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MAURÍCIO SILVA &
MÁRCIA FUSARO
Organizadores
MIA COUTO
Uma literatura entre palavras
e encantamentos
São Paulo, 2011
ÍNDICE
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A mulher nos
contos de Mia Couto: uma leitura pós-colonial
MÁRCIA
MOREIRA PEREIRA
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“Nós, mulheres, estamos sempre sob a
sombra da lâmina:
impedidas de viver enquanto novas;
acusadas de não morrer quando já velhas.”
(Mia Couto
in A varanda de Frangipani)
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Nem todos sabem, mas no continente
africano há cinco países que falam oficialmente a língua
portuguesa; e o mais "curioso" é que a literatura desses países
recebeu fortes influências da literatura brasileira, seja no
prosa engajada de um Manuel Ferreira, em Cabo Verde, que de
certo modo inspirou-se em nossos autores da década de 30/40,
seja na narrativa crítica de um Abdulai Sila, de Guiné-Bissau,
retratando, como nossos contemporâneos, as injustiças sociais e
indiferença do poder público em seu país. Contudo, foi somente a
partir da década de 80 que essas literaturas tiveram
visibilidade por aqui, e hoje os estudos acerca da literatura
africana lusófona têm crescido consideravelmente no Brasil, com
a presença de grupos de estudos, pesquisadores, publicações e
teses universitárias. Autores premiados e reconhecidos
internacionalmente, como o angolano Ondjaki, por exemplo, tomam
cada vez mais espaços nas prateleiras de nossas livrarias e
ganham a simpatia de leitores e a aprovação da crítica.
Como toda literatura, a literatura africana lusófona
também pode ser dividida, numa perspectiva didática, de acordo
com uma periodização, retratando, de certo modo, momentos da
história desses países, uma história marcada pela fragmentação
que resultou de um longo processo de colonização. Neste
artigo, contudo, faremos um recorte metodológico mais preciso:
abordaremos alguns aspectos da literatura de Moçambique,
estudados mais especificamente na obra de Mia Couto -
abordaremos, assim, a questão feminina e a
pós-colonialidade em dois de seus contos: "O perfume" (Estórias
Abensonhadas, 2012) e "O cesto" (O fios das
missangas, 2009).
A literatura moçambicana de expressão portuguesa se inicia, por
assim dizer, por volta de 1920, com uma fase de formação,
momento em que a mestiçagem cultural
(africanos e portugueses) prevalece e os autores procuraram
representar uma cultura africana autóctone também no que compete
à literatura. A fase seguinte é marcada pela motivação política,
contrariando as vontades do colonizador europeu, momento de
forte predominância da poesia. Neste período, o escritor assume
uma perspectiva mais crítica em relação à realidade à sua volta,
reconhecendo sua identidade e retratado seu estranhamento com as
imposições coloniais, como é possível perceber na produção
poética de Rui Knopfli. As décadas de 60 a 80 são marcadas por
movimentos revolucionários voltados à luta pela independência do
país, e a literatura não fica indiferente a esse fato: essa
fase revolucionária, em que desponta forte sentimento
nacionalista, tem como princípio uma ideologia de natureza
político-social, como nomes como o de Luís Bernardo Honwana
(autor do célebre Nós matamos o cão tinhoso, 1964). Após
a década de 80, Moçambique, já independente, apresenta uma prosa
e uma poesia já plenamente autônomas, destacando-se, por
exemplo, autores do porte de José Craveirinha, cuja produção,
mesclando temáticas da dominação colonial e um lirismo amoroso
ou irônico, "acaba por forjar textos que têm
marcas épicas, que funcionam com relatos concentrados ou alusões
à gesta do povo de Moçambique". (LARANJEIRA,
1995, p. 25). Finalmente, há ainda uma Fase da literatura
contemporânea, datada da década 90 até os dias de hoje,
"fase de uma prosa mais intimista, com valorização da literatura
popular e, ao mesmo tempo, a superação da perspectiva
político-ideológica" (SILVA, 2009, p. 19), que tem na figura de
Mia Couto um de seus principais representantes.
