Mourão/Xidimingo).
A palavra, sobretudo a palavra falada, exerce uma função
mítica na história, como ocorre com Navaia Caetano – para quem
as pessoas no asilo “vivemos muito oralmente” (COUTO, 2007, p.
26) –, que pede a Ermelindo Mucanga/Izidine Naíta que não
escrevesse nada, apenas escutasse sua história. Da mesma forma,
a fala, o contar, representa, muitas vezes, uma
sentença de morte, além de ser um perigo tanto para quem fala
quanto a quem ouve. Finalmente, a questão da linguagem
tem ainda um sentido especial na figura da feiticeira Nãozinha,
para quem a palavra possuia um valor sobrenatural.
Apesar do potencial
de trabalho que os romances sugerem, no que concerne às análises
em torno da questão da língua/linguagem, optamos por trabalhar
com seus contos, sobretudo pelo caráter sintético que o gênero
naturalmente possui (GOTLIB, 1988; SOARES, 1989; TAVARES,
1984), o que tende a tornar mais profícua nossa análise.
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1. Língua
Em relação à língua,
já se tornou um lugar comum - embora nunca seja demais voltar ao
assunto - assinalar o empenho intenso e constante de Mia Couto
na busca de um registro linguístico que exprima,
satisfatoriamente, tanto a complexa realidade da sociedade e da
história moçambicanas quanto a inapreensível volatilidade do
discurso literário. Assim, a partir de um trabalho de reinvenção
do código linguístico, o celebrado escritor reconstrói a própria
realidade moçambicana, representada, no plano narrativo, como um
quadro vivo das tradições, dos conflitos e dos costumes de toda
uma nação. Não obstante esse trabalho expressivo de resgate da
cultura popular-tradicional de Moçambique, suas principais
conquistas estéticas encontram-se no campo da estilística, já
que com a prosa ficcional de Mia Couto a literatura moçambicana
atinge seu ponto máximo, sobretudo no que diz respeito ao
tratamento linguisticamente inovador do texto literário. Tal
inovação pode ser verificada tanto no âmbito sintático, levando
o autor a promover verdadeira ruptura no encadeamento oracional
do português, quanto nos âmbitos morfológico – com sua
indefectível criatividade lexical – e fonológico, em que o
emprego deliberado de uma linguagem coloquial e o uso de
artifícios próprios da oralidade incorporados ao texto escrito
fazem de suas transgressões linguísticas uma ocorrência
esteticamente programática.
Do ponto de vista
fonológico, é, em primeiro lugar, o emprego abundante do
relato oral em suas histórias, a fim de promover um processo de
recriação da própria linguagem literária, que faz de Mia Couto
um dos mais criativos autores da literatura escrita em língua
portuguesa. Com muitos diálogos transcritos em sua forma
"original", própria da prosódia nativa, Mia Couto apreende a
fala local no calor da hora, dando a sua ficção uma dimensão
verdadeiramente humana, no rastro do que ressaltou Roland
Barthes ao afirmar que "l'appréhension d'un language réel est
pour l'écrivan l'acte littéraire le plus humain" (BARTHES, 1972,
p. 60). Além disso, o uso de termos próprios da linguagem
cotidiana pelo autor reforça ainda mais essa sua peculiaridade
estética: ao adaptar ao contexto local a linguagem de suas
personagens, Mia Couto logra recriar o universo cultural de toda
uma nação, revelando, pela ótica do particular, o que ela possui
de mais universal e transformando sua literatura num vasto
painel humanista destinado à resistência cultural e política de
um povo, em que - a exemplo do que faz Luandino Vieira em Angola
- a noção de identidade nacional não deixa de estar presente
(SANTILLI, 1985).
Não apenas no campo da fonologia
podem-se apreender as inovações linguageiras de Mia Couto.
Também no que concerne ao âmbito morfológico, seu
trabalho com a língua portuguesa apura-se e ganha relevo.
Trata-se, neste sentido, das criações neológicas de Mia Couto no
plano da renovação lexical, sempre com a intenção de tornar a
narrativa mais condizente com a realidade que procura retratar e
recriar em suas obras. Processos de formação de palavras como a
composição por justaposição (logo-logo, aero-anjo) ou por
aglutinação (senfins, saltitonto); como a derivação
prefixal (desconsegui, imovente, desorfanava, desmarado,
desrimou, desabismado, inacreditar, destrapezista), sufixal
(pontapesaria, pernação, sapudo, maravilhações, ardível)
ou imprópria (milesimamente, dezanovinha, todaviou-se,
senão-me, arco-irisca) e muitos outros fazem parte da
criatividade linguística de Mia Couto.
