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MAURÍCIO SILVA &
MÁRCIA FUSARO
Organizadores
MIA COUTO
Uma literatura entre palavras
e encantamentos
São Paulo, 2011
ÍNDICE
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Literatura e
ciência em Mia Couto
MÁRCIA FUSARO*
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Sou escritor e
cientista. Vejo as duas actividades,
a escrita e a ciência, como sendo vizinhas e complementares.
A ciência vive da inquietação, do desejo de conhecer
para além dos limites. A escrita é uma falsa quietude,
a capacidade de sentir sem limites. Ambas resultam
da recusa das fronteiras, ambas são um passo sonhado
para lá do horizonte. A Biologia para mim não é tanto
uma disciplina científica mas uma história de encantar,
a história da mais antiga epopeia que é a Vida.
É isso que eu peço à ciência: que me faça apaixonar.
É o mesmo que eu peço à literatura.
(Uma palavra de
conselho e um conselho sem palavras - Mia Couto)
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Introdução
Para falar de literatura e ciência na obra de
Mia Couto recorro, de saída, à lembrança de outros grandes
pensadores igualmente tocados pela busca da harmonia e dos
encantamentos entre arte e ciência.
Richard Feynman, Nobel de Física de 1965, teve uma
carreira brilhante e destacou-se ao desafiar, por meio de seu
olhar crítico-criativo, o status quo da NASA, quando foi
membro da comissão presidencial que investigou os motivos que
levaram à explosão da nave espacial Challenger, em 1986. Dono de
uma personalidade marcante e inspiradora, segundo aqueles que o
conheceram de perto, Feynman tocava bongô e era sensível
admirador de arte e cultura. Quanto mais exótico o contexto
artístico e cultural, mais este o atraía. Por isso, inclusive,
tornou-se amigo do Brasil, que chegou a visitar e onde passou a
admirar a excentricidade do samba e do Carnaval. Há um capítulo
delicioso sobre essa história no livro O senhor está
brincando, Sr. Feynman! (2006). Outro de seus interesses
artísticos foi o desenho. Reproduzo aqui uma de suas falas, com
destaque ao motivo que o levou a se interessar por essa arte,
não muito diferente do interesse que vemos em Mia Couto e em
outros cientistas-artistas-pensadores:
"Eu queria muito aprender a desenhar, por uma razão que eu
guardava comigo: eu queria transmitir a emoção que sinto sobre a
beleza do mundo. É difícil descrevê-la, por ser uma emoção.
[...] É uma apreciação da beleza matemática da natureza, de como
ela funciona por dentro; uma percepção de que os fenômenos que
vemos resultam da complexidade dos mecanismos internos que
envolvem os átomos; uma sensação do quão dramático e maravilhoso
isto é. É uma sensação de reverência – reverência científica -,
a qual eu sentia que poderia ser comunicada por meio de um
desenho a alguém que também tivesse sentido essa emoção"
(FEYNMAN, 2006, p.256).
David Bohm, físico quântico que trabalhou com Einstein,
na Universidade de Princeton, após a Segunda Guerra Mundial,
lecionou na Universidade de São Paulo, na década de 50, quando
veio para o Brasil fugindo das perseguições do macartismo
(FREIRE, PATY e BARROS, s/d). Para viabilizar sua vinda para a
USP, contou com o amigo Albert Einstein, que escreveu para
Abrahão de Moraes, então Chefe do Departamento de Física da USP,
para o Presidente Getúlio Vargas e para o Governador do Estado,
Lucas Nogueira Garcez. Contou também com o empenho do físico
brasileiro Mário Schenberg, na época Catedrático de Mecânica
Racional e Celeste, além da colaboração de José Leite Lopes e
Jaime Tiomno, atuantes em Princeton, naquele período. Na USP,
foi nomeado Professor da Cátedra de Física Teórica e Física
Matemática, chegando ao Brasil em outubro de 1951 e permanecendo
até janeiro de 1955.
Bohm também trouxe à baila, finamente, a possibilidade de
um diálogo entre a arte e a ciência, propondo como pontos em
comum às duas áreas o uso da criatividade, a busca de uma
verdade e o desejo essencial da harmonia estética. Segundo ele,
tanto o artista, quanto o músico, o arquiteto e o cientista, por
exemplo, sentem uma necessidade fundamental de descobrir e criar
algo novo que se constitua em uma totalidade, em algo belo e
harmonioso. Grande parte dos cientistas parece sentir que as
leis do universo possuem, em sua essência, uma espécie de beleza
bastante significativa, sugerindo que, intimamente, esses
pesquisadores não o veem como mero mecanismo. Segundo o físico,
portanto, uma das ligações possíveis entre a arte e a ciência,
seria essa orientada essencialmente pelo conceito de busca pela
beleza.
Ainda de acordo com Bohm, existem evidências
consideráveis de que a beleza não é uma mera resposta arbitrária
que nos excita de maneira prazerosa. Na ciência, por exemplo, é
possível ver e sentir a beleza de uma teoria somente se esta
estiver ordenada, coerente e em harmonia com todas as outras
partes geradas de princípios simples, todas trabalhando juntas
de modo a formar uma estrutura total harmônica e unificada.
