REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


NS | número 59 | julho-agosto | 2016

 
 



MAURÍCIO SILVA &
MÁRCIA FUSARO
Organizadores

MIA COUTO

Uma literatura entre palavras
e encantamentos


São Paulo, 2011

ÍNDICE

Entre o sonho e a morte: desvelamentos, revelações e contaminações na narrativa ficcional de Mia Couto

MANUEL TAVARES* 

"O maior empobrecimento provém da falta de ideias,

da erosão da criatividade e da ausência de debate produtivo.

Mais do que pobres, tornamo-nos inférteis.

Vou questionar as três dimensões do tempo

apenas para sacudir alguma poeira.

Comecemos pelo passado.

Para constatarmos que esse passado, afinal, ainda não passou".

(Mia Couto, Pensatempos)

Introdução

           

Nas sociedades contemporâneas, face ao esgotamento dos paradigmas tradicionais de caráter positivista e eurocêntrico na compreensão e explicação da realidade social e da complexidade das relações que se estabelecem entre as várias formas de conhecimento, torna-se cada vez mais urgente pensar novas perspectivas sobre a realidade que problematizem a unidimensionalidade das explicações eurocêntricas fundamentadas, exclusivamente, numa suposta visão “científica” da realidade. Privilegiar a diversidade de leituras do mundo e da vida, entre as quais a visão estético-literária, constitui um dos desafios epistemológicos na contemporaneidade. A ciência não é o único discurso ao qual se possa atribuir o valor de verdade. Já Aristóteles afirmava que o mundo se diz de vários modos e por meio de discursos diversos sem que nenhum deles possa ter legitimidade para afirmar-se como único e verdadeiro. É partindo deste pressuposto que consideramos que a narrativa literária é uma abordagem da realidade, da história e das relações humanas que contribui para novas leituras do mundo e para dar sentido à existência humana. Numa crítica ao pensamento hegemónico e excludente de outras racionalidades, sobretudo da racionalidade eurocêntrica, colonial e da sua lógica, Mia Couto considera que os critérios de verdade hoje dominantes

 

"desvalorizam palavra e pensamento em nome do lucro fácil e imediato. [...] São razões comerciais que se fecham a outras culturas, outras línguas, outras lógicas. A palavra de hoje é cada vez mais aquela que se despiu da dimensão poética e que não carrega nenhuma utopia sobre um mundo diferente" (COUTO, 2009, p. 15).

 

Num país dilacerado por um longo processo colonial, pelas lutas levadas a cabo pelos movimentos de libertação e pela guerra civil, foram inscritas marcas negativas profundas na matriz originária de um novo país independente. Os escritores moçambicanos, particularmente Mia Couto, nas suas viagens narrativas, constroem, a partir da matriz linguística colonial, uma nova língua marcada pela influência das línguas de matriz bantu para dizer o real numa relação indissociável com o sagrado. A reinvenção da língua portuguesa permite “mergulhar na oralidade e escapar à racionalidade dos códigos da escrita enquanto sistema único de pensamento” (COUTO, 2005, p. 107). Revitalizar o passado e, a partir dele, não deixar o sonho morrer, apesar das vicissitudes históricas, constitui um desafio da literatura mágica, desobediente e transgressiva de Mia Couto.

É nesta reinvenção do passado pela escrita, adaptada a uma realidade africana, povoada pelo mistério, pelo maravilhoso, pelos mitos e pela crença, onde, entre o sonho e a morte se vão revelando e desvelando  tempos e lugares que se entrelaçam, povoados por figuras que “nas margens dos rios inscrevem na pedra, teimosamente, os minúsculos sinais da esperança” (COUTO, 2009, p. 11). O compromisso com a verdade, com a democracia e com a liberdade faz dele um escritor inconformado com a situação política e social em que o seu país mergulhou. Os textos de intervenção (Pensatempos, 2005 e E se Obama fosse africano. Interinvenções, 2009) são reveladores desse inconformismo a que nos referimos. Inconformismo que, apesar de tudo, abre as portas da esperança para a construção de uma sociedade solidária e livre da miséria. O escritor é esse ser comprometido com o seu povo, com a realidade social e com a História, estando disponível “para se negar a si mesmo porque só assim ele viaja entre identidades” (COUTO, 2005, p. 59), tendo como horizonte a criação de um pensamento que revele a riqueza cultural do seu povo. Entre influências e confluências o pensamento literário de Mia Couto afirma-se pela originalidade, criatividade e compromisso intransigente com o seu povo e com a sua história.

Do ponto de vista estrutural, obedecendo a algumas das dimensões que consideramos importantes, no pensamento de Mia Couto, dividimos estas reflexões nos seguintes aspetos: o sertão e a savana: influências e confluências; o pós-colonial: a busca de uma identidade entrelaçada entre o passado e o presente; desvelamento e revelação e, finalmente, entre o sonho e a morte: a reinvenção do real. Cada um deles foi desenvolvido nas dimensões analítica e interpretativa, procurando justificações nos próprios textos do autor. Não seguimos nenhuma obra específica, mas tentamos fazer percursos horizontais por diversas obras em função das dimensões abordadas.

O sertão e a savana: influências e confluências

É inquestionável a influência de um conjunto de escritores brasileiros na construção do imaginário dos escritores africanos. Vivemos, afirma Mia Couto, “uma certa saturação de um discurso funcional e sonolento” (COUTO, 2009, p. 121), que reproduz e perpetua a ordem existente. Pela influência de Guimarães Rosa, Couto considera que a nova literatura africana de expressão portuguesa, “deve fugir da esclerose dos lugares comuns, escapar à viscosidade e à sonolência” (COUTO, 2009, p. 121). Não se trata de uma mera questão estética, mas o que está em jogo é o próprio sentido da escrita. Importa explorar as potencialidades da língua, desafiar os processos convencionais da narração “deixando que a escrita seja penetrada pelo mítico e pela oralidade” (COUTO, 2009, p. 121). A renovação do mundo supõe a renovação da língua, a ressurreição da linguagem, imprimindo-lhe outra lógica e abrindo-lhe outros caminhos e horizontes. E estes não são insondáveis. São os caminhos das coisas banais, de um senso-incomum, onde se encontra o mistério denso das coisas simples, “a transcendência da coisa banal” (COUTO, 2009, p. 122).