No plano
sintático-semântico, suas criações ficam por conta de uma
série de inovações, que vão da dispensa de conectivos
frasais e oracionais (preposições, pronomes, conjunções) a
invenções que resultam em efeitos estilísticos diversos, como a
ocorrência de inversões entre substantivos e adjetivos (impuros
matos, silencioso e adiado ser, culinárias ocupações, obesa moça),
uso de palavras com sonoridade parecida (assim postas e não
expostas; mais ela versejava menos a veda nela versava; era um
dedo sem sexo: só com nexo; um salto na casa, um assalto no
peito; graves lei da gravidade; em aparatosa aparição; vez e
voz, os olhos e os olhares; sem pertença nem presença; sem fim
nem finalidade; nada é repetível, tudo é repetente?; as tripas
já triplas; foi como se o mundo abrisse rochas e rachas; breves
são os enquantos, nenhuns os encantos), o emprego de figuras
de linguagem (o coração de Gilda se despenteava; seus olhos
taquicardíacos; vizinho congênito), tudo concorrendo para a
reverberação - por toda sua produção contística - de um
singularíssimo efeito estético-estilístico.
Desse modo, tanto do ponto de vista
fonológico e morfológico quanto sintático-semântico, pode-se
afirmar que a obra de Mia Couto tem na inovação do código
linguístico sua principal marca estilística, fazendo dele um
autor em que a ressignificação da língua torna-se
elemento estético de primeira grandeza. É o que sugerem Flavio
Garcia e Luciana Silva quando, ao considerar Mia Couto um
contador de histórias e um escritor que busca renovar a
palavra – afirmam:
“a origem
multifacetada, refletida em sua obra, faz emergir um universo de
significações que revolve as palavras, transformando-as para que
gerem novos sentidos. Ao ressignificá-las, inovando em relação
ao uso da linguagem, ele propõe novos olhares para o que já
existe visto desde antes” (GARCIA & SILVA, 2012, p. 177).
Visto de outra ótica, não parece
exagero afirmar que a literatura de Mia Couto denota – por meio
da inovação linguística – uma transgressão do próprio código
estético europeu, na medida em que refaz o percurso da escritura
literária a partir de outros protocolos artísticos, nos quais
está pressuposta a literatura como expressão de uma nova
forma a representar um conteúdo. Sua criação linguística faz
parte, assim, de um projeto de inovação discursiva, por meio do
qual ao se instaurar um outro discurso literário,
inaugura-se uma nova maneira de interpretar a realidade nacional
que esse discurso representa. Considerando que, como afirma
Maurizzio Gnerre, "a língua dos gramáticos é um produto
elaborado que tem a função de ser uma norma imposta sobre a
diversidade" (GNERRE, 1987, p. 10), Mia Couto opta exatamente
por romper com essa espécie de condicionamento linguístico, no
qual a língua exemplar torna-se modelo ideal de uso e a norma
gramatical a única referência válida para a escrita. Daí o
emprego de um código linguístico "mestiço", mesclado por
regionalismos e adaptado à dicção sintaticamente aglutinante dos
falares locais de Moçambique, tudo esteticamente reestruturado a
partir da perspectiva literária que tem na criatividade
linguística sua tônica.
Esse movimento tem uma clara
conotação ideológica, vinculando-se, facilmente, à teoria do
pós-colonialismo, como sugerimos de início. Assim, na medida em
que o pós-colonialismo se relaciona não apenas com o contexto
histórico da colonização europeia do continente africano, mas
sobretudo com as práticas discursivas que atuam como
substrato desse contexto, percebe-se em Mia Couto - por meio de
um discurso de resistência, de um processo de “canibalização da
língua portuguesa pelo colonizado” (LEITE, 2003, p. 13) - uma
concessão deliberada ao gesto pós-colonialista que, no universo
específico de sua literatura, torna a palavra um
autêntico “instrumento de afirmação dos povos de nações
lusófonas” (BASTOS & BRITO, 2011, p. 151).