Desse modo, para o cientista, tanto o universo quanto
aquela teoria por ele criada, e que tenta explicar esse mesmo
universo, são belos de uma maneira bastante similar àquela como
uma obra de arte pode ser considerada bela. Evidentemente que
também há diferenças importantes entre o trabalho do cientista e
o do artista, e Bohm não deixa de apontá-los. O cientista, mesmo
trabalhando no nível das ideias muito abstratas, tem seu contato
perceptivo com o mundo mediado por instrumentos. O artista, por
sua vez, trabalha na criação de objetos concretos que podem ser
perceptíveis sem o uso de instrumentos.
Mário Schenberg, físico de importância destacável no
Brasil, foi também crítico de arte e era, na definição de
Haroldo de Campos (1995), um pensador “leonardesco”. O próprio
Haroldo, inclusive, também nos serve aqui de exemplo de poeta
que se interessou pela ciência e tratou-a finamente em seu
trabalho:
"-einstein então encurva o espaço: menos / seguro fica o
deus-relojoeiro / da clássica mecânica ou ao menos / desenha-se
outro enredo sobranceiro / ao de newton: do espaço - qual
sensório /de deus - de um absoluto verdadeiro / espaço que se
quer não-ilusório / como de um tempo-vero (é em si só e / aparte
por um sumo ordenatório / omni-poder que tudo rege e move) /
-einstein encurva o espaçotempo e o demo / determinista e
previsor remove- / o dâimon-sabe-tudo esse plusdemo / de laplace
que vê antecipado / o futuro e o pretérito cinemo [...] volantim
entre a causa e o casual- / à entropia (maré sempremontante / da
desordem) suspende um demo tal [...] mas volto ao dâimon e à
questão da origem: / einstein dizia: “deus não joga dados” / do
aleatório (desse acaso-esfinge [...] à física do tempo: mallarmé
/ sabia (seu coetâneo) que ao azar / jamais abolirá un coup de
des" (CAMPOS, 2000, p. 44-5, 51).
Ubiratan D´Ambrosio, destacável matemático e intelectual
brasileiro reconhecido no Brasil e no exterior, também pensador
fino das interfaces com a arte, foi aluno de Schenberg: “Você
não se surpreende muito, conhecendo-o como professor, que ele
seja crítico de arte. Ele recria na hora de fazer. E a aula dele
era um processo de recriação” (GUINSBURG e GOLDFARB, 1984,
p.30). A renomada pintora e escultora Ligia Clark disse sobre
ele: “Mário Schenberg foi uma das personalidades mais completas
e maravilhosas com quem convivi. Além de ser um físico notável,
internacional, o que mais me espantava era seu conhecimento
múltiplo em todas as áreas de criatividade, desde as artes
plásticas, literatura, conhecimento histórico, religião,
problemas extrassensoriais, o que o torna uma figura ímpar”
(GUINSBURG e GOLDFARB, 1984, p.30).
Na atualidade, surpreendemo-nos, por exemplo, com títulos
de livros científicos como O Universo Elegante (The Elegant
Universe), evidente alusão a um conceito estético aplicado à
ciência, lançado em 1999, por Brian Greene, físico quântico com
formação em Harvard. Ou mesmo o fato de físicos de olhar
esteticamente mais refinado haverem se dedicado à música, como o
próprio Einstein, que tocava violino, Max Planck, um dos físicos
fundadores da Mecânica Quântica, que tocava piano, órgão e
violoncelo e compôs músicas e óperas, além de outros que se
voltaram à literatura, a exemplo de Luis Carlos de Menezes,
físico e educador brasileiro, que também teve contato com Mário
Schenberg, na juventude, tendo ele próprio se tornado autor do
livro de poemas Lições do Acaso, onde se lê: “Na penumbra
/ da visão e da razão / a técnica não preenche / a obscura
silhueta do real / É lá que mora a arte” (MENEZES, 2009, p. 15).
Outro exemplo são os belos contos sobre o tempo publicados pelo
físico norte-americano Alan Lightman, atuante no MIT
(Massachusetts Institute of Tecnology), em seu livro Os
Sonhos de Einstein (2001).
Ilya Prigogine, destacável químico vencedor do Nobel em
1977, é chamado por alguns de seus pares de “poeta da
termodinâmica”. Ao longo de sua bem-sucedida carreira de
cientista, nunca deixou de defender a importância de uma escuta
poética da natureza. “A ciência de hoje não pode mais dar-se o
direito de negar a pertinência e o interesse de outros pontos de
vista e, em particular, de recusar compreender os das ciências
humanas, da filosofia e da arte” (PRIGOGINE e STENGERS, 1997,
p.41).
Ernesto Sabato, um dos maiores escritores argentinos, foi
físico durante grande parte da carreira, tendo, inclusive,
trabalhado no renomado Instituto Curie, em Paris. A certa altura
da vida, desiludido com o rumo que via a ciência tomar, decidiu
deixar a carreira científica e se dedicar exclusivamente à
literatura e à pintura.