O nascimento da poesia moçambicana está marcado pela recusa da portugalidade e dos modelos eurocêntricos e pela afirmação da “moçambicanidade”, ou seja, uma literatura que pretendeu contribuir para “a descoberta e revelação da terra” (COUTO, 2005, p. 104). Para estas recusa e afirmação muito contribuíram poetas brasileiros, como Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e outros. Escrever em língua portuguesa ajustada à realidade local, mais próximo do sotaque local, sem cair no exotismo, era o desafio dos autores moçambicanos, movidos pela influência e experiência do “abrasileiramento da linguagem”. Mais do que a mudança estilística da língua, a experiência dos autores brasileiros revelou um certo “possuimento” da literatura pela cultura popular. A escrita surge, assim, como um rio com múltiplos afluentes, desaguando em delta: a diversidade cultural constitui o seu alimento e a sua expressão como valorização das culturas locais e das suas línguas, dialetos e variações linguísticas. Pouco me importa, afirmava Mário de Andrade (apud COUTO, 2005, p. 104-105), “que esteja escrevendo igualzinho ou não com Portugal; o que escrevo é língua brasileira: pelo simples facto de ser a língua minha, a língua do meu país, o Brasil”. Era necessário esquecer Portugal para desvelar e revelar a multiplicidade linguística existente no Brasil; mergulhar no sertão e resgatar as histórias que ele oculta. Também os escritores moçambicanos consideraram que era necessário reinventar a língua portuguesa, mergulhando-a nas raízes do seu povo e nas suas cosmovisões para resgatar uma religiosidade, uma relação com o sagrado e a sua lógica que “é o chão da alma moçambicana, enquanto indivíduos e coletividade” (COUTO, 2005, p. 106). João Guimarães Rosa foi, inquestionavelmente, a maior influência da literatura brasileira na escrita de Mia Couto: “o encontro com Guimarães Rosa provocou uma espécie de abalo sísmico na minha alma” (COUTO, 2009, p. 114).  Um abalo que lança o escritor para fora da escrita para mergulhar no mundo fantástico das estórias, dos mitos e das lendas. Não é a escrita que invade este universo, mas aquela que é invadida pela fantasia da oralidade:

 

"Foi a poesia o que me deu o prosador João Guimarães Rosa. Quando o li pela primeira vez experimentei uma sensação que já tinha sentido quando escutava os contadores de histórias da infância. Perante o texto, eu não lia simplesmente: eu ouvia vozes da infância. Os livros de João Guimarães Rosa atiravam-me para fora da escrita como se, de repente, eu me tivesse convertido num analfabeto seletivo. Para entrar naqueles textos eu devia fazer uso de um outro ato que não é “ler”, mas que pede um verbo que ainda não tem nome" (COUTO, 2009, p. 124).

 

A desobediência às regras lexicais, “o gosto pelo namoro entre língua e pensamento, o gosto do poder divino da palavra” (COUTO, 2009, p. 115) são influências do autor da "Terceira Margem do Rio". Guimarães Rosa tinha um pé em cada um dos mundos: o da escrita e o da oralidade, “não se trata de visitar o mundo da oralidade. Trata-se de deixar-se invadir e dissolver pelo universo das falas, das lendas, dos provérbios” (COUTO, 2009, p. 114). É essa, afinal, a viagem literária de Mia Couto: a permeabilidade da sua escrita ao universo da oralidade, das estórias, dos provérbios e dos atores que as povoam, grande parte das vezes, em cenários e lugares atemporais:

 

"essa tradição oral é profundamente marcada por uma cosmovisão animista que vê o indivíduo em relação estreita e harmoniosa com o universo, seja com o mundo dos homens, seja com o mundo dos animais, seja com os elementos, seja ainda com os espíritos, numa visão holista que contesta qualquer divisão entre o racional e o irracional, o humano e o divino, o animado e o inanimado. É, no fundo, uma profunda crença na existência de forças vivas em todas as dimensões da vida material, mas também de um outro mundo, invisível e intangível, em que os espíritos dos antepassados tecem os destinos dos vivos. E essas forças formam uma rede complexa de ligações que sustentam o universo" (FERREIRA, 2007, p. 168).

 

O resgate desse mundo, ausente de dualismos, onde o ser humano participa do sagrado e este sacraliza a vida, constitui um dos desafios das literaturas contra-hegemônicas, especificamente a de Mia Couto, e do seu realismo mágico-maravilhoso, como um projeto de descolonização da cultura.

A palavra sertão não ganhou raiz em África. À realidade e paisagem sertanejas brasileiras corresponde a savana africana. O sertão e as veredas na escrita de Guimarães Rosa, não são lugares geográficos, são mundos construídos na linguagem. O sertão está dentro de nós, ele é o não-território, mas onde os sonhos se desenrolam e o tempo também não tem, como em Mia Couto, uma dimensão cronológica, é o tempo sonhado onde a vida se encaixa. Citando o autor de Grande Sertão: Veredas, Mia Couto refere: “estas coisas de que me lembro se passaram tempos depois” (COUTO, 2009, p. 117). O mundo da vida, onde as coisas importantes acontecem e se situam para além do tempo, é o universo onde se desenvolve a narrativa de ambos os autores. “Só pela transgressão poética é possível escapar à ditadura da realidade” (COUTO, 2009, p. 117) enquanto recinto prisional, ainda mais aprisionada pelo convencionalismo das regras e dos géneros literários. O narrador transgressor é aquele que serve de mediador entre o universo da escrita e o da oralidade, estabelecendo uma relação entre ambos. Esta perspectiva de imersão na cultura popular e nos mundos da oralidade, no sentido da sua revalorização e da busca de uma identidade traída e negada, representa um dos aspetos da literatura pós-colonial.

O pós-colonial: a busca de uma identidade entrelaçada entre o passado e o presente

O pensamento literário de Mia Couto pode situar-se num diálogo entre a tradição africana e a tradição europeia. É no contraponto entre essas duas tradições que poderemos compreender a visão não essencialista da proposta identitária de Mia Couto, na convicção de que não existem culturas puras. A nossa riqueza, afirma o autor, “provém da nossa disponibilidade de efetuarmos trocas culturais com os outros” (COUTO, 2005, p. 10). A magia e sedução que atraem múltiplos visitantes a Moçambique, “nascem da habilidade em trocarmos cultura e produzirmos mestiçagens. Nascem da capacidade de sermos nós, sendo outros” (COUTO, 2005, p. 10).

Mia Couto, escritor africano, branco e de língua portuguesa, como ele próprio se define (COUTO, 1997, p. 59) pode inserir-se no âmbito da literatura pós-colonial, desacorrentado do realismo tradicional e mergulhando no realismo mágico, onde “o imaginário ancestral com toda a sua carga de maravilhoso, irrompe, subitamente, no seio da realidade, relativizando-a e matizando-a de sentidos plurais” (FERREIRA, 2007, p. 89).  Na perspectiva de Fonseca e Cury, o realismo ficcional de Mia Couto pode definir-se como “realismo maravilhoso”, dado que

 

"uma das estratégias para a apreensão dos diferentes processos de negociação, de misturas, de hibridismos presentes nos romances de Mia Couto pode ser teoricamente iluminada pelas referências ao chamado realismo mágico, ao real maravilhoso, implicando a nomeação de espaços e de uma lógica que se contrapõem à racionalidade da visão de mundo europeia, instrumento de poder utilizado pela colonização. O conceito de real maravilhoso visa  configurar a união de elementos díspares que, procedentes de culturas heterogêneas, compõem uma nova realidade histórica que subverte os padrões convencionais da racionalidade ocidental" (FONSECA & CURY, 2008, p. 121).