Com efeito, um dos autores mais celebrados da literatura
moçambicana e da produção literária em língua portuguesa, de
modo geral, Mia Couto costuma ser comparado a outro grande autor
do mesmo idioma, o escritor brasileiro João Guimarães Rosa,
tanto por se aproximar do fatos do cotidiano local, quanto pela
criatividade de sua escrita, numa constante criação de novas
palavras. A vida do povo moçambicano e sua cultura de modo geral
estão representadas em sua extensa obra ficcional, onde não
faltam o humor e o trágico, a incorporação da linguagem
cotidiana, a inclusão do fantástico e do imaginário, tudo
veiculado por meio de uma escrita em que se destaca um intenso
trabalho de criatividade linguística (SILVA, 2009).
Mia Couto estreou na literatura com o livro de poesia
Raiz de Orvalho (1983), para logo passar aos dois gêneros
ficcionais que o consagraram: o conto, com obras como
Vozes Anoitecidas (1986), Cada Homem é
uma Raça (1990), Estórias Abensonhadas (1994),
Contos do Nascer da Terra (1997), Na Berma de Nenhuma
Estrada (1999), O Fio das Missangas (2003); e o romance, com
Terra Sonâmbula (1992), A Varanda do Frangipani
(1996), O Último Voo do Flamingo (2000), Um Rio
Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra (2002), O Outro Pé
da Sereia (2006), Venenos de Deus, Remédios do Diabo
(2008); A confisão da Leoa (2012) etc. Publicou ainda,
sob a forma de antologias, algumas de suas principais crônicas,
como Cronicando (2003),
O País do Queixa Andar (2003),
Pensatempos (2005), E se Obama fosse Africano? (2009).
Tendo participado ativamente da luta política em
Moçambique, viu de perto as mazelas de seu povo passava e as
integrou em sua obra, buscando, por meio de uma prosa carregada
de poeticidade, retratar a voz, os sonhos e a angústia dos
esquecidos pela história. Quando questionado certa vez sobre sua
escrita, o autor afirmou: “minha literatura é antes de tudo
política”. Sobre a multiplicidade de sua literatura, completou:
“há este mosaico, não tanto de raças, mas de culturas, das
culturas que estão a marcar parte de uma coisa que e ainda só um
projeto: a moçambicanidade”.
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A mulher e os estudos
pós-coloniais
Quando analisamos mais detidamente a produção ficcional
de Mia Couto, percebemos, entre outras coisas, uma ênfase na
afirmação da moçambicanidade, ou seja, uma validação da
cultura local e de uma configuração identitária de Moçambique,
presente em sua na literatura. Esse fato vem ao encontro da
teoria proposta pelos estudos pós-coloniais que, segundo Mata
(2008, p. 9), pressupõe
“uma nova visão da sociedade que reflecte sobre a sua própria
condição periférica, tanto a nível estrutural como conjuntural.
Não tendo o termo necessariamente a ver com a linearidade do
tempo cronológico, embora dele decorra, pode entender-se o
pós-colonial no sentido de uma temporalidade que agencia a sua
existência após um processo de descolonização”.
De fato, para Costa (2006, p. 121), que procura associar
o pós-colonial com o conceito de modernidade,
“a releitura
pós-colonial da história moderna busca reinserir, reinscrever o
colonizado na modernidade, não como o outro do Ocidente,
sinônimo do atraso, do tradicional, da falta, mas como parte
constitutiva essencial daquilo que foi construído,
discursivamente como moderno.” (2006, p. 121)
Em resumo, o pós-colonialismo, de modo geral,
é um conjunto de teorias que analisa as
implicações políticas, filosóficas, culturais e literárias
deixadas pelos colonizadores nos locais que colonizaram,
adotando em relação a elas uma perspectiva crítica e
contra elas uma prática combativa.
É possível considerar, portanto, que uma
literatura pós-colonial privilegia a cultura de todos
aqueles que foram colonizados pelas potências europeias,
sujeitos que, de certo modo, encontram-se à margem das
sociedades modernas: o negro, o colonizado, a mulher, o
homossexual etc. Ainda no
tocante à literatura, o pós-colonialismo considera que
o autor colonizado - e sua literatura
- deixar de ser um mero objeto da cultura do colonizado e passa
a ter voz, retratando seu povo, sua terra e sua cultura e
tornando-se, assim, o sujeito de sua própria história:
“O ponto da partida desse protocolo de transmissão de ‘conteúdos
históricos’ é a ideia de que o autor – em pleno domínio e
responsabilidade sobre o que diz, ou faz as suas personagens
dizerem – psicografa os anseios e demônios de sua época, dando
voz àqueles que se colocam, ou são colocados, à margem da ‘voz
oficial’: daí poder pensar-se que o indizível de uma época só
encontra lugar na literatura” (MATA, 2008 p. 02).