"A arte foi o porto definitivo onde preenchi meus anseios de
navio sedento e à deriva. Cheguei a ela quando a tristeza e o
pessimismo já haviam roído meu espírito de tal maneira que, como
um estigma, ficaram para sempre entrelaçados à trama da minha
existência. Mas devo reconhecer que foi justamente o
desencontro, a ambiguidade, esta melancolia ante o efêmero e o
precário, a origem da literatura em minha vida" (SABATO, 2008,
p. 59-60).
Enfim, vários outros exemplos poderiam ser mencionados de
pensadores que entenderam e utilizaram criativamente as
interfaces entre arte e ciência, não encarando-as como
empecilhos intelectuais, muito pelo contrário. Nesse sentido,
Mia Couto é, a nosso ver, mais um feliz exemplo a fazer parte
desse grupo seleto movido pela intuição e por um olhar refinado
para as possibilidades das interfaces entre a arte e a ciência e
que, por isso mesmo, faz toda a diferença na maneira como pensa
e escreve sobre as questões humanas.
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Mia Couto: cientista-escritor ou
escritor-cientista?
Mia Couto se define como escritor e cientista (CORREIA
FILHO, 2011; COUTO, s/d). O fato de a definição de escritor ser
considerada em primeiro lugar sugere o peso que o olhar poético
traz à sua produção intelectual. Biólogo por formação, atua
profissionalmente na área da ecologia. Em 1996, uniu-se a mais
quatro amigos e fundou, em Moçambique, uma empresa que realiza
estudos sobre impacto ambiental. Quando fala de ciência, cobra
de seus colegas, cientistas da atualidade, um olhar mais voltado
à poética da natureza. O mesmo a se refletir com refino em
momentos de sua literatura:
"Só nós vemos a flor, em si mesma. Mas essa é uma visão
ilusória: a flor é a planta toda inteira. A flor existe na
fragilidade do caule, estende-se pelas profundezas da raiz; a
flor é a terra em redor, é a água que ascende em seiva. Arrancar
a flor do cemitério é rasgar a terra onde os mortos fazem
morada" (COUTO, 2008, loc. 734);
"Afinal, os homens também são lentos países. E onde se pensa
haver carne e sangue há raiz e pedra. Outras vezes, porém, os
homens são nuvens. Basta o soprar de um vento e eles se desfazem
sem vestígio" (COUTO, 2008, loc. 2058).
Segundo Couto, tanto a ciência quanto a literatura
deveriam se deixar conduzir pelo prazer das descobertas, mas a
ciência acabou deixando de lado a inquietação, a capacidade de
se espantar e de inquirir. Deixou-se, ainda, engolir pela rotina
da burocracia, em vez de ir além, movendo-se pela paixão da
descoberta. Para ele, o cientista tornou-se um mero funcionário
de grandes empresas e é preciso romper urgentemente com essa
servidão, pois produzir para o que o mercado espera limita a
ciência, levando ao estudo apenas de fatos isolados. Em sua
opinião isso também se dá com a literatura, pois o escritor só
começa de fato a produzir literatura quando rompe os laços com o
que o mercado espera.
Em sua escrita, o olhar lançado à natureza é sempre
tomado por um alto grau de poeticidade. Cientista e poeta por
vezes se confundem, como em uma passagem de Venenos de Deus,
Remédios do Diabo (2008), em que o médico português Sidónio
Rosa dialoga com o velho mecânico naval moçambicano Bartolomeu
Sozinho:
"Quando Sidónio volta
a dar conta do tempo, já Bartolomeu desnovela: '...chovia aquela
noite...'.
- Chovia no sonho?
- Oh, Doutor, o
senhor sofre mesmo de poesias: então chove nos sonhos?
- Eu, poesias?
- Não é de agora. O
senhor já anda poetando há muito tempo. Por exemplo, quando o
senhor me aconselha para eu cortar nas bebidas...
- Acha que isso é
poesia?
- Então não é?
Cortar-se na bebida? A gente pode cortar nas árvores, cortar na
roupa, cortar sei lá onde, mas diga lá, Doutor, que faca corta
um líquido? Só a faca da poesia [...] Há ainda mais outra: o
senhor diz que beber me faz gota. Sabendo os litros que bebo,
Doutor, é preciso muita poesia para falar em gota..." (COUTO,
2008, loc. 765).
Nesse romance, o tratamento que Mia Couto dá à ciência e
à literatura se mostra bastante peculiar, questionador quanto às
fronteiras da subjetividade. A figura do médico português,
Sidónio Rosa, que chega à longínqua Vila Cacimba, um lugarejo
imerso em poeira e cacimbas (neblinas) enganadoras, dialoga com
a imagem objetiva almejada pela ciência, mas, ao mesmo tempo,
desvela a aflorada subjetividade desse médico-cientista, a
começar pelo motivo que o leva ao lugarejo: o desejo de
reencontrar sua paixão, Deolinda, a filha do velho Bartolomeu.
Assim, o que move inicialmente esse médico é a paixão. Ao
compartilhar o dia a dia com os habitantes do vilarejo, Sidónio
se surpreende cada vez mais em quanto a objetividade dos fatos
relacionados às doenças daquelas pessoas se confunde com a
subjetividade das crendices e do sobrenatural, para eles
suficiente para explicar seus males. Temas como realidade e
ficção, objetividade científica e subjetividade poética dialogam
nas entrelinhas, conduzindo a inúmeras e interessantes
reflexões: a ciência consegue mesmo ser objetiva? Até que ponto
um médico consegue analisar os fatos com isenção e tomar
decisões objetivas, mesmo sob os efeitos de uma paixão? Ciência,
misticismo e poesia podem coexistir em um mesmo contexto de
descobertas?