 

O realismo maravilhoso é marcado pela presença de elementos mágicos, fantásticos e sobrenaturais e a trama ocorre quase sempre em espaços e tempos imaginários.  De acordo com a posição de FERREIRA (2007), este realismo define a literatura pós-colonial e caracteriza-a como contra-hegemônica.

Literatura pós-colonial, não porque a maior parte da sua obra tenha sido escrita e publicada no período posterior à descolonização portuguesa de Moçambique, essa imensa varanda sobre o Índico, segundo Eduardo Lourenço (apud COUTO, 1996, p. 7), mas porque, efetivamente, a sua imersão na cultura e tradição moçambicanas e na oralidade do seu povo faz dele um autor cujo posicionamento literário, ideológico, político e cultural sempre foi pós-colonial, independentemente da colonização e das suas raízes europeias. Por isso, o seu pensamento viaja, permanentemente, entre a tradição e a modernidade procurando nestes percursos entre o passado e o presente dar expressão a uma cultura que, tendo raízes numa tradição pré-colonial, é, na contemporaneidade, o resultado de múltiplas intercepções que formam a identidade da cultura moçambicana. Entender o seu pensamento, implica um encontro com as suas origens. Assim se refere o autor:

 

"Nasci num tempo de charneira, entre um mundo que nascia e outro que morria. Entre uma pátria que nunca houve e outra que ainda está nascendo. Essa condição de um ser de fronteira marcou-me para sempre. As duas partes de mim exigiam um médium, um tradutor. A poesia veio em meu socorro para criar essa ponte entre dois mundos aparentemente distantes. E eu cresci nesse ambiente de mestiçagem, escutando os velhos contadores de histórias. Eles me traziam o encantamento de um momento sagrado" (COUTO, 2009, p. 123).

 

Os elementos da tradição constituem a matriz fundacional da africanidade, que se substancializa nos hábitos e costumes, mitos, crenças e línguas locais (obrigadas a hibernar durante longo período), e numa indistinção entre o sagrado e o profano; enquanto que o segundo elemento, a modernidade, é, sobretudo, o resultado das influências europeias, da colonização portuguesa e de uma cultura global que imprime as suas marcas em todas as culturas. Todavia, a cultura africana não é, apenas, o regresso a um passado irreversível, mas o entrecruzamento, a simbiose entre o passado ancestral e o legado cultural do período colonial, sobretudo, veiculado pela língua portuguesa que se institucionalizou como língua-padrão, apesar de considerarmos que a literatura de Mia Couto opera uma espécie de desterritorialização da língua portuguesa, transferindo-a e traduzindo-a para o território e realidade moçambicanos, um outro lugar enunciativo que luta, permanentemente, “para não ser silêncio” (COUTO, 2009, p. 15).  Efetivamente, uma das características essenciais do domínio colonial foi o controle sobre a língua e a imposição de uma cultura monolinguística, desvalorizando as línguas locais como veículos de uma cultura ancestral. O domínio de uma língua e a sua imposição significou o domínio e manipulação das consciências e da construção das representações pouco africanas sobre o mundo e sobre a existência. A língua tornou-se o instrumento mais poderoso para a perpetuação das hierarquias sociais e das relações de poder, tal como pela construção das concepções de verdade e pelo “adormecimento das vozes” que ficaram esquecidas no tempo. A língua colonial operou o esquecimento da memória.

Apesar dos efeitos desastrosos da colonização, o processo de descolonização de que aqui se fala, não se opera pela recusa da cultura colonial, mas por uma inquietude, insubordinação e contaminação linguísticas. A reinvenção permanente da língua, embora contaminada pelas origens, sem perversões sintáticas, ao derrubar as convenções discursivas, produz uma nova semântica potenciadora de novos caminhos da linguagem, ajustados a cenários onde convivem os vivos, os mortos, os fantasmas e outros seres da natureza, como atores de um mágico e harmonioso Universo.

Neste sentido, o conceito de pós-colonial aplicado à literatura não tem um sentido cronológico, mas assume uma maior amplitude para significar um conjunto de experiências políticas,  culturais, subjetivas, intersubjetivas e coletivas que transitam em tempos e lugares diversos, pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais. Como defende FERREIRA (2007), sendo a questão da temporalidade uma dimensão fundamental na obra de Mia Couto, ela é, sistematicamente, desconstruída, perdendo a linearidade que sempre lhe foi atribuída pela cultura ocidental. O tempo, “privado da sua dimensão cronológica, […] torna-se um espaço histórico sofisticado, o de um passado indefinido no seio do qual os homens tentam reconstruir o caos no qual vivem” (FERREIRA, 2007, p. 29). Indubitavelmente, o pós-colonial aponta para a construção ou resgate de outras epistemologias em oposição ao conhecimento de caráter eurocêntrico e ocidentocêntrico.

O conceito de pós-colonialismo suscita, pois, algumas divergências teóricas que, todavia, são enriquecedoras, quer do ponto de vista antropológico, quer epistemológico. Para delimitar o sentido que lhe atribuímos, utilizamo-lo, aqui, na perspectiva de Boaventura de Sousa Santos (2004) ao referir-se às relações desiguais entre o Norte e o Sul na compreensão e na explicação do mundo e das relações sociais. Norte e Sul, não numa perspectiva especificamente geográfica, mas no sentido simbólico de opressão e de dominação do Sul (1) pelo Norte. Essas relações desiguais persistem, quer no Norte quer no Sul, como extensão e como representação das relações coloniais ainda dominantes em muitos povos que foram vítimas da colonização. Pensamento pós-colonial significa, pois, uma oposição a todas as formas imperiais de opressão dos povos e culturas, histórica e contemporaneamente dominados,  oprimidos e privados de dar visibilidade à sua cultura. Significa, na visão de Mia Couto, uma oposição a todas as formas monolíticas e funcionais de exprimir e dizer o real e a existência humana.