Durante o processo de colonização, muitos foram os que
tiveram sua cultura apagada e sua identidade ignorada, dentre os
quais destaca-se a mulher, figura muitas vezes subjugada a uma
cultura machista, na qual sua voz não tem valor. Considerando
que a literatura atua, também, como reflexo de relações sociais,
não são poucas as vezes em que apresenta - de modo crítico ou
não - um perfil estereotipado da mulher; porém, determinados
autores, segundo a teoria do pós-colonialismo, mostram esse
olhar como forma de denúncia e combate aos estereótipos impostos
pela sociedade colonizada.
Nas literaturas africanas de expressão
portuguesa, a representação da mulher está, historicamente,
relacionada a questões ligadas à tradição local. Uma imagem
frequente da mulher na literatura moçambicana, por exemplo, é a
da mulher que sustenta e apoia a família - uma imagem que pode
representar a fortaleza feminina -, mas também a da mulher
objeto. Os autores pós-coloniais, em geral, buscam, em certo
sentido, combater semelhante visão: a mulher - outrora
colonizada, mas agora livre - passa a ser representada como
alguém que começa a “sentir a terra”, livre de tabus e de
imposições, uma mulher que, embora continue a ser identificada
como progenitora (mãe, esposa), em parte liberta-se de
imposições masculinas e assume um papel de sujeito na sociedade
pós-colonial.
O conceito de moçambicanidade, ao qual já nos
referimos, articula-se com esse contexto de afirmação
identitária, re-reconhecendo e re-significando a tradição
nativa, livre de interferências europeias e, portanto,
consolidando um complexo processo de afirmação dos costumes, da
língua, das tradições, da cultura de Moçambique. Mia Couto
abarca, em sua escrita, algumas dessas questões, revelando o
mosaico cultural moçambicano e, especialmente, desvelando a
figura feminina dentro dessa complexidade pós-colonial.
Um aspecto marcante de sua literatura é, por exemplo, a
presença do eu lírico feminino: em muitos de seus contos,
é a voz da mulher que assume as rédeas do discurso, revelando a
"alma feminina" m profundidade, como suas angústias, seus
anseios e sonhos, bem de acordo com a perspectiva
pós-colonialista, que, no limite, busca combater tanto o
machismo quanto o colonialismo presente nos discursos ocidentais
hegemônicos:
“ainda que por vezes o pensamento
machista e o colonialista se choquem ou se confrontem, o fato é
que a mulher acaba sendo a minoria, excluída tanto em
termo políticos quanto sexistas. A constatação de tal condição
acabou gerando inclusive um termo para designar esse ser
duplamente excluído – a mulher do terceiro mundo” (ALVES, 2014,
p. 09)
Na literatura "política" de Mia Couto, de um lado, a
representação da figura feminina pode ser interpretada como o
ponto de partida para uma sistemática denúncia de sua condição
degradante, além de, por outro lado, emergir como sujeito de sua
própria história, capaz de se libertar do julgo colonial e
machista da sociedade em que está inserida.
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A mulher nos contos
de Mia Couto
O conto "O perfume" (Estórias Abensonhadas),
narrado em terceira pessoa, descreve um convite do marido à
esposa, chamando-a para ir ao baile e presenteando-a, o que lhe
causa certo estranhamento, pois seu marido nunca lhe dera nada,
sempre a escondendo, por ciúme ou machismo. Por isso, Glória,
tão acostumada à servidão cotidiana, não consegue acreditar
quando o marido a convida para irem ao baile, afinal, como
afirma o narrador, “entre marido e mulher o tempo metera a
colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos
cansaços, desnamoros, ramerrames” (COUTO, 2012, p. 31). Embora
Glória nem sequer soubesse o significado da palavra liberdade,
pois não a sentia de fato, aceitou facilmente o convite - não
sem certo receio, é verdade - e acabou indo ao baile. Impõe-se,
desde o início, uma das questões centrais nos contos de Mia
Couto: a questão da liberdade. Segundo Tatiana Alves, em análise
do conto "A saia almarrotada", de O fio das missangas,
onde a descoberta da liberdade e a condição feminina
assemelha-se ao conto aqui analisado,
“nota-se que a atitude da personagem é decorrente de uma criação
em que as noções de prazer e vergonha se (con)fundem,
conferindo-lhe uma culpa associada ao pudor, algo frequente e
convenientemente alimentada pela sociedade patriarcal” (ALVES,
2014, p. 3).