"- [Dona Munda] Acha
que é uma maldição?
- [Doutor Sidónio]
Isso não existe, Dona Munda. As doenças possuem causas
objectivas" (COUTO, 2008, loc. 23);
"Desinfectam-se
micróbios. Não se desinfectam espíritos" (COUTO, 2008, loc.
291);
"A epidemia que
atingiu Cacimba está-se alastrando. Mais e mais pessoas são
atacadas de febres, delírios e convulsões. O português
recém-chegado é o único médico e não está dando conta da
situação. Quem sabe a enfermidade é de outra ordem que escapa às
ciências?" (COUTO, 2008, loc.382).
"Falavam da
enfermaria improvisada nas traseiras do posto de saúde. Umas
tendas de campanha albergavam os soldados atingidos pela
estranha epidemia que os convertera em tresandarilhos. Para o
médico, aquilo era um hospital-tenda, um local de higiene e
assepsia. Para os habitantes da Vila, a enfermaria era uma
residência de maus espíritos, um lugar fatalmente contaminado"
(COUTO, 2008, loc.549).
"Aquilo que somos não é o simples cumprir de um destino
programado nos cromossomas, mas a realização de um ser que se
constrói em trocas com os outros e com a realidade envolvente"
(COUTO, 2011, loc.1041).
Essas mesmas reflexões, lembremos, estiveram presentes na
obra de Guimarães Rosa, grande influenciador, sabe-se, da
literatura de Mia Couto. Médico e escritor, também sensível às
interfaces entre ciência e arte, Rosa igualmente se lançou a
esses pensamentos que o inquietavam. Questões sobre Deus e o
Diabo, por exemplo, surgem em inúmeros momentos de sua obra,
sobretudo em Grande Sertão: Veredas, como também são
trazidas à baila nesse romance de Mia Couto, a começar pelo
título assinalado por um dedilhar de ironia: Venenos de Deus,
Remédios do Diabo. “E se Deus não nos ajuda, como recusar
auxílio do diabo? O segredo, numa vida remendada, é manter o fio
na agulha e saber aproveitar a ocasião” (COUTO, 2008, loc.
2074). Também no sertão mineiro de Guimarães Rosa, tão repleto
de incertezas quanto as neblinas (cacimbas) da moçambicana Vila
Cacimba, o jagunço Riobaldo oscila entre Deus e o Diabo.
"[Riobaldo] O sertão
está cheio desses. Só quando se jornadeia de jagunço, no teso
das marchas, praxe de ir em movimento, não se nota tanto: o
estatuto de misérias e enfermidades. Guerra diverte – o demo
acha" (ROSA, 2001, p. 75);
"Moço!: Deus é
paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja. (...) Só que às
vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de
pimenta..." (ROSA, 2001, p. 33).
O debate sobre os limites entre a ciência e a religião
também se infiltra no subtexto do romance Venenos de Deus,
Remédios do Diabo. Como no diálogo entre o Doutor Sidónio e
Suacelência, o administrador corrupto de Vila Cacimba:
"[Suacelência] – Você
é diferente do padre aqui da Vila.
[Sidónio] – E porquê?
- Os padres, eu
conheci-os muito bem, tratam a alma como uma árvore: podam-na. O
senhor, não. O senhor trata, digamos, do corpo espiritual"
(COUTO, 2008, loc. 880).
Por esse mesmo viés que retrata um médico ciente também
das doenças da alma, dá-se, por exemplo, a fala narrativa
entremeada a um dos diálogos entre o Doutor Sidónio e Bartolomeu
Sozinho: “Um abraço desajeitado a celebrar a inesperada
cedência. O doutor evita o corpo cambaleante [de Bartolomeu]: há
nesse abraço um trânsito de alma que é bem mais contagioso que o
mais virulento micróbio” (Ibid., loc. 958).
Razão e emoção, para Mia Couto, devem ser perseguidas com
equilíbrio, sem nos deixarmos cair na armadilha daquilo que
consideramos “realidade”, pois, em essência, esta não passa de
um mundo criado por nós.
"Uma das primeiras
armadilhas interiores é aquilo que chamamos de “realidade”.
Falo, é claro, da ideia de realidade que actua como a grande
fiscalizadora do nosso pensamento. O maior desafio é sermos
capazes de não ficar aprisionados nesse recinto que uns chamam
de “razão”, outros de “bom-senso”. A realidade é uma construção
social e é, frequentemente, demasiado real para ser verdadeira.
Nós não temos sempre que a levar tão a sério" (COUTO, 2011, loc.
1024);
"A transgressão
poética é o único modo de escaparmos à ditadura da realidade.
Sabendo que a realidade é uma espécie de recinto prisional
fechado com a chave da razão e a porta do bom-senso" (COUTO,
2011, loc. 1160).