O seu pensamento desvela e revela, por meio de uma diversidade de vozes, as formas diversificadas de dominação, no passado e no presente. Os dominados e excluídos são e foram, sobretudo, “os que moram na periferia, os da chamada cidade baixa. E há ainda os rurais, os que são uma espécie de imagem desfocada do retrato nacional. Essa gente parece condenada a não ter rosto e falar pela voz de outros” (COUTO, 2005, p. 10). São, afinal, aqueles que vivem nas margens, na periferia da periferia. O colonialismo não morreu com as independências e, mais do que isso, permaneceu nas mentes dos colonizados e colonizadores como colonialidade (2). O colonialismo “mudou de turno e de executores. O actual colonialismo dispensa colonos e tornou-se indígena nos nossos territórios. Não só se naturalizou como passou a ser co-gerido numa parceria entre ex-colonizadores e ex-colonizados” (COUTO, 2005, p. 11). O pós-colonialismo tem, assim, uma marca identitária constituída por uma aceitação e rejeição de um passado colonial e pela conflitualidade entre ambas. Esse hibridismo, essa mestiçagem manifesta-se, permanentemente, na narrativa de Mia Couto e nos próprios textos de intervenção. O papel da memória, como reconstrução do passado e do “desanoitecer das vozes” adquire uma centralidade incontornável no seu pensamento e na sua expressão literária, tendo em vista a construção de uma identidade moçambicana, feita de encontros e desencontros culturais e onde os excluídos, oprimidos, invisibilizados, “aqueles que vivem do outro lado da rua”, nas margens, possam participar da invenção da sua História. É uma escrita da História a partir do ponto de vista das vítimas, das suas estórias, que se desloca do centro hegemônico para a periferia contra-hegemônica. Aliás, os países africanos de expressão portuguesa situam-se para além da periferia do sitema-mundo, situam-se na periferia da periferia, considerando que o país colonizador ocupa um lugar semiperiférico no âmbito do sistema capitalista global.

A cultura africana é o resultado de uma riqueza inquestionável, produto de trocas diversas (africana, colonial, ocidental, indiana, britânica etc.) e que  constitui um valioso património, parte dele por desvelar. Assim se exprime Mia Couto:

 

"O nosso continente é feito de profunda diversidade e de complexas mestiçagens. Longas e irreversíveis misturas de culturas moldaram um mosaico de diferenças que são um dos mais valiosos patrimónios do nosso continente. Quando mencionamos essas mestiçagens falamos com algum receio como se o produto híbrido fosse qualquer coisa menos pura. Mas não existe pureza quando se fala de espécie humana. Não há economia actual que não se alicerce em trocas. Pois não há cultura humana que não se fundamente em profundas trocas de alma" (COUTO, 2005, p. 19).

 

A experiência do desenraizamento, provocada pela colonização, levou os escritores africanos, entre eles Mia Couto, a procurar as raízes culturais e a sua valorização. “É como desterrados ou (des)locados que os africanos vão reinventar a sua identidade num discurso que traz as marcas de seu entrelugar cultural” (REIS, 2011, p. 80). Quando os intelectuais africanos tomam consciência de si mesmos e da sua diferença em relação às antigas metrópoles, “são espíritos modernos e culturalmente híbridos que descobrem a realidade africana e procuram criar uma nova territorialidade” (REIS, 2011, p. 80). A questão da identidade africana, moçambicana, torna-se a tendência prevalecente da literatura pós-colonial, não no sentido de estabelecer uma ruptura radical e hostilizante com o legado colonial mas, sobretudo, para resgatar os traços identitários de uma cultura silenciada e hostilizada pela longa noite colonial. A língua portuguesa, outrora instrumento de dominação cultural, política e ideológica, torna-se o instrumento de libertação por meio da sua reinvenção e dos desvios que a linguagem possibilita. Os instrumentos do opressor transformam-se, pela nova literatura, em instrumentos de libertação, de afirmação de uma identidade cultural e da construção de um futuro a partir das margens. É no trabalho da língua como texto que “se desvelam as tradições traídas e reformuladas e se recuperam os traços genealógicos de variadas formas ou géneros orais africanos e outros géneros provenientes da literatura escrita” (LEITE, 1998, p. 54). Desvelar, revelar e reconhecer os valores simbólicos de uma tradição cultural esquecida e silenciada pode permitir que o povo moçambicano reencontre a sua dignidade cultural e rejeite a condição subalterna e periférica a que foi votado pelo etnocentrismo europeu. Esta é, pensamos, uma das tarefas revolucionárias da literatura.

Desvelamento e revelação

A literatura, para além de ser uma espécie de barómetro da consciência moral de um povo, é um veículo privilegiado de intervenção política, social e de celebração cultural. É a viagem onde o possível prolifera e onde as alternativas podem ter o seu lugar e espaço ficcionados de afirmação. Neste sentido, o mundo literário, pela riqueza metafórica e pela sua pluridiversidade e mestiçagem de sentidos, evoca o literal transgredindo-o e, por isso, afirma-se como “um espaço e tempo do possível, da democracia e da liberdade, tornando-se a consciência moral da política” (REIS, 2011), revelando a multiplicidade do real e desvelando os mistérios e sentidos nele ocultos. Todavia, a literatura de ficção é também recriação do real, proporcionando um espaço de crítica social, de questionamento e de combate. “Ficção e realidade são as gémeas e convertíveis filhas da vida” (COUTO, 1991, p. 73). “Para combater pela verdade, o escritor usa uma inverdade: a literatura. Mas é uma mentira que não mente” (COUTO, 2005, p. 59). O escritor não é, apenas, aquele que escreve e aquilo que escreve, é quem desconstrói os pilares em que assentam as convicções falaciosas do senso comum e que “desafia os fundamentos  do próprio pensamento, que produz pensamento, que é capaz de engravidar os outros de sentimentos e de encantamento” (COUTO, 2005, p. 63).

A reflexão sobre o estado pós-colonial representa uma abertura para um debate sobre a realidade que se entrecruza em espaços e tempos diversos, realidade que é marcada pela miséria, pela exploração desenfreada de uma elite política e económica corrupta, indiferente ao mal-estar de grande  parte da população. As relações neo-coloniais mantêm as relações de subalternização que destroem e alienam a dignidade humana. Assim, assumindo uma posição crítica em relação ao presente, se pronuncia Mia Couto sobre o esquecimento a que os povos foram votados por parte das novas elites:

 

"O nosso continente corre o risco de ser um território esquecido, secundarizado pelas estratégias de integração global. Quando digo “esquecido”, pensarão que me refiro à atitude das grandes potências. Mas eu refiro-me às nossas próprias elites que viraram as costas às responsabilidades para com os seus povos, à forma como o seu comportamento predador ajuda a denegrir a nossa imagem e fere a dignidade de todos os africanos" (COUTO, 2005, p. 21)

 

O autor, na sua preocupação com os vitimados, excluídos e marginalizados, com aqueles que já na sua infância viviam “do outro lado da rua”, alerta para a necessidade de redefinir e reinventar modelos de gestão que excluem “aqueles que vivem na oralidade e na periferia da lógica e da racionalidade europeias” (COUTO, 2005, p. 22). Daí que o seu pensamento se enquadre no âmbito de uma racionalidade mestiça que se move em lógicas que se entrecruzam: a lógica da oralidade, fundamentada numa relação com as tradições rurais, envoltas em cenários de magia e uma lógica da modernidade cosmopolita, veiculada e sustentada pela língua portuguesa e numa educação colonial. A imposição de um modelo eurocêntrico gerou um distanciamento dos jovens em relação ao seu próprio país e o surgimento de um novo sujeito cultural com uma identidade que se construiu numa conflitualidade entre duas temporalidades: o presente africano-ocidentalizado, “vestido de roupa emprestada” (COUTO, 2005, p. 10) e um “passado mal embalado” das tradições culturais,  que se mantêm vivas, mas “carregadas de mitos e preconceitos” (COUTO, 2005, p. 10). De acordo com Ferreira (2007, p. 53), a relação com as tradições rurais e com a oralidade, na obra de Mia Couto, é, na maior parte dos casos,

 

"uma relação em segunda mão, diferida, nascida não de uma experiência vivida, mas adquirida, apreendida, estudada. Este fator está na génese da obra de Mia Couto no que ela revela de remanejamento da língua, instrumento privilegiado da contaminação, mestiçagem e entrosamento das culturas, orais e escritas".