No conto em questão, percebemos que Glória, ao afirmar
que “nunca soube o que é isso de liberdade” (COUTO, 2012, p.
31), revela uma vida que se aproxima da não-existência,
além de tocar em outro ponto sensível ao autor: o solapamento
vivido pela mulher no casamento, já que ela se vê privada de sua
vaidade pessoal e torna-se objeto das vontades do marido,
situação típica de uma sociedade patriarcal.
Enquanto se arruma, Glória encontra um frasco de perfume
que ganhara de Justino ainda menina, único presente dado pelo
marido até então; ao abrir o frasco, percebe que, com o tempo, o
líquido havia evaporado, assim como o amor: “perfumei o quê com
isso, se perguntou lançando o frasco no vazio da janela. – Nem
sei o gosto de um cheiro” (COUTO, 2012, p. 32). O perfume que
Glória ganhara no início do namoro nunca “perfumou” a relação, e
agora lá estava ela num casamento sem amor, sem sentido, sem
cheiro: “Nem sei o gosto de um cheiro” (COUTO, 2012, p. 32).
O desgosto da esposa demonstra sua condição feminina numa
sociedade machista, sendo seu marido, Justino, o único capaz de
devolver a "alegria" e motivação de viver. Até aquele momento,
ela ainda não havia sentido o perfume da liberdade...
Justino incentivara a mulher a se arrumar, a se enfeitar,
a se pintar e a se perfumar. No baile, Glória desconfia do fato
de o marido, sempre ciumento, a deixar livre, permitindo
inclusive que ela dançasse com outros homens: "Vá, Glorinha, se
divirta!” (COUTO, 2012, p. 33). Mas a surpresa vem em seguida:
aquele baile e aquela dança, que podem representar o início de
sua liberdade e alegria, traria algo incomum à vida do casal,
pois, na verdade, significava seu abandono: “o baile, aquele
convite, eram uma despedida. Seu peito confirmou a suspeita
quando viu o marido se levantar e apontar a saída” (COUTO, 2012,
p. 34). Com efeito, Justino levanta-se e vai embora, deixando-a
“livre” no baile. Ao voltar para casa, sozinha, Glória tira os
sapatos antes de entrar em casa e sente a carícia da areia
quente, fato que lhe confere uma verdadeira sensação de
liberdade, o que, simbolicamente, pode representar a afirmação
de uma identidade feminina; a terra em que pisa, por sua vez,
representaria, nesse sentido, a liberdade conferida ao
ex-colonizado - de fato, embora muitas vezes o colonizado possa
até se habituar a sua condição de dominado, acaba, cedo ou
tarde, a se revoltar contra ela (MEMMI, 2007).
Glória, ao retornar para casa, adormeceu nos degraus de
entrada e, ao acordar nas primeiras horas da manhã, sente o odor
de perfume. Acreditando ser Justino que retornava, corre,
sobressaltada, para dentro de casa: "Foi quando pisou os vidros,
estilhaçados no sopé de sua janela. Ainda hoje restam, no soalho
da sala, indeléveis pegadas de quando Glória estreou o sangue de
sua felicidade” (COUTO, 2012, p. 35). A liberdade, de fato,
estreia-se com sangue: as marcas de sangue representam a
afirmação identitária de Glória, mas também sua liberdade, tal
como ocorrera com as ex-colônias, só libertadas à custa de muito
sangue e luta.
É ainda, mais uma vez, Tatiana Alves quem relaciona a
condição feminina à das lutas de libertação, no contexto do
pós-colonialismo:
"A narrativa, ao abordar a temática da opressão feminina, acaba
por tocar também na questão do colonialismo, suscitando uma
reflexão acerca do processo de dominação. A escrita
pós-colonial, ao pensar a questão, acaba por aproximar o
feminismo do pós-colonialismo, uma vez que ambos repensam as
estruturas do poder, e analisam a questão opressor/oprimido. Os
estudos pós-coloniais têm como tônica o fato de privilegiarem os
mais fracos e, nesse processo, os segmentos marginalizados
ganham expressão, em narrativas que dão vez/voz a camadas desde
sempre excluídas, possibilitando uma reflexão sobre aspectos
como feminismo, etnia, ou cultura. No caso da mulher africana,
ela acaba por ser duplamente oprimida: pelo colonizador, e
muitas vezes pelo próprio homem africano” (ALVES, 2014, p. 8).