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2. Linguagem
Em relação à
linguagem, aqui entendida como uma categoria que não se limita
apenas à configuração gramatical do idioma, mas a uma série de
elementos e atitudes vinculados a um sentido mais amplo do
registro linguístico, pode-se dizer que duas perspectivas se
destacam no processo coutiano de construção de um discurso
literário: a busca recorrente do sentido mítico da palavra e a
revelação intencional do poder que a palavra concentra em si. Na
verdade, há, em Mia Couto, um verdadeiro equilíbrio entre o
sentido mítico da palavra - que leva sua literatura para o campo
da ficção, vinculado-a ao ato de narrar - e o sentido realista
da palavra - que a retorna para a realidade, vinculado-a ao
poder. Ambos os sentidos inserem-se no plano da teoria do
pós-colonialismo, na medida em que o autor moçambicano - a
exemplo de outros autores de língua portuguesa, como Luís
Bernardo Honwana, Manuel Rui, Ungulani Ba Ka Khosa, Luandino
Vieira - atuam, como defende Niyi Afolabi, no sentido de
regenerar o processo de degenerescência da identidade
cultural dos povos africanos, promovido pelo sistema
colonialista português, processo realizado durante o período
pós-colonialista: “apoiando-se em vários modos de subversão, os
autores recuperam os valores culturais degenerados pelo
colonialismo português nos seus textos enquanto nas obras mais
recentes, ridicularizam a corrupção e a violência da condição
pós-independência” (AFOLABI, 1997, p. 28).
Com efeito, o
tratamento dado pelo escritor moçambicano à linguagem torna sua
dicção um discurso não apenas exemplar do ponto de vista
estético, mas sobretudo combativo do ponto de vista ideológico.
Em Cada homem é uma raça (1998) por exemplo, ao lado de
transgressões gramaticais e uma prosa poética carregada de
metáforas e outras figuras de linguagem, contos marcados por
conflitos intimistas ("Rosa Caramela") misturam-se a outros que
espelham problemas de natureza racial e afins ("A princesa
russa"). Neles, tanto o sentido mítico da palavra quanto a
linguagem como poder convivem, plenamente, no plano da
narrativa. O mesmo se pode falar de seus contos de estreia, no
livro Vozes Anoitecidas (1987), em que tudo o que aqui
foi dito ganha contornos ainda mais trágicos.
Esse sentido
mítico da palavra, a que nos referimos, contudo, surge de
modo mais evidente nos contos de Estórias abensonhadas
(1994) e nos de O fio das missangas (2004). Com efeito,
em Estórias abensonhadas deparamo-nos com narrativas que
parecem nascer da própria vivência do povo moçambicano,
resgatando o sentido mais sagrado da linguagem, descolando-a da
crua e insensível realidade, a fim de lhe conferir um sentido
sublime, um estatuto de ficção. Ali, a palavra torna-se
imagem, voz plena, estória, numa tensão dialética entre
verdade e ficção, como se afirma no início de um de seus contos:
"Toda a estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é um fumo,
leve de mais para se prender na vigente realidade. Toda a
verdade aspira ser estória. Os factos sonham ser palavras,
perfumes fugindo do mundo" (COUTO, 2012, p. 47).
Em O fio das
missangas, a relação que personagens de suas estórias
estabelecem com a palavra é, ao mesmo tempo, uma relação de
distância e de descoberta: não é o emissor que fala, mas ele é
falado, atuando primeiro - numa autêntica inversão de sentido
das funções da linguagem - como receptor da mensagem: "as
palavras desprendem-se de mim" (COUTO, 2009, p. 23), afirma a
protagonista de um dos contos. Mesmo assim, a fala tem seus
segredos, seus impedimentos, seus silêncios constrangidos e
contrangedores, ora exigidos, ora deliberados. Em outro de seus
contos, por exemplo, a única permissão que é dada à fala é
aquela que a vincula ao contar uma história, permissão
dada mesmo a quem, tecnicamente, não fala: "minha mãe, que é
muda, que conte" (COUTO, 2009, p. 38). É que no universo mítico
de Mia Couto o contar histórias faz parte da própria
essência do ser humano, da vida mesma de cada um.