 

A recusa de uma única lógica e da hegemonia da lógica racionalista como único modo de apropriação do real está presente na expressão literária-poética do seu pensamento. Daí a valorização do universo rural e da oralidade que o exprime como estratégia de defesa e de resgate de uma tradição oral que contém em si uma epistemologia, tão válida como a epistemologia racional e urbana.

 

"A mais importante linha divisória em Moçambique não é tanto a fronteira que separa analfabetos e alfabetizados, mas a fronteira entre a lógica da escrita e a lógica da oralidade. A absoluta maioria dos 20 milhões de moçambicanos vive e funciona num tipo de racionalidade que tem pouco a ver com o universo urbano. Nesses casos, pressupostos filosóficos do mundo rural correm o risco de ser excluídos e extintos" (COUTO, 2009, p. 108).

 

Em oposição clara a uma epistemologia eurocêntrica que apenas valoriza o discurso e a lógica científicos, o autor apresenta os elementos essenciais de uma epistemologia da ruralidade africana, propondo o desafio do diálogo entre a escrita e a oralidade que é, afinal, o que o próprio Mia Couto experencializa nos seus contos, nas suas crónicas, nos seus romances:

 

"A concepção relacional da identidade, inscrita no provérbio: “eu sou os outros”; a ideia de que a felicidade se alcança não por domínio mas por harmonias; a ideia de um tempo circular; o sentimento de gerir o mundo em diálogo com os mortos: todos estes conceitos constam da rica cosmogonia africana. É evidente que não se pode romantizar esse mundo não urbanizado. Ele necessita de enfrentar o confronto com a modernidade. O desafio seria alfabetizar sem que a riqueza da oralidade  fosse eliminada. O desafio seria ensinar a escrita a conversar com a oralidade" (COUTO, 2009, p. 108-109).

 

O desvelamento e revelação do passado e da ruralidade opera-se por meio de um diálogo frutífero com os depositários da tradição, aqueles cujo pensamento está impregnado pelo tempo, pelo mistério e pelo sonho. A familiaridade com o insólito, com a morte e com o fantasmagórico configura toda a magia que percorre os escritos de Mia Couto.

No conto "A sombra sentada", de Cronicando, Mia Couto (1991, p. 13-14) descreve uma conversa com o velho Travage, um símbolo da simbiose entre tradição e modernidade,

 

"para ouvir o seu conselho sobre os mundos [...]. No pensamento do velho abundava o tempo. Esse era o gosto de o voltar a ver. Por esse gosto eu largara os meus afazeres urbanos e me fizera aos trilhos. Ia seguindo pelos caminhos de terra, desses que nascem da conversa entre o chão e os pés viajantes. No atalho arenoso, as minhas pernas eram escolares, gémeas aprendizes da lonjura".

 

No referido conto, tradição e modernidade, ruralidade e urbanidade se mesclam na figura do velho Travage, que, durante anos, tinha sido guarda da passagem de nível e “a seu mando paralisavam os comboios. Levantava a bandeira e os ferros faiscavam travagens. Donde o seu nome.” Depois da aposentadoria, “o velho regressou à primeira pedra, num lugar onde nunca se escutou o uivo dos comboios. Mas o velho, quase surdo, acreditava que, por entre os demorados silêncios, se sentia o metálico suspiro das máquinas” (COUTO, 1991, p. 13).  O convívio entre tradição e modernidade surge da recriação literária que produz o diálogo entre a oralidade e a escrita. Pela palavra e pela simbiose entre oralidade e escrita se recupera o passado, substancializado nas tradições e valores que as configuram; mas, também, a força da palavra contém em si o sonho do futuro, é prefiguração e reconfiguração.

Em Vozes Anoitecidas, constituído por doze contos, o autor abre as portas do passado para dar voz ao silêncio das vozes, esquecidas numa confluência de tempos e lugares e que constituem personagens de um mundo proposto pelo narrador, suscetível de ser habitado e de dar sentido à vida.  São personagens que partilham a autoria do que é narrado, que se consomem no interior dos sonhos, despertando, “desanoitecendo,” pela via da recriação na ficção literária. Estas estórias, afirma Mia Couto,

 

"desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de verdade mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem do mundo. Na travessia dessa fronteira de sombra escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram asas no meu voo de escrever. A umas e a outras dedico este desejo de contar e de inventar" (COUTO, 1987, p.19).

 

São estórias que se deram num tempo que nunca chegou, que acontecem no voo da escrita, onde “os peixes nadam num céu de água” e “os mortos também têm direito à sua solidão”, ganhando vida e visibilidade por meio da narrativa e no seu interior e para além das fronteiras da geografia da vida (COUTO, 2006).

O ato de contar, por meio da narrativa de ficção, consiste, de acordo com a posição de Paul Ricoeur (1986, p. 14), “em preservar a amplitude e a diversidade dos usos da linguagem”. Neste sentido, supera-se a perspectiva meramente formal e funcional da linguagem, na sua dimensão lógica, como defendia a filosofia analítica. A referência ao passado, tendo em vista a sua compreensão, é tarefa da História o que coloca alguns problemas relativamente à narrativa ficcional que dispensa a prova material dos acontecimentos e documentos. A narrativa ficcional, é obra da imaginação produtora e, por isso, refere-se ao real de um modo simbólico e metafórico. Todos os sistemas de símbolos contribuem para a configuração do real. As intrigas, por exemplo, ajudam o ser humano a configurar a sua experiência temporal, confusa e informe. A função referencial da intriga consiste, precisamente, na sua capacidade de configuração da experiência vivida. Neste sentido, o mundo da ficção, fruto da imaginação produtora, é um laboratório onde se experimentam mundos possíveis que forçam mudanças da realidade. O mundo da ficção (fingere) é o mundo do fingimento e fingir é também agir, fazer, forjar, na medida em que no mundo do texto, este se projeta como mundo. O mundo do texto, porque é mundo, entra em colisão com o mundo real para o refazer. A reconstrução do passado é obra da imaginação. O historiador configura as intrigas que os documentos permitem ou interditam, o que lhe possibilita um trabalho hermenêutico tendo em vista a compreensão do passado. Por sua vez, a imaginação produtora da ficção não precisa de provas reais ou documentais, ela trabalha com as dimensões simbólica e metafórica e, neste sentido, constrói mundos possíveis que forçam o mundo real a transformar-se. É por meio desta capacidade produtora da ficção que a experiência humana, na sua dimensão temporal profunda, permanentemente se refigura (RICOEUR, 1986). A referência a um tempo atemporal (in illo tempore) onde se movem as figuras que povoam os contos e romances de Mia Couto, em cenários fantásticos e fantasmagóricos, permite enquadrar a narrativa ficcional do autor no âmbito do realismo mágico (FERREIRA, 2007), transgressor das visões literais da palavra e do real. A inovação semântica da narrativa ficcional de Mia Couto permite-nos olhar para o mundo com olhos de sonho e dissolver a dicotomia tradicional entre o profano e o sagrado. É nesta conexão entre estes dois universos que se estabelece, também, a relação entre o mundo da escrita e o mundo da oralidade. O universo narrativo de Mia Couto, tendo em conta a construção de uma epistemologia de cariz não-eurocêntrico, permite-nos ver o mundo de um modo mais colorido e menos cinzento. Ver o mundo, afinal, de acordo com as cores e a riqueza da diversidade cultural, em oposição a uma visão monocromática da epistemologia tradicional, monocultural e eurocêntrica.