Convidado a falar para um grupo de biólogos, em 2004, na
abertura do I Encontro de Biólogos da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa, em Lisboa, Mia Couto apresentou uma bela fala
intitulada “Os sete pecados de uma ciência pura”. Apresenta-se,
espirituosamente, como alguém que não é de confiança para aquele
grupo: “Não mereço confiança porque me falta a crença, essa
espécie de fé que deve ser o chão de um cientista. Sou um
biólogo, mas não moro na biologia. Estou na biologia como um
visitante, com a alma errando pelos domínios da literatura”
(COUTO, 2004, p.1).
Com seu olhar de fino alcance, discorre sobre a Biologia
fazendo um paralelo entre essa ciência e os sete pecados
capitais, destacando a ironia de, na atualidade, dizer-se que os
sete pecados capitais passaram a ser os sete pecados do capital.
Segundo ele, a Biologia, ainda que tente se mostrar íntegra e
ligada ao racionalismo científico não consegue desligar-se de
uma má companhia, o Poder. E completa: “o Poder move-se por
razões que a própria Razão bem conhece” (COUTO, 2004, p.1).
A vaidade, ou soberba, é mencionada como o
primeiro dos sete pecados. Para ele, criou-se uma mistificação
em torno da profissão de biólogo, tornando-a romantizada demais.
Os biólogos são considerados seres exóticos que justificam a
produção de documentários como aqueles da National Geographic,
exibidos pela tevê. Por isso a tentação da vaidade, ainda que o
cenário real de trabalho, a Natureza com a qual lidam, tenha
pouco a ver com aquela dos documentários. Generalizou-se a ideia
de que a Biologia está cada vez mais próxima de controlar
questões de vida e morte. “Deus escreveu a ovelha, nós
publicamos Dolly. [...] Podemos estar a ser convertidos nos
sacerdotes de uma espécie de Igreja Universal do Reino da
Ciência” (COUTO, 2004, p. 2). Por isso, os biólogos e a Biologia
tornaram-se, de algum tempo para cá, um dos temas mais sexy
das publicações de divulgação.
De onde surge o segundo pecado: a luxúria. Por
meio de um jogo de sedução onde entram a procura por mais
visibilidade e o apoio financeiro a pesquisas, a mídia cobra
cada vez mais que biólogos publiquem conclusões simplistas e
generalistas, pois dar a correta dimensão da complexidade dos
fatos não vende. “Comer ao ar livre previne o cancro da
próstata, as loiras são mais propícias a desenvolver atitudes
mais ciumentas, foi descoberto o gene do fundamentalismo
religioso” (COUTO, 2004, p.3). Couto afirma estar-se lidando, na
atualidade, com uma biologia pop ou light, em que
cada vez mais os artigos de divulgação genética se assemelham a
previsões astrológicas.
Nesse ambiente de disputas por visibilidade e apoio
financeiro, o terceiro pecado, a inveja também surge como
uma tentação. Inveja, inclusive, da omnipotência e da
omnisciência, pois apesar de todo o aparente poder oferecido
pelo maior acesso à leitura dos cromossomos, a Biologia é
obrigada a admitir quanto ainda não sabe e quanto precisa se
interrogar sobre os usos indevidos do conhecimento adquirido.
Assim, o quarto pecado, a preguiça, vai ganhando
corpo, sutil e silenciosamente, quanto mais os biólogos se
deixam abandonar pela reflexão crítica sobre seu próprio
trabalho. Afinal, sustentar uma visão crítica dá muito trabalho
e nem sempre gera prestígio. Aos poucos, vão cedendo à preguiça
de pensar, não mais colocando em pauta quem são, o que sabem e o
que fazem. Pensando apenas em sobreviver no dia a dia do
trabalho e da pesquisa, aceitam encaixes, ofertas, arranjos, e a
ideia de não valer a pena tentar alguma utopia leva ao
conformismo e à acomodação intelectual.
O quinto pecado, a gula, parece estar contido na
própria ideia de ciência, considerada isenta e acima de toda e
qualquer suspeita. Para Couto, trata-se de uma ideia tão
exclusivista que pode ser encarada como sendo, acima de tudo,
gulosa e glutona. Engorda, ironicamente, por fazer uma dieta de
ignorar outras sabedorias e epistemologias.
O sexto pecado, a avareza surge quando a ciência
guarda somente para si tesouros que muito poderiam ajudar na
busca de valores morais para o indivíduo e a sociedade. Cita,
como exemplo de desvio, o papel que a ciência atribuiu à
competição no processo evolutivo. Ao dizer que a competição e a
eliminação dos mais fracos eram o motor da evolução natural, sem
querer a Biologia acabou dando crédito à lei do mais forte.
O sétimo pecado, a ira ganha corpo como
consequência do sexto, ao incentivar nos poderosos a ira e o
extermínio daqueles considerados mais fracos. Mesmo ciente da
simbiose como um dos processos mais poderosos da evolução, e que
a capacidade de criar diversidade deu-se como a manifestação
mais importante para a adaptação e sobrevivência de nossa
espécie, a ciência teima em legar essa consideração a um segundo
plano, detalhe fadado convenientemente ao esquecimento.