Em Mia Couto, a
palavra adquire um peso mítico, um valor quase sagrado, pois,
por meio dela, mundos submersos são revelados, segredos e
mistérios são desvendados, lembranças perdidas no tempo são
resgatadas. Essa realidade premente de sua poética exprime-se em
algumas passagens de seus contos, tanto naquelas em que a
magia da palavra faz parte do tecido narrativo quanto
naquelas em que ela é tema/motivo da própria narrativa. É a
narradora do conto "A despedideira" quem expõe essa lógica
cerrada, ao afirmar peremptória e reveladoramente:
"Quando ele me dirigiu a palavra nesse primeiríssimo dia, dei
conta de que, até então, nunca eu tinha falado com ninguém. O
que havia feito era negociar palavra, em negoceio de sentimento.
Falar é outra coisa, é essa ponte sagrada em que ficamos
pendentes, suspensos sobre o abismo. Falar é outra coisa, vos
digo. Dessa vez, com esse homem, na palavra eu me divinizei.
Como perfume em que perdesse minha própria aparência. Me solvia
na fala, insubstanciada" (COUTO, 2009, p. 52).
Assim, seus contos -
como de resto toda sua produção literária - carregados de uma
poética simbologia, conformada por meio de mitos e legendas,
crenças e visões sobrenaturais, fatos e lembranças que se
multiplicam, fundem-se num indescritível painel de imagens
sensíveis, levando o autor a trabalhar a fundo o que aqui
chamamos de o sentido mítico das palavras.
Como dissemos, porém,
há outra força que move - no que concerne ao universo da
linguagem - os contos de Mia Couto: trata-se, agora, da ideia de
poder da palavra, que, não raramente, traduz-se numa
tensa relação dialética: a oposição, recorrente em sua ficção,
entre a fala e o silêncio, como se falar e calar
fossem, no final das contas, faces de uma mesma moeda.
Desse modo, mais do
que uma narrativa do falar, seus contos afirmam-se,
muitas vezes, como narrativas do calar, numa profusão de
imagens em que personagens ora estão indiscriminadamente fadadas
ao silêncio ("a mãe era muda, a sua voz esquecera de nascer")
(COUTO, 2009, p. 33), ora demonstram, simplesmente, uma
resignação que, não obstante, manifesta-se, ainda uma vez, pela
ausência da palavra. Neste contexto, há que se observar, está
implicada uma evidente questão de poder: "nos capítulo das
falas, tinha a sua razão: nós, pobres, devíamos alargar a
garganta não para falar, mas para melhor engolir sapos" (COUTO,
2009, p. 34). Mas, inesperadamente, é também no contexto
específico da vinculação entre palavra e poder que
o calar pode até mesmo adquirir um sentido de resistência, como
se constata em "O adiado avô":
"Curioso: um regime inteiro para não deixar nunca o povo falar e
a ele ameaçavam para que não ficasse calado. E aquilo lhe dava
um tal sabor de poder que ele se amarrou no silêncio. E foram
insultos. Foram pancadas. E foi prisão. Ele entre os muitos
cativos por falarem de mais: o único que pagava por não abrir a
boca" (COUTO, 2009, p. 34).
É que em Mia Couto
não surpreende opções feitas pelo calar diante de situações
extremas, ora de risco, ora de desespero ("Prefiro o silêncio,
que condiz melhor com a minha alma") (COUTO, 2009, p. 22),
levando a questão da linguagem a ser colocada no justo entreato
da fala e do silêncio.
Mas a relação da
linguagem com o poder, no escritor moçambicano, não se limita à
tensão acima apontada. Talvez ela se revele (e se resolva)
melhor - podendo, assim, ser mais bem compreendida - no contexto
das relações pós-coloniais. Há, nesse âmbito, uma discussão que,
seguramente, toca em cheio o sentido da linguagem (e, por
extensão, da literatura) nos países africanos independentes:
subverter a linguagem do colonizador, no plano narrativo, como o
faz Mia Couto, é, com efeito, uma atitude revolucionária, para
retomarmos um conceito próprio do contexto da lutas de
libertação colonial, até porque, como registra o próprio
escritor em algumas de suas narrativas, não é possível
desvincular os conceitos de idioma e de poder, que
- no âmbito mais específico da colonização - adquirem um sentido
muito mais denso e complexo do que o habitual. Veja-se, por
exemplo, a passagem em que o pai do protagonista do conto "O
nome gordo de Isadorangela", ao visitar juntamente com o filho,
a casa do presidente da câmara Dr. Osório Caldas e após
sentenciar que "nós, sendo mulatos, tínhamos sorte em receber a
simpatia do chefe", alerta o filho - lançando mão de "um
português que [ele] nunca escutara" -, de forma peremptória e
ameaçadora, para que "puxasse lustro ao [seu] melhor lusitano
idioma" (COUTO, 2009, p. 60/61)
Trata-se,
nesse contexto, da exposição de um embate em que a linguagem
torna-se o elemento diferencial: quem domina o português padrão
- índice e meio de ascensão social - tem o domínio do poder
local; mas é exatamente no domínio desse registro, ao
desvirtualizá-lo, que a liberdade pode ser alcançada e os
índices de poder, invertidos. É o que, em resumo, busca fazer
Mia Couto ao criar uma literatura escrita num idioma que, no
limite, é e não é o português, na medida exata em
que, partindo de um registro padrão do idioma, ataca-o em seu
flanco, a fim de moldá-lo à realidade moçambicana que narra e
pela qual, no final das contas, é igualmente narrado. Assim,
consciente de que linguagem e poder caminham pari passu,
o autor lança mão de uma série de recursos linguísticos que -
por serem próprios de um pensar local, de um modo de ser
moçambicano - interpõe-se nos meandros do embate entre
colonizados e colonizadores, reverberando na própria linguagem.