Entre o sonho e a morte: a reinvenção do real

Como já se afirmou anteriormente, a narrativa de ficção de Mia Couto é impregnada pela presença do sagrado e da relação com o sobrenatural que, por sua vez, não está separado da realidade profana. Há, na cultura africana e no seu imaginário, uma espécie de força energética, um misticismo que liga todos os seres às divindades ancestrais. A perspectiva hierárquica do mundo situa os deuses no topo da hierarquia, seguida dos mortos, dos vivos e dos outros seres viventes. A morte não assume uma dimensão trágica, como acontece nas sociedades ocidentais, mas é perspectivada como uma mudança de ciclo, como transformação e como regresso ao mundo dos espíritos. Os mortos, ao deixarem o mundo dos vivos, passam a conviver com os ancestrais. Mito, sonho e realidade são as dimensões que permitem reconstruir a realidade de um país dilacerado pela destruição provocada pela guerra e pelas suas implicações na estrutura social e nas relações sociais. A morte é uma das consequências dessa tragédia, uma fatalidade que gera angústia e medo e, neste sentido, não pode ser considerada como algo inevitável. Uma morte que não surge de um modo natural, mas que desequilibra os ciclos naturais da existência humana. São crianças, jovens e mulheres que morrem de um modo injustificável e cuja morte surge à revelia dos ciclos existenciais e cósmicos.

Nas sociedades africanas, a questão da morte assume significados diversos. Ela faz parte, com os rituais que lhe estão associados, da própria vida. Assume, por isso, não apenas uma dimensão de fim de um ciclo e início de outro, uma dimensão biológica e escatológica, mas afirma-se como um facto sociocultural, pelas crenças e representações que gera e que suscita. Todos os rituais associados à morte têm por finalidade a unificação da família, por um lado e, por outro, uma espécie de exorcização dos medos e angústias a ela associados. À morte está associada a crença na continuidade da vida e da existência, num mundo invisível, onde moram os deuses e os espíritos dos falecidos. Estes espíritos interagem, permanentemente, com o mundo dos vivos e determinam o seu curso existencial. Nesta perspectiva, ela tem um significado religioso, sagrado.

A morte, como continuidade da vida, representa o renascimento do ser, a passagem para uma outra forma de ser. Neste sentido, para além da dimensão antropológica da morte, ela assume, também, uma dimensão ontológica.

A associação da morte à situação de guerra vivida em Moçambique, quer durante o período colonial quer depois da independência, gera um certo pessimismo no pensamento de Mia Couto. Para que um mundo nasça, é necessário que o outro morra. O que acontece é que o antigo ainda não morreu e o novo tarda a nascer (COUTO, 2005).  A literatura tem essa função criadora e recriadora na reinvenção do real por meio do resgate de uma identidade coletiva que se sustenta  no regresso às raízes da cultura de um povo, na redescoberta dos valores ancestrais, esquecidos num tempo “em que não havia antigamente” (COUTO, 2000, p. 49).

Terra Sonâmbula (1992) é o primeiro romance de Mia Couto. Guerra e viagens são os temas em função dos quais o romance se desenvolve. Guerra, como pano de fundo e retrato de um país que mergulhou na mais profunda destruição e esqueceu as suas raízes ancestrais. Viagens, como fuga, descoberta, reencontro e sonho. Muidinga, Tuhair e Kindzu são os protagonistas destas viagens. O primeiro (Muidinga), foge da guerra e busca a sua identidade,  com a ajuda de Tuhair, nos valores esquecidos no tempo. É uma viagem de conhecimento, mas, sobretudo, de autoconhecimento. Por sua vez, a viagem de Kindzu é a procura de um sonho, de um ideal; é fuga de uma educação recebida e dos valores que lhe foram transmitidos. Busca, afinal, um mundo desconhecido e, por isso, a sua viagem é uma espécie de viagem de iniciação, de aprendizagem das suas raízes culturais. Qualquer um dos personagens pode ser lido como um símbolo de um país que, perdido dentro de si e em conflito consigo próprio, procura a sua verdadeira identidade em inúmeras viagens para dentro de si próprio, numa estrada coberta de múltiplas armadilhas. Um povo sem memória, não tem história e, muito menos, identidade. Por isso, são viagens que se realizam nas estradas do sonho, dimensão que, apesar da morte, mantém as pessoas vivas e contemporâneas do futuro e da memória. “O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro” (COUTO, 1992, p. 7).

Em Terra Sonâmbula, o ato de contar passa pela leitura. A leitura dos cadernos de viagem de Kindzu altera, por completo, a existência de Muidinga e Tuhair. A leitura é uma viagem dentro do sonho, mas também de evasão e de entrada noutros mundos e nos seus segredos por revelar. É o sonho que faz andar a estrada e enquanto ele persistir, a estrada continuará viva (COUTO, 1992). As estórias são contadas, não pelo recurso à oralidade, mas por meio da escrita onde vive a oralidade. Os cadernos, que relatam a viagem de Kindzu por mar, trazem a estória escrita da voz de Kindzu: “Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz” (COUTO, 1992, p.15). O mar, símbolo da reconciliação, regeneração e de paz, é o lugar para onde convergem todas as viagens. É um local de encontro e de esperança no renascimento. Não substitui a terra, onde moram os espíritos e, simultaneamente, espaço de realização de sonhos. Veja-se como as folhas dos cadernos de Kindzu se transformam em páginas de terra e as letras em grãos de areia, perante o olhar “abismaravilhado” de Kindzu.

