REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


NS | número 59 | julho-agosto | 2016

 
 



MAURÍCIO SILVA &
MÁRCIA FUSARO
Organizadores

MIA COUTO

Uma literatura entre palavras
e encantamentos


São Paulo, 2011

ÍNDICE

Mia Couto: Tempo-Memória-Rio

ANA MARIA HADDAD BAPTISTA*

 

Introdução

 

Mia Couto é um escritor africano que tem se destacado no Brasil e em outros países do mundo por ter um estilo de escrever, assim como uma sensibilidade que se particularizam na literatura. Notadamente, sua literatura possui um trabalho com a linguagem que se revela a cada romance, a cada conto e a cada ensaio publicados. 

Neste texto buscaremos, especialmente, em quatro obras do autor, as categorias de tempo-memória apresentadas por ele. As obras são: E se Obama fosse Africano? (obra  de  ensaios), Vozes anoitecidas (livro de contos), O fio das missangas (livro de contos) e Antes de nascer o mundo (romance).

Sob nossa perspectiva, as obras de Mia Couto elencadas apresentam dimensões singulares de tempo-memória e a maioria delas, ou seja, o passado, o presente e o futuro são constantemente representados pelos rios.

Dos Rios

 O que é um rio? Um rio é uma espécie de cauda de água que flui. À noite flui com as estrelas refletidas. Um rio pode ser uma fonte de alimento. Um rio, muitas vezes, é fonte suprema de energia elétrica. O rio pode ser, conforme o mundo é mundo, perene... e como tal suas águas jamais param de fluir. Mas o rio pode secar, em determinados locais, por tempo limitado. Nessa medida é denominado de rio intermitente. Isso ocorre quando eles estão localizados em zonas áridas e semi-áridas. Todos os rios correm para os mares. Desembocam via mares... mas mantêm suas águas doces. Os rios primam por suas águas densas e doces. Muitas vezes espessas de lama.

 Os rios carregam seus mistérios. Como meios de transportes levam e trazem. Um grande pensador grego, Heráclito, afirmou que nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio. Com tal imagem veio a famosa ideia do movimento. Do fluir. O conceito de que tudo muda. Mudamos nós. Mudam-se os rios a cada milésimo de segundo.

 Existem rios compridos, muito compridos. Mas existem rios que são volumosos e profundos. Guimarães Rosa, certa vez, afirmou numa entrevista: “O crocodilo vem ao mundo como um magister da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar de sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade” (ROSA, 1994, p. 37). Prossegue o autor brasileiro: "Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens” (ROSA, 1994, p. 37). E, inclusive, diria o grande escritor mineiro: “Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade” (ROSA, 1994, p. 37).

Rio e tempo. Tempo e rio. “Chu-áa! Chu-áa... – ruge o rio como chuva deitada no chão” (ROSA, 1994, p. 240). E também: 

"...o rio – que não tem pressa e não tem margens, porque cresce num dia mas leva mais de um mês para minguar – desengordou devagarinho, deixando poços redondos num brejo de ciscos: troncos, ramos, gravetos, coivara; cardumes de mandis apodrecendo; tabaranas vestidas de ouro, encalhadas, curimatãs pastando barro na invernada; jacarés, de mudança, apressados; canoinhas ao seco, no cerrado; e bois sarapintados, nadando como búfalos, comendo ao murerê-de-flor-roxa flutuante, por entre as ilhas do melosal (ROSA, 1994, p. 281).  

Um rio pode guardar grandes mistérios. Por isso, entre outras coisas,  Guimarães Rosa declara: “O rio, lá adiante, vê-se agora a três dimensões; porque o rolo de névoa, alagartado, vai, volta a volta, pela várzea, como fumaça cansada que só quer descer e adormecer” (ROSA, 1994, p. 281). E mais: “E deu com um rio, verde e guardado, um rio que a gente encontra sempre assim de repente, rio vivo, correndo por entre os matos, como um bicho” (ROSA, 1994, p. 311).

O rio pode ser tempo: “Passam águas. Passa o tempo” (ROSA, 1994, p. 335). O rio possui vários movimentos. Os rios viajam: 

"Porque todos os córregos aqui são misteriosos – somem-se solo adentro, de repente, em fendas de calcário, viajando, ora léguas, nos leitos subterrâneos, e apontando, muito adiante, num arroto ou numa cascata de rasgão. Mas o mais enigmático de todos é este ribeirão, que às vezes sobe de nível, sem chuvas, sem motivo anunciado, para minguar, de pronto, menos de uma hora depois. Há, contínuo, aqui ou acolá, um gluglu, um chupão líquido, água rolando n’água; lá embaixo, nas pedras, a corredeira se apressa ou amaina; mas o som nunca é o mesmo de dois instantes atrás" (ROSA, 1994, p. 337). 

Os córregos são fundamentais e vitais para a formação dos rios. Anunciam, seguramente, o nascimento de novos rios. Córregos são apontamentos fluidos da formação de rios e, inclusive, de seus afluentes. Afluentes que correm para rios maiores, compridos, profundos e, gradativamente, os engordam, rumo a correntes maiores e maiores. Rumando, ruminando, talvez, ao infinito e à eternidade dos rios perenes.