Para Couto, o ser híbrido que ele próprio se tornou –
biólogo e escritor – lhe tem trazido pouco reconhecimento
científico. Por outro lado, tal condição lhe tem trazido outras
satisfações, como a de estar mais aberto aos sentidos do que os
cientistas em geral.
"O ser de um continente que ainda escuta (África está disponível
para conversar até com os mortos) me trouxe um estar mais atento
a essas outras coisas que parecem estar além da ciência. Não
temos que acreditar nessas “outras coisas”. Temos apenas que
estar disponíveis. E faço aqui, em família, uma confissão: me
entristece o quanto fomos deixando de escutar. Deixámos de
escutar as vozes que são diferentes, os silêncios que são
diversos. E deixamos de escutar não porque nos rodeasse o
silêncio. Ficámos surdos pelo excesso de palavras, ficamos
autistas pelo excesso de informação. A natureza converteu-se em
retórica, num emblema, num anúncio de televisão. Falamos dela,
não a vivemos. A natureza, ela própria, tem que voltar a nascer.
E quando voltar a nascer teremos que aceitar que a nossa
natureza humana é não ter natureza nenhuma. Ou que, se calhar,
fomos feitos para ter todas as naturezas" (COUTO, 2004, p.5).
Ao finalizar seu discurso, lembrou
ainda que por mais que os presentes soubessem que seus países
necessitam de mais técnicos e recursos, pouco adiantará formar
mais biólogos se estes não tiverem a capacidade de questionar a
si mesmos e a profissão. Para tanto, segundo ele, têm à
disposição uma arma de construção massiva: a capacidade de
pensar.
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Literatura e ciência:
linguagens e con(di)vergências
Conforme já mencionado, o registro textual com que Mia
Couto descreve a natureza se mostra imbuído de uma alta dose de
poeticidade. Ainda que biólogo por formação, permitir-se o uso
singular e libertador da linguagem poética é, a nosso ver, um
dos fatores mais marcantes a guiar sua pena de
escritor-cientista. Couto não abre mão da liberdade de expressar
sua subjetividade, buscando, mesmo ao falar sobre ciência,
conforme visto, uma associação simbiótica entre a linguagem
poética (emotiva), e a linguagem científica (referencial):
"Há quem acredite que a ciência é um
instrumento para governarmos o mundo, mas eu preferia ver no
conhecimento científico um meio para alcançarmos não domínios
mas harmonias. Criarmos linguagens de
partilha com os outros, incluindo os seres que acreditamos não
terem linguagens. Entendermos e partilharmos a língua das
árvores, os silenciosos códigos das pedras e dos astros" (COUTO,
s/d, p.1).
Essa busca por uma linguagem de convergência entre a
natureza e o homem, uma essência que os identifique in natura,
sob a liberdade da expressão poética, nos lembra também belos
momentos da prosa poética de outro fascinante pensador, Octavio
Paz, Nobel de Literatura de 1990:
"Que o arvoredo não tenha nome e que eu não o veja da minha
janela, ao cair da tarde, borrão contra o céu impávido do outono
nascente, mancha que avança aos poucos sobre esta página e a
cobre de letras que simultaneamente o descrevem e ocultam – que
não tenha nome e que não possa tê-lo jamais, é o que me leva a
falar dele. O poeta não é o que nomeia as coisas, mas o que
dissolve seus nomes, o que descobre que as coisas não têm nome e
que os nomes com os quais as chamamos não são seus. A crítica do
paraíso se chama linguagem: abolição dos nomes próprios; a
crítica da linguagem se chama poesia: os nomes desgastam-se até
a transparência, a evaporação. No primeiro caso, o mundo
torna-se linguagem; no segundo, a linguagem converte-se em
mundo. Graças ao poeta, o mundo perde seus nomes. Então, por um
instante, podemos vê-lo tal qual ele é – em azul adorável. E
essa visão nos abate, nos enlouquece; se as coisas são, mas não
têm nome: sobre a terra não há medida alguma" (PAZ, 1988, p.
104).
Diferentemente do biólogo que nomeia uma nova descoberta
botânica sob o peso milenar do latim, Mia Couto parece caminhar
justamente em sentido oposto, caminho cientificamente rebelde e
conscientemente assumido, o mesmo apontado por Paz como aquele
do poeta que não nomeia as coisas, mas dissolve seus nomes:
"A escrita é uma casa que eu visito,
mas onde não quero morar. O que me instiga são as outras línguas
e linguagens, sabedorias que ganhamos apenas se de nós mesmos
nos soubermos apagar. Da minha língua materna eu aspiro esse
momento em que se desidioma, convertendo-se num corpo sem mando
de estrutura ou de regra. O que quero é esse desmaio gramatical,
em que o português perde todos os sentidos" (COUTO, 2011,
loc.1970);
"Este ser híbrido que faço por ser –
biólogo e escritor – me tem trazido pouco rendimento em termos
de currículo académico e científico (sou hoje, por desejo
assumido, uma verdadeira desautoridade científica)" (COUTO,
2004, p. 4).