O conto "O cesto" (O fio das missangas) é
narrado em primeira pessoa por uma mulher que, pela "milésima"
vez, se prepara para ir visitar o marido no hospital. Assim como
no conto "O perfume", a esposa se encontra em grande estado de
desânimo: “há muito tempo não me detenho no espelho. Sei que, se
me olhar, não reconhecerei os olhos que me olham” (COUTO, 2012,
p. 21). Em seus relatos, a personagem relata o desejo de obter
logo sua liberdade, já que, por enquanto, sua vida se resume em
cuidar diariamente do marido doente e hospitalizado: “vivo num
rio sem fundo, meu pés de noite se levantam da cama e vagueiam
para fora do meu corpo" (COUTO, 2012, p. 21).
Mas por mais que ela desejasse sua liberdade, ainda estava presa
às juras de casamento, sobretudo em se tratando - como é o caso
- de uma sociedade patriarcal, em que a mulher encontra-se quase
sempre sob o julgo do marido. A esposa nem lamenta mais o fato
de o marido não poder falar, de não haver mais diálogos entre
eles, afinal isso também representa sua liberdade, já que ela
não é mais corrigida e nem humilhada: “já não recebo enxovalho,
ordem de calar, de abafar o riso” (COUTO, 2006, p. 22).
A narradora é consciente de sua condição submissa, mas
expressa suas vontades e descobertas, chegando, muitas vezes, a
denunciar o silenciamento da dominação em relação à figura
feminina. A mulher continua se descobrindo, apesar da opressão
vivida por ela:
“estou de saída, para minha rotina de visitadora, quando, de
passagem pelo corredor, reparo que o pano que cobria o espelho
havia tombado. Sem querer, noto o meu reflexo. Recuo dois passos
e me contemplo como nunca antes o fizera. E descubro a curva do
corpo, o meu busto ainda hasteado. Toco o rosto, beijo os dedos,
fosse eu outra, antiga e súbita amante de mim. O cesto cai-me da
mão, como se tivesse ganhando alma” (COUTO, 2012, p. 23).
O cesto em que que carrega o alimento para o marido é,
como ela, um objeto - sua identidade só se manifestava
plenamente quando ela era útil ao marido, assim como o próprio
cesto. Ao se olhar no espelho, algo que ela evitara por muito
tempo, sua imagem refletida a fez perceber que ela ainda
existia, fazendo-a reviver emoções e sensações que estavam
ocultas em razão de sua submissão feminina - ela era, afinal de
contas, sujeito. Diante de sua alegria ao se encontrar
consigo mesma, refletida no espelho, o cesto cai-lhe das mãos,
deixando-lhe de ser útil e passando a ser mais um objeto comum,
descartável. Ao se livrar do cesto, sua identidade feminina
aflora, recuperando seu amor próprio, momento em que ela passa a
desejar a morte do marido, afim de usufruir completamente de sua
liberdade e de sua condição feminina. Desejando a morte do
marido, a protagonista espanta-se com tamanha ousadia, mas na
sequência reflete:
“o espelho devolve a minha antiguíssima vaidade de mulher, essa
que nasceu antes de mim e a que eu nunca pude pude dar brilho.
Nunca antes eu tinha sido bela. No instante, confirmo: o luto em
vai bem com meus olhos escuros. Agora, reparo: afinal, nem
envelheci. Envelhecer é ser tomado pelo tempo, um modo de ser
dono do corpo. E eu nunca amei o suficiente. Como a pedra, que
não tem espera nem esperada, fiquei sem idade” (COUTO, 2012, p.
23).