 

Tempo-memória-rio

 

Mia Couto, acima de qualquer coisa, é um grande narrador. Em todas as suas obras, quer conceituais, quer ficcionais (contos e romances) predomina a narração. O autor africano via de regra conta histórias. O diferencial, sob nosso ponto de vista, é que suas histórias não são meros casos! As suas histórias, fundamentalmente, possuem profundidade, tanto quanto os rios evocados pelo autor. Remetem os leitores a desdobramentos subjetivos inescapáveis. Não há como ler Mia Couto sem se voltar para nossas próprias existências. Não há como ler Mia Couto sem pensarmos em nossas vidas! Teimosamente nossa memória acompanha a memória de suas personagens.

Tempo-memória-rio é a dimensão de temporalidade que predomina nas obras analisadas e citadas, anteriormente, de Mia Couto. A maioria das imagens invocadas por seus personagens que se ligam a uma dimensão de tempo-memória faz alusões a rios. Nessa medida, nas palavras do autor africano:

 

"Depois da Independência, um programa de controlo dos caudais dos rios foi instalado em Moçambique. Formulários foram distribuídos pelas estações hidrológicas espalhadas pelo país e um programa de registo foi iniciado para os mais importantes cursos fluviais. A guerra de desestabilização eclodiu e esse projecto, como tantos outros, foi interrompido por mais de uma dúzia de anos. Quando a Paz se reinstalou, em 1992, as autoridades relançaram o projecto acreditando que, em todo o lado, era preciso recomeçar do zero. Contudo, uma surpresa esperava a brigada que visitou uma isolada estação hidrométrica no interior da Zambézia. O velho guarda tinha-se mantido activo e cumprira, com zelo diário, a sua missão durante todos aqueles anos. Esgotados os formulários, ele passou a usar as paredes da estação para grafar, a carvão, os dados hidrológicos que era necessário registar. No interior e exterior, as paredes estavam cobertas de anotações e a velha casa parecia um imenso livro de pedra. Orgulhoso, o guarda recebeu os visitantes à entrada e apontou para a madeira da porta:

- Começa-se a ler por aqui, para ir habituando os olhos ao escuro.

[...] O episódio da estação hidrométrica passou a ser um dos alimentos do meu sentimento de esperança. Como se me lembrasse que devo dialogar com invisíveis rios e tudo em meu redor podem ser paredes onde eu nego a tentação do desalento.

[...] Acredito, porém, que os rios que percorrem o imaginário de meu país cruzam territórios universais e desembocam na alma do mundo. E nas margens de todos esses rios há gente teimosamente inscrevendo na pedra os minúsculos sinais de esperança" (COUTO, 2011, p. 07-08-09). 

 

O texto em questão da obra E se Obama fosse africano? de certa forma anuncia as imagens de rios que o autor insiste em suas histórias. O tempo-memória-rio inunda sua literatura cheia de imagens cujos limites entre o real e o ficcional não possuem demarcações nítidas.

1. Tempo-memória-rio: presente

Para Mia Couto (2011, p. 123), “estamos tão entretidos em sobreviver que nos consumimos no presente imediato”. O autor destaca que o povo africano vive uma espécie de presente verticalizado, enraizado, o que tira a capacidade de sonhar um futuro. “Apenas o presente é credenciado” (COUTO, 2011, p. 123).

Nessa medida, em que apenas o imediato é considerado, há um tempo-memória que busca a fixação. Presente enraizado. Petrificado. Um presente que retira das pessoas o poder de agir. Presente homogêneo. Indivisível. Em síntese: uma concepção de presente contínuo verticalizado.

E esse presente imediato é materializado em outras passagens de sua obra, como no conto “Os pássaros de Deus” (COUTO, 2013, p. 51):

 

"Desculpa: mais peregrino que o rio não conheço. As ondas vão, vão nessa ida sem fim. Há quanto tempo a água tem esse serviço? Sozinho sobre a velha canoa, Ernesto Timba media a sua vida. Aos doze anos começava a escola de tirar peixe da água. Sempre no comboio da corrente, a sua sombra havia mostrado, durante trinta anos, a lei do homem sobre o rio. E tudo era para quê? A seca esgotara a terra, as sementeiras não cumpriam promessa. Quando regressava da pescaria, não tinha defesa para os olhos da mulher e dos filhos que se espetavam nele. Pareciam olhos de cachorro, custava admitir, mas a verdade é que a fome iguala os homens aos animais.

Enquanto pensava suas dores, Timba fez a canoa escorrer devagarinho. Por baixo da mafurreira da margem, ali onde o rio estreitava, parou o barco para enxotar o pensamento triste. Deixou o remo a trincar a água e a canoa agarrou-se à imobilidade. Mas o pensamento insistia:

- Vivi o quê? Água, água, só mais nada".

 

Neste conto o rio é a marcação de uma vida que nunca conheceu a novidade. Uma vida marcada pela apatia e mesmice da miséria que jamais aponta para um futuro melhor. O personagem Timba enlouquece quando cisma em alimentar uma ave, que segundo ele, seria um sinal de Deus de que a vida, de alguma maneira, iria melhorar. O fato é que o pássaro morre. Com ele morrem os sonhos de Timba. A leitura do conto sugere a morte dos sonhos de um povo regido pela miséria:

 

"No dia seguinte, encontraram Ernesto, abraçado à corrente do rio, arrefecido pelo cacimbo da madrugada. Quando o tentaram erguer, verificaram que estava pesado e que era impossível separá-lo da água. Juntaram