Já não se trata mais de uma luta física, corpórea, entre polos
de uma mesma lógica historicamente forjada (o colonialismo),
mas de um confronto mais sutil, que se dá no âmbito
discursivo-idiomático: o idioma do colonizador é, desse modo,
transgredido, transformado, rasurado para que, de seus
escombros, outro seja construído, sempre tomando como ponto de
partida uma outra disposição ontológica e social. Essa luta
contra a violência de um idioma único ("Venâncio estava na
violência como quem não sai do seu idioma" (COUTO, 2009, p. 70),
transposto e imposto por elementos exógenos, representa bem o
"projeto" literário de Mia Couto, transgressor consciente do
idioma do colonizador, onde procura inscrever uma marca da
diferença (COUTO, 2014).
Criando assim uma
verdadeira prosa poética, o escritor moçambicano não
apenas revitaliza o português, mas o reinventa. De fato, nas
palavras de Carmen Tindó Secco, Mia Couto, além de reinventar
esse idioma, leva-o, "pela morfologia e sintaxe contaminadas por
construções modificadas pelos falares moçambicanos, a expressar
as marcas multiculturais presentes no imaginário linguístico do
país" (SECCO, 1998, p. 161). Por isso, não é difícil encontrar
em seus contos, uma verdadeira reflexão metalinguística, com
implicações ideológicas várias. É o caso, por exemplo, no conto
"O perfume", de suas Estórias Abensonhadas, de
Glória, que vincula sua histórica condição de dependência
ontológica e social à questão da linguagem: "livre? Era palavra
que parecia de outra língua. Só de a soletrar sentia
vergonha..." (COUTO, 2012, p. 32). Desse modo, entre a
palavra e a coisa que ela representa, há toda uma
história de opressão que marca a vivência da protagonista,
facilmente identificada com a história de opressão do próprio
continente africano, além da opressão de gênero, na medida em
que o poder que o homem detém sobre a mulher não se manifesta
apenas nas relações sociais cotidianas, mas principalmente no
fato de ele, como extensão desse poder autoconferido, tomar para
si a palavra, como se percebe nessa emblemática afirmação da,
sugestivamente, não identificada mulher do régulo de Namarói: "o
que vou contar me foi passado em sonho pelos antepassados. Não
fosse isso nunca eu poderia falar. Sou mulher, preciso
autorização para ter palavra" (COUTO, 2012, p. 115).
Há, finalmente, em
Mia Couto, um aspecto de seu discurso literário que diz respeito
ao mesmo tempo à forma como autor trata a língua e as
discussões em torno da linguagem em seus textos
ficcionais: é a questão da oralidade. A oralidade, em Mia Couto,
está diretamente vinculada ao conto, gênero que elegemos
aqui como objeto de análise dentro de sua diversificada produção
ficcional. De fato, como afirma Ítalo Ogliari, o conto, enquanto
arte de narrar, pode ser considerado "o gênero mais
antigo de todos, originado da fábula, da oralidade, do
simples ato de reunir as pessoas e de contar algo" (OGLIARI,
2012, p. 61, grifo meu).