A morte, para além da sua simbologia, como mudança de ciclo, transformação, regresso à terra é, também, nas sociedades africanas bantu, um acontecimento social. E, como tal, a família deverá reunir-se para receber os últimos conselhos e revelações dos mistérios por parte de quem está em trânsito, dado que são os mortos quem continua a governar os vivos. Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), o avô Mariano promete ao neto, Marianinho, as últimas revelações dos mistérios da família. Assim se pronuncia o avô Mariano acerca da necessidade da presença da família:

 

"para você conhecer os dentros de seus parentes. E todos, aqui, são os seus parentes. Ou pelo menos equiparentes. Seu pai, com suas amarguras, seu sonho coxeado. Abstinêncio com seus medos, tão amarrados a seus fantasmas. Ultímio que não sabe de onde vem e só respeita os grandes. Sua Tia Admirança que é alegre só por mentira. Dulcineusa com seus delírios, coitada. Mas, lhe peço, comece por Miserinha. Vá procurar Miserinha. Traga essa mulher para Nyumba-Kaya. Estas paredes estão amarelecendo de saudade dessa mulher. Ela deve repertencer-nos. É nossa família. E a família não é coisa que exista em porções. Ou é toda ou não é nada" (COUTO, 2002, p. 126).

 

Todavia, nem sempre os mortos têm o devido funeral. Em A varanda do Frangipani (1996), no primeiro capítulo, o sonho do morto, Ermelindo Mucanga, sem cruz nem mármore, desglorificou-se no falecimento e acabou um morto desencontrado da sua morte, morrendo longe do seu lugar. E, por isso, faz parte “daqueles que não são lembrados” (COUTO, 1996, p.12). Faltou cerimónia e tradição. E tudo aconteceu porque Ermelindo morreu fora do lugar e deixou o mundo na véspera da libertação: “meu país nascia, em roupas de bandeira, e eu descia ao chão, exilado da luz” (COUTO, 1996, p. 12). Por isso mesmo, nunca chegará ao estado de xicuembo, que são os defuntos definitivos e amados pelos vivos. A sua transformação em xicuembo significa que será um antepassado-deus para os seus descendentes e um espírito hostil para aqueles que, em vida, eram seus inimigos. Interessante salientar que nesta narrativa o próprio protagonista, que está morto, assume, simultaneamente, o estatuto de narrador procurando revelar, pela oralidade, o incómodo e as consequências de uma morte não anunciada. Ermelindo, como morto, tem um estatuto inferior ao do avô Mariano de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, referido anteriormente. Todavia, Ermelindo acaba por voltar à vida por um periodo de seis dias, apesar de, o regresso à vida não ser muito do seu agrado: pangolim pergunta: “Não lhe apetece ficar vivo outra vez? – Não. Como está a minha terra não me apetece” (COUTO, 1996, p. 15), responde Ermelindo. “Ora, Ermelindo, você vá, o tempo lá está bonito, molhado a boas chuvinhas” (COUTO, 1996, p. 20). O regresso à vida significará atingir o estado de xicuembo e, assim, será um defunto definitivo e amado pelos vivos. Vida e morte não são dois estados opostos, mas completam-se, uma é o continuum da outra: A vida tem duas faces, uma visível, percepcionada pelos sentidos, habitada pelos vivos, e a outra, oculta, obscura, misteriosa, apenas intuída, pressentida e projetada. É por isso que o universo narrativo de Mia Couto é povoado de  mortos e de vivos que interagem entre si, nem sempre de um modo harmonioso. O real e o sobrenatural coabitam de um modo natural e espontâneo e a morte, como outro ciclo da vida, é, apenas, o prolongamento, a continuidade da existência. A morte, como diria Hegel, aplicando uma perspectiva dialética, não é o reverso da vida, mas uma outra forma de desenvolvimento e manifestação da vida.

O universo da fantasia instala a ordem do sonho como o “olho da vida” (COUTO, 1992, p. 17) em oposição a uma realidade dominada pela tragédia. O território do sonho é, pois, o cenário de fantasia que resgata a esperança humana e o liberta do aprisionamento de um mundo de desequilíbrios e destruições. Em estórias abensonhadas (COUTO, 1994, p. 7), o autor refere:

 

"Estas estórias foram escritas depois da guerra. Por incontáveis anos as armas tinham vertido luto no chão de Moçambique. Estes textos me surgiram entre as margens da mágoa e da esperança. […] Estas estórias falam desse território onde nos vamos refazendo e vamos molhando de esperança o rosto da chuva, água abensonhada. Desse território onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta".

 

A oralidade é o veículo de revelação dos mistérios ocultos e, assim, se manifesta, também, uma relação indissociável entre o real e o sobrenatural, entre o sonho e a realidade. É a partir dela que se reinventa a esperança. Esta intercepção realiza-se no âmbito do maravilhoso, “como o campo da fantasia “genuína”, pleno de mundos secundários que constroem realidades alternativas, em que sonho e realidade dialogam e interagem naturalmente” (FERREIRA, 2007, p. 146). O sonho, porque permite a libertação das amarras do quotidiano, é o modo de regresso ao passado e do seu desvelamento e revelação. Permanentemente, se manifesta o maravilhoso nos romances e contos de Mia Couto, como, por exemplo, o acontecimento impossível de um morto que se recusa a morrer em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002): “enquanto vivo se dizia morto. Agora que falecera, ele teimava em não morrer completamente” (COUTO, 2002, p. 37). O maravilhoso, ao transportar o leitor para um mundo-outro, diferente do mundo real e ao referir-se à realidade de um modo simbólico, metafórico, funciona como um horizonte de esperança e de pressão sobre o real vivido, no sentido da sua transformação.

Nestas múltiplas relações, entre sonho e realidade, vida e morte, natural e sobrenatural se vão tecendo estórias de vida e de morte, desafiando o próprio tempo, num espaço sacralizado pela árvore da vida – o frangipani -, local de memória, de revitalização da tradição e reduto de resistência dos velhos, esquecidos pelos homens e por Deus.

 

"É que aqui, falamos demais. E sabe por quê? Porque estamos sós. Nem Deus nos faz companhia […]. Aquelas nuvens no céu. São como estas cataratas nos meus olhos: névoas que impedem Deus de nos espreitar. Por isso, somos livres de mentir, aqui na fortaleza" (COUTO, 1996, p. 26).

 

A mentira é o símbolo de criação de uma outra ordem, de uma outra lógica e de afirmação de uma tradição silenciada pelas “verdades” convencionais. Os velhos são o repositório dessa tradição, “guardiões de um mundo. De um mundo que está sendo morto. […] estes velhos estão sendo mortos dentro de nós” (COUTO, 1996, p. 59-60).

Os velhos têm, nas sociedades tradicionais africanas, um estatuto privilegiado. Na obra de Mia Couto encontramo-los como protagonistas das suas estórias e, mais do que isso, como verdadeiros contadores de estórias transmitindo, por elas, toda a riqueza cultural esquecida e silenciada. Outrora tão importantes são, agora, marginalizados e esquecidos “por Deus e pelos homens” (COUTO, 1996, p. 26).  O isolamento e esquecimento dos velhos tem como consequência o esquecimento da tradição e a destruição daqueles que deveriam continuar a ter essa função pedagógica de transmissão dos valores, conhecimentos da tradição, onde, afinal, se encontra uma das dimensões da identidade cultural de um povo. Desvalorizar os velhos na sociedade é transformar a memória em esquecimento.