Vale a pena estarmos lembrando Octavio Paz também pelo
olhar sensivelmente crítico que nutriu em relação a seu país, o
México, onde atuou como diplomata. Paz legou a seu tempo e à
posteridade belos poemas e ensaios que tornaram sua pátria
intelectualmente universal, tanto quanto a Moçambique de Mia
Couto, que começa na África e termina por abraçar todo o mundo
no tocante às questões humanas. Sobre o papel da ciência, a
sofisticação do olhar crítico de Paz também parece caminhar ao
encontro daquele de Mia Couto:
"Logo que o homem seja o senhor e não a vítima das relações
históricas, a existência social será determinada pela
consciência e não o inverso, como agora. Não deixa de ser
estranho, por outro lado, que as ciências mais objetivas e
rigorosas se tenham desenvolvido sem obstáculos dentro destas
convicções intelectuais. A estranheza desaparece se se adverte
que, à diferença da antiga concepção grega da ciência a da época
moderna não é tanto uma versão ingênua da natureza – ou seja,
uma visão do mundo natural tal qual o vemos – como uma criação
das condições objetivas que permitam a verificação de certos
fenômenos. Para os gregos a natureza era sobretudo uma realidade
visível: aquilo que veem os olhos: para nós, uma teia de reações
e estímulos, uma rede invisível de relações. A ciência moderna
escolhe e isola parcelas de realidade e realiza suas
experiências só quando criou certas condições favoráveis à
observação. De certo modo, a ciência inventa a realidade sobre a
qual opera" (PAZ, 1996, p.63-4).
A opção por uma linguagem libertadora e libertária surge
em vários momentos da escrita de Mia Couto, sobretudo porque
essencialmente poética, seja quando se volta à escrita ou à
oralidade. Seu “desidioma”, para além de criar neologismos
poéticos e subverter os processos linguísticos, parece buscar
ainda uma essência que transponha os limites da língua para
alcançar sobretudo linguagens, pedras de toque entre elementos,
fenômenos, indivíduos. Nesse processo, a escrita, a oralidade e
a leitura ganham todo um frescor em sua obra. Não somente o
registro escrito interessa a Mia Couto, mas, sobretudo, também a
oralidade e a leitura, consideradas sob o registro literário em
detrimento da referencialidade científica.
"[Doutor Sidónio] - Você devia sair,
apanhar sol. Qualquer dia, você está da minha cor.
[Bartolomeu] - O
senhor não tem cor, Doutor. As pessoas não têm cores. Ou têm
cores que não têm nome" (COUTO, 2008, loc. 784);
"Ao sermos donos das
palavras somos mais donos de nossa existência" (COUTO, 2011,
loc. 1003);
"Ensinar a ler é
sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar entre sentidos
visíveis e invisíveis" (COUTO, 2011, loc. 1030);
"Armadilha é pensar que a sabedoria
tem residência exclusiva no universo da escrita. É olhar a
oralidade como um sinal de menoridade. Com alguma
condescendência, é usual pensar a oralidade como patrimônio
tradicional que deve ser preservado. O culto de uma sabedoria
livresca pode contrariar o propósito da cultura e do livro que é
o da descoberta da alteridade" (COUTO, 2011, loc. 1047).
A escrita de Guimarães Rosa, lembremos mais uma vez,
também moveu-se sob essa mesma rebeldia de cientista-poeta em
relação à linguagem. Nas palavras do próprio Mia Couto:
"Rosa não foi apenas escritor.
Enquanto médico e diplomata, ele visitou, e tardiamente, a
literatura mas nela não fixou residência exclusiva e permanente.
Ao ler Rosa percebe-se que, para se chegar àquela relação de
intimidade com a escrita, é preciso ser-se escritor e muito
escritor. Mas por um tempo é preciso ser-se um não-escritor.
É preciso estar livre para mergulhar no lado da não-escrita, é
preciso capturar a lógica da oralidade, é preciso escapar da
racionalidade dos códigos da escrita enquanto sistema de
pensamento. Esse é o desafio de desequilibrista – ter um pé em
cada um dos mundos: o da escrita e o da oralidade. Não se trata
de visitar o mundo da oralidade. Trata-se de deixar-se invadir e
dissolver pelo universo das falas, das lendas, dos provérbios"
(COUTO, 2011, loc. 1126);
"Rosa instaura [...] o narrador como
mediador de mundos. Riobaldo é uma espécie de contrabandista
entre a cultura urbana e letrada e a cultura sertaneja e oral"
(COUTO, 2011, loc.1181).
Verifica-se que Mia Couto também se utiliza da figura de
um médico, transformando-o em voz narrativa a contrabandear
passagens entre a ciência e a literatura, em diálogos que
misturam a cultura urbana, letrada, e a cultura sertaneja, oral,
no contexto de Vila Cacimba.
Essa espécie de transgressão da linguagem que se quer
objetiva, científica, referencial, mas que acaba por “se
contaminar” por um alto grau de subjetividade poética, também
faz lembrar os relatórios escritos por Graciliano Ramos, na
época em que foi prefeito de Palmeira dos Índios, no estado de
Alagoas, Brasil, e que acabaram por adquirir notoriedade
justamente pelo uso inusitado da linguagem que mistura
objetividade e subjetividade. Ali a linguagem que deveria ser
referencial, própria para um relatório, mistura-se a uma
linguagem de expressão poética que foge ao que se espera de um
relatório, mas nem por isso o torna menos informativo e
detalhado. Nos relatórios de Graciliano Ramos, leem-se passagens
deliciosas, do tipo:
"Exmo. Sr. Governador:
Trago a V. Ex.ª um
resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos
Índios em 1928.