É importante enfatizar, nesta última passagem, a
perspectiva pós-colonial, que procura deslocar o olhar das
abordagens hegemônicas para as periféricas, valorizando aspectos
pouco considerados naquelas (minorias, cultura, linguagem,
identidade etc.), aspectos que podemos considerar como sendo de
fronteira. Como afirma, nesse mesmo sentido, GARCIA
(2012, p. 172), “Mia Couto constrói personagens que transitam
entre fronteiras, buscando adaptar-se às vivências quotidianas,
como ele mesmo, também ‘ser’ de fronteiras, admite fazer em seu
dia a dia”. Após assumir que deseja a morte do marido, a esposa
vai para a última visita, sentindo, no caminho, a liberdade
próxima - a liberdade ao tomar a rua, como nunca havia sentido
antes. Mais uma vez cabe aqui a comparação com o sujeito
colonizado que, ao tomar consciência de sua liberdade,
também vai pode sentir sua terra, o aroma das árvores de seu
lugar, seu espaço pleno. Como o sujeito colonizado, contudo, há
uma auto-opressão psicológica que atua no sentido inverso à
busca da liberdade: acostumada a obedecer as regras impostas por
uma sociedade patriarcal, a protagonista sente culpa ao
descobrir que seu marido falecera; a repressão vivida pela
esposa por toda vida a impede de viver e aproveitar sua
liberdade, agora com o marido morto, numa passagem emblemática:
“saio do hospital à espera de ser tomada por essa nova mulher
que me mim se anunciava. Ao contrário de uma alívios, porém, me
acontece o desabar do relâmpago sem chão onde tombar [...] Na
sala, corrijo o espelho, tapando-o com lençóis, enquanto vou
decepando às tiras o vestido escuro. Amanhã, tenho que me
lembrar para não preparar o cesto da visita” (COUTO, 2012, p.
24).
A mulher, na sociedade pós-colonial, tão habituada a
obedecer, sente-se sem rumo ao perceber que agora ela é a dona
de sua própria liberdade. Simbolicamente, o vestido preto tão
aguardado para ser estreado é rasgado, numa metáfora sugestiva,
já que essa peça de roupa representava, no conto, por meio da
simbologia da feminilidade/vaidade feminina, sua liberdade.
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Considerações finais
Vimos, neste estudo dos contos de Mia Couto, o quanto a
voz feminina torna-se, por meio dos artifícios literários, forte
e consistente, apesar de tanta opressão, mas também o quanto
ainda falta para que se afirme plenamente como uma voz da
liberdade. Para BONNICI (2005, p. 9), “a escrita pós-colonial é
a principal estratégia da mímica contra o colonizador porque
devido à sua visão dupla, a revelação da ambivalência do
discurso colonial subverte a autoridade desse mesmo discurso”.
Não há dúvida de que a escrita miacoutiana se insere nesse
conceito: pelas breves análises que fizemos de dois de seus
contos, nota-se que suas protagonistas são mulheres presas à
cultura patriarcal, às amarras do colonialismo e a seus próprios
medos. Afinal, o que fazer quando se vive, o tempo todo, em
opressão e submissão total e, repentinamente, chega a tão
esperada liberdade?
Nos dois contos analisados, as personagens discutem sua
condição feminina e o seu desenraizamento: uma é abandonada e
assume sua condição de mulher livre; outra abandona, mas não
consegue se libertar das amarras morais presentes em sua vida
durante tanto tempo, recusando, assim, sua própria liberdade,
por não saber o que fazer com ela. Se o objetivo do autor,
inseridondo-se no universo de literatura pós-colonial, é ora
denunciar, ora promover a liberdade, temos, nos contos em
questão, os dois exemplos: um de libertação, seja ela colonial
ou matrimonial; outro de conscientização, por meio da qual
mostra-se possível alcançar a liberdade, embora com dificuldades
em aceitá-la. Reforçamos, portanto, que a mulher representada
nos contos pode ser compreendida não apenas como figura submissa
e incapaz, mas como sujeito de sua própria história, que, ao
tomar consciência de sua condição pessoal e social, finalmente,
liberta-se.
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Referências
bibliográficas
ALVES, Tatiana. "O
feminino em Mia Couto". Cronópios, Ano 8, s.p.
http://cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=4118
(Consultado em 12/02/2014)
BONNICI, Thomas.
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2005.
COUTO, Mia. "Entrevista".
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_____. O fios das
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Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das
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Doutoranda em Letras pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Mestre em Educação pela Universidade Nove de Julho
(UNINOVE). Especialista em Tradução – Português/Inglês
(UNINOVE). Membro da Associação dos professores de Língua
Portuguesa e Literatura (APLL). Professora e pesquisadora da
Universidade Nove de Julho (UNINOVE). |
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