A morte é também aceitação, algo tomado como uma transformação em algo diferente. Em Venenos de Deus, remédios do diabo (2008), Bartolomeu Sozinho, depois de ter feito sete viagens, embarcado no Infante D. Henrique, até ao fim do império colonial, mastiga lembranças e vê o mar como a sua outra casa:

 

"Volta a contar pelos dedos, demorando-se em cada falange, entretido em cada lembrança. Suspende a contagem, os dedos deformados, espetados na vertical.

-Minhas mãos já estão noutra estação do ano. Veja como estão frias….

O médico toca-lhe os dedos. Fica assim, mão na mão, um tempo. Não é por afecto: o médico aproveita para lhe contar a pulsação. O velho quase adormece. Conforme ele mesmo diz: A velhice é assim, faz noite a qualquer hora" (COUTO, 2008, p. 24).

 

Num outro passo, Bartolomeu revela o que ainda o prende à vida:

 

"- Não é o coração que ainda me prende. A minha âncora é outra.

- Aposto que é o sonho.

- É a lembrança. Minha esposa ainda se lembra de mim. É o esquecimento e não a morte que nos faz ficar fora da vida” (COUTO, 2008, p. 25).

 

O esquecimento é uma morte prematura dos velhos. E o esquecimento da sua memória condena um povo à subserviência e à dominação, porque é negado o encontro consigo próprio, com a sua própria história e com os detentores da memória. A morte é ainda perspectivada como desumanização da vida, como abandono social, descriminação e exclusão. Como afirma Ferreira (2007, p. 299), “a morte social manifesta-se no encarceramento e na institucionalização, na rejeição ou marginalização social, no abandono”.

A obra de Mia Couto elege, de facto, a morte como uma das temáticas centrais. Esta eleição significa que a sua  narrativa ficcional é também uma reflexão sobre a condição humana dos homens e mulheres moçambicanos. A experiência trágica da guerra desvelou a dimensão mais maléfica do ser humano, capaz de atrocidades impensáveis, praticadas contra outros seres humanos inocentes. As vítimas da história calaram-se para sempre, mas a literatura insiste em trazê-las de volta, dando voz ao seu sofrimento e aos seus lamentos.

A recuperação da memória, pelo recurso aos mitos e estórias significa a procura por uma identidade perdida pelas circunstâncias da história e que, face às imposições de uma cultura globalizada, tende a perder-se no tempo. Daí, também, a valorização dos velhos como depositários dessa tradição esquecida e silenciada. Nas tramas do sonho e da morte se tecem esperanças de vida e se entristecem vidas sem esperança.

Notas inconclusivas

Maior do que a angústia da morte é viver e morrer longe do seu lugar, das suas origens e das tradições. Esta é uma das preocupações de Mia Couto na sua narrativa ficcional, a da ligação dos seres humanos aos lugares que permitem a sua fidelidade às tradições culturais, onde se encontram os traços da sua identidade. A escrita, na sua heterogeneidade e plurivocidade de sentidos que há que desocultar, torna-se, em Mia Couto, o veículo de encontro entre a tradição e a modernidade, dando voz às diversas formas de leitura do mundo, silenciadas pelos processos de colonização e neocolonização. É nesse diálogo entre tradição e modernidade que o povo moçambicano encontrará a sua identidade, parte dela negada ou traída. A problemática da identidade, algo que se constrói de um modo dinâmico, só pode ser construída a partir da conciliação entre o passado e o presente.

A diversidade de vozes e olhares sobre a multifacetada realidade é, também, uma estratégia crítica de um escritor que recusa as visões unidimensionais e monoculturais de dizer o mundo e a vida.

O regresso a um universo mítico permite a recuperação de um passado, desvelando e revelando, por meio de estórias, onde protagonista e narrador se confundem, os mistérios que essa ancestralidade encerra. O poder de criação e recriação da língua, a transgressão da norma-padrão colonial, fazem da escrita de Mia Couto um espaço de descoberta, de fascínio e sedução, invulgares na literatura contemporânea.

Finalmente, a escrita a partir das margens permite o resgate de outras epistemologias que têm como suporte a oralidade que, permanentemente, invade a sua narrativa ficcional.

Referências bibliográficas

COUTO, Mia. A varanda do Frangipani. Lisboa: Editorial Caminho, 1996.
_____. Contos do nascer da Terra. Lisboa: Editorial Caminho, 1997.
_____. Cronicando. Lisboa: Editorial Caminho, 1991.
_____. E se Obama fosse africano? E outras interinvenções. Lisboa: Editorial Caminho, 2009.
_____. O outro pé da serra. Lisboa: Editorial Caminho, 2006.
_____. Pensatempos. Lisboa: Editorial Caminho, 2005.
_____. Estórias abensonhadas. Lisboa: Editorial Caminho, 1994
_____. Venenos de Deus, remédios do diabo. Editorial Caminho, 2008.
_____. Vozes anoitecidas. Lisboa: Editorial Caminho, 1987.
_____. Contos do nascer da Terra. Lisboa: Editorial Caminho, 1997.
_____. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Lisboa: Editorial Caminho, 2002.
_____. Terra sonâmbula. Lisboa: Editorial Caminho, 1992.
_____. Auto-retratos: O gato e o novelo. Jornal de Letras (08-10-1997), p.59.

FERREIRA, Ana Maria Teixeira Soares. Traduzindo mundos: os mortos na narrativa de Mia Couto. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2007.

FONSECA, Maria Nazareth Soares; CURY, Maria Zilda Ferreira. Mia Couto: espaços ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.



LEITE, Ana Mafalda. Oralidade e escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Edições Colibri, 1998.

QUIJANO, Anibal. "Colonialidade de poder e classificação social". SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009, p. 73-117.

REIS, Eliana Lourenço de Lima. Pós-colonialismo, identidade e mestiçagem cultural. A literatura de Wole Soyinka. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

RICOEUR, Paul. Du texte à l'action. Essais d'herméneutique II. Paris: Éditions du Seuil, 1986.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.

* Doutor em Filosofia pela Universidade de Sevilha. Professor e pesquisador no Programa de pós-graduação em Educação (PPGE), da Universidade Nove de Julho (UNINOVE), onde integra a linha de pesquisa Educação Popular e Culturas. Mantém ainda relações acadêmicas com a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, na área da Educação, onde foi Professor Associado.

(1) O Sul como metáfora do sofrimento humano, tal como o traduz SANTOS (2009).

(2) A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal (QUIJANO, 2009, p. 73). O conceito de colonialidade, embora engendrado no interior do colonialismo, é mais profundo e mais duradouro. Manifesta-se nas relações sociais como relações de poder, no pensamento e suas representações da realidade e nos comportamentos humanos.

 

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