Não foram muitos, que
os nossos recursos são exíguos. Assim minguados, entretanto,
quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as
condições em que o Município se achava, muito me custaram.
COMEÇOS
O principal, o que
sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo
creio, foi estabelecer ordem na administração.
Havia em Palmeira
inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do
Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar.
Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular,
com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os
fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam. [...]
ILUMINAÇÃO
A iluminação da
cidade custou 8:921$800. Se é muito, a culpa não é minha: é de
quem fez o contrato com a empresa fornecedora de luz. [...]
CEMITÉRIO
No cemitério enterrei 189$000 –
pagamento ao coveiro e conservação" (RAMOS, s/d, p.23-7).
Nota-se, portanto, possibilidades de convergência entre
arte e ciência em momentos de “contaminação” entre suas
linguagens. Delimitar fronteiras excessivamente demarcadas entre
essas áreas do conhecimento, ao que parece, tem trazido mais
perdas do que enriquecimentos à humanidade, limitando os
alcances da criatividade e da sensibilidade e, por consequência,
a ampliação do próprio conhecimento. Mesmo quando o que está em
jogo é o rigor exigido pela linguagem da ciência, tudo indica
ser salutar o cientista estar aberto à sensibilidade, até mesmo
para conseguir enxergar novas descobertas. Todavia, é importante
que fique claro que isso não significa estarmos sugerindo que se
transponha inadvertidamente e de maneira irresponsável as
fronteiras de identificação entre as áreas do saber, mas
abrir-se aos sentidos, de modo menos preconceituoso e mais
inteligente. Manter viva a capacidade de pensar dosando razão e
subjetividade, a exemplo desses pensadores “híbridos”, como o
próprio Mia Couto se define, dotados de um olhar intuitivamente
sensível e criativo para a linguagem do mundo.
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Considerações finais
Para os padrões da ciência muito conservadora,
provavelmente Mia Couto seja visto como um rebelde, um
transgressor. Entretanto, sua expressão intelectual parece
bastante afinada com um mundo que caminha cada vez mais para a
consideração das complexidades a interligar os fenômenos,
incluindo-se nisso a admiração pela beleza desses processos.
Além daqueles já mencionados na introdução, outros pensadores de
peso se voltaram, e ainda se voltam no presente, a ideias
favoráveis à consideração de um maior diálogo entre as áreas do
saber. Para mencionar apenas alguns, lembremos Gilles Deleuze,
Michel Foucault, Thomas Kuhn, Carl Sagan, Edgar Morin, Domenico
de Masi, Zygmunt Bauman, Rupert Sheldrake, Fritjof Capra, Fred
Alan Wolf, Amit Goswami, Allan Watts, Ken Wilber, entre vários
outros que com certeza deixamos de citar.
Querer entender a ciência sem considerar, ao mesmo tempo,
e com a devida seriedade, o desejo de descobrir o novo, a beleza
dos intercâmbios manifestados na Natureza, as emoções do
cientista, entre outras questões que apontam para a
subjetividade, leva a ciência a se fechar em seus preconceitos,
não abrindo espaços para compartilhamentos criativos que,
inclusive, conduzam-na a novas e interessantes descobertas. Por
outro lado, querer apreciar e entender a arte sem levar em
consideração a necessidade do estudo aprofundado dos conceitos
que a norteiam, da pesquisa objetiva e investigativa dos
contextos delineados nas entrelinhas das manifestações
artísticas também é, por certo, limitar o entendimento da arte,
considerando-a, ingenuamente, mera manifestação emotiva. Assim,
que se busque de modo equilibrado e inteligente, objetiva e
subjetivamente, veredas de possibilidades de diálogo entre a
arte e a ciência. Nesse sentido, conforme viu-se, Mia Couto pode
ser considerado como um dos intelectuais de destaque na
atualidade a nos mostrar refinadamente um caminho.
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Doutora em Comunicação e
Semiótica (PUC-SP); Mestra em História da Ciência (PUC-SP);
Especialista em Língua, Literatura e Semiótica (USJT).
Professora e pesquisadora do Departamento de Educação da
Universidade Nove de Julho (UNINOVE), onde coordenou durante dez
anos o curso de Letras, assim como diversos projetos de pesquisa
e extensão universitária. Líder de Pesquisa do Grupo Linguística
e Literatura: teorias e práticas discursivas (CNPq - UNINOVE).
Integrante dos seguintes grupos de pesquisa: Tempo-Memória:
Educação, Literatura e Linguagens (CNPq - UNINOVE); TransObjeto
(CNPq-PUC-SP), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP; Palavra
e Imagem em Pensamento (CNPq-PUC-SP), vinculado ao Programa de
Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Membro do
quadro de pesquisadores do CICTSUL (Centro Interdisciplinar de
Ciência, Tecnologia e Sociedade), da Universidade de Lisboa.
Pesquisadora das interfaces
epistemológicas entre educação, arte, comunicação e ciência.
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