A presença intensa da
oralidade pode ser constatada na maioria dos contos de Mia
Couto. Afirmando possuir, sua literatura, um compromisso com
histórica real, Hélio Rodrigues Júnior destaca, contudo, o uso
de marcas oralizantes na narrativa coutiana, "subvertendo
de modo intencional e esclarecido a língua portuguesa,
servindo-se dela como instrumento para alcançar o objetivo de
exprimir a sua sensibilidade com que apreende o sentir e a
vivência moçambicana" (JÚNIOR, 2013, p. 19). É, portanto,
na questão da oralidade que Mia Couto encontra o verdadeiro
equilíbrio entre língua e linguagem em sua produção ficcional,
na medida em que ela tanto diz respeito ao modo como uma
articulação frásica e/ou uma configuração gramatical é
elaborada/utilizada (língua) quanto se refere à escolha feita
pelo autor de um determinado registro linguístico, o que, no
caso específico do texto literário, pressupõe uma opção
ideológica (linguagem). Com efeito, ao buscar um ponto de
equilíbrio de sua narrativa por meio do recurso da oralidade,
Mia Couto não apenas revela a importância dos falares locais,
mas também denuncia a cultura grafocêntrica representada por um
português depurado pelas elites colonizadoras. Essa é, por
exemplo, a denúncia que o autor faz ao afirmar que
"a mais importante linha divisória em Moçambique não é tanto a
fronteira que separa analfabetos e alfabetizados, mas a
fronteira entre a lógica da escrita e a lógica da oralidade. A
maioria absoluta dos 20 milhões de moçambicanos vive e funciona
num tipo de racionalidade que tem pouco a ver com o universo
urbano. Mas em Moçambique, como no resto do mundo, a lógica da
escrita instalou-se com absoluta hegemonia"
(COUTO, 2011, p. 102).
Desse modo, essa
"cultura que sobrevive à margem da escrita" (COUTO, 2011, p.
180), que é a oralidade, é um dos fundamentos estéticos - e,
nesse caso, também políticos - da prosa de ficção de Mia Couto.
Faz parte desse universo mítico e diversificado que encontramos
em sua literatura, quase sempre vinculado à noção de
moçambicanidade a que já nos referimos e como reitera, ainda uma
vez, Pires Laranjeira, para quem suas narrativas “colocam em
situação de exposição, confronto e análise as várias culturas
e crenças do homem moçambicano” (LARANJEIRA, 1995, p. 312).
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Considerações finais
Tudo
o que aqui expusemos tem relação direta, como estamos
salientando desde o início, com a perspectiva pós-colonial,
presente nas linhas e nas entrelinhas do tecido narrativo de Mia
Couto. Realizando um estudo comparativo entre a ficção de Milton
Hatoum e de Mia Couto, por exemplo, Vera Maquêa destaca
precisamente o caráter poético da escrita deste último, fazendo
ainda considerações sobre seu vínculo com questões históricas
próprias da realidade de Moçambique nos seguintes termos:
“falar a língua do colonizador e dizer a sua própria sempre se
constituiu no grande desafio para a formação das literaturas
nacionais, mas foi ao mesmo tempo a condenação e a redenção dos
países colonizados pela Europa portuguesa [...] a força da
escrita de Mia Couto, que a torna tonicamente singular, é a
perfeita conjunção entre o conteúdo humano expresso e a
percepção da língua que se junta à experiência histórica. A
diversidade cultura e linguística existente em Moçambique,
implicando variações no próprio português, convida a literatura
– ou a provoca – a discutir a dimensão política do convívio com
o múltiplo” (MAQUÊA, 2008, p. 169).
É
exatamente dessa dimensão política de sua escrita que estamos
falando quando a vinculamos ao universo teórico do
pós-colonialismo. Por isso insistimos: em Mia Couto, a questão
linguística relaciona-se diretamente a um complexo processo de
construção identitária, já que é por meio desse substrato
linguístico - que envolve, a um só tempo, as noções fluidas de
língua materna, de língua de cultura, de língua transplantada
etc. - que as identidades se perfazem no contexto histórico de
Moçambique, em particular, e da África lusófona, em geral. Nesse
sentido, o trabalho minucioso e criativo de reconstrução
estética do padrão linguístico do português moçambicano
passa necessariamente pelo reconhecimento dos limites e das
potencialidades da linguagem, encontrando seu sentido maior na
necessidade de, por meio da criação linguística, re-criar
identidades sequestradas por um longo, avassalador e cruel
processo de colonização.
Criar uma
palavra nova, nesse sentido, não deve ser visto apenar como um
ingênuo exercício de criação neológica, desvinculado de outras
práticas histórica e ideologicamente construídas, mas como um
ato consciente de transformação de uma realidade local que
responde - simbólica e factualmente - aos anseios de um povo em
se ver representado também em sua maneira de interpretar o mundo
à sua volta e se expressar.
Não existe imunidade
cultural, já afirmou uma vez Marc Augé, ao estudar, pela
perspectiva da cultura, a relação entre indivíduo e
sociedade (AUGÉ, 1996); do mesmo modo e com maior razão,
diríamos nós, não existe imunidade histórica: a história só se
justifica plenamente quando incorpora em sua prática (ou em uma
epistemologia, metodologia, axiologia etc.) o humano, sem o qual
perde seu sentido. Reconstruir a linguagem a partir das
injunções históricas determinadas pelo processo colonizador é
incorporar o humano na história, tornando, pela assunção de uma
linguagem que o identifica e com o qual ele se
identifica, o sujeito de sua própria história ou, em termos de
criação literária, proposto por Mia Couto, de sua própria
estória.
Para Mia Couto, o
processo de colonização não apenas impõe ao colonizado um
outro modo de falar - vale dizer, de utilizar-se da
linguagem verbal, ideia que, neste contexto, corresponde a uma
outra língua -, mas atua também no sentido de sequestrar
ao colonizado a possibilidade e o direito de narrar, de contar
histórias, as suas histórias: "o mesmo processo que
empobreceu o meu continente está, afinal, castrando a nossa
condição comum e universal de criadores de histórias" (COUTO,
2011, p. 13). Instaura-se, assim, no continente africano como na
literatura ali produzida - em especial, na produção ficcional de
Mia Couto - uma constante luta para que a palavra não se torne,
no final, apenas um longo e inextricável silêncio.
Portanto, a questão
da linguagem, em Mia Couto, guarda em si mesma, como vimos
antes, um complexo vínculo com o poder, no contexto
pós-colonial; e com a manutenção - mesmo após o período
revolucionário - de uma colonização de fato, a situação
torna-se ainda mais complicada, já que, mesmo depois da
independência, sempre sobram os resquícios, sejam eles materiais
(a própria língua portuguesa), sejam eles ideológicos (o poder
que o domínio dessa língua representa). Trata-se, aliás, de um
domínio que, no âmbito do imaginário popular, ultrapassa os
próprios limites terrenos da realidade, interferindo no âmbito
metafísico da religião. É por isso que, ao questionar a forma
como se devia dar a entrada no céu, o narrador do conto
homônimo afirma:
"Depois veja: eu não falo inglês. Mesmo em português, eu só
rabisco fora da cartilha. Já estou a ver lá o letreiro, ao jeito
dos filmes: welcome to paradise! E não mais saberei ler. Bem
poderão me conceder a palavra. É como dar um alto-falante a um
mudo" (COUTO, 2009, p. 78).
Conceder a palavra,
na situação explicitada, torna-se inócuo, pois se trata de uma
concessão pro forma, feita apenas para cumprir regras e
protocolos, uma vez que de nada adianta oferecer um instrumento
sem que lhe seja oferecidas também as condições para utilizá-lo.
Língua transplantada, no contexto da colonização, o português
revela-se, assim, um idioma artificial, mais um instrumento de
exclusão do que uma maneira de ingresso no mundo dos direitos,
distorção que só poderia ser corrigida por meio de uma efetiva
política linguística. Na literatura, pelo menos, Mia Couto
desfaz essa distorção por meio de um "idioma" que, efetivamente,
resgata não apenas o modo de falar do homem moçambicano, mas
principalmente seu modo de ser: sua cultura, sua personalidade,
sua religião. Torna, assim, o seu "rabisco fora da cartilha" num
riscado dentro da existência...
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Doutor e Mestre em Letras (USP). Pós-doutor em
Literatura Brasileira (USP). Professor e pesquisador do Programa
de Mestrado e Doutorado em Educação e da graduação em Educação
da Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Líder de pesquisa do
grupo Literatura e Razões Literárias (UNINOVE/CNPq). Membro do
Comitê Científico Multidisciplinar da Universidade Nove de Julho
(UNINOVE). Pesquisador do Centro Interdisciplinar de Ciência,
Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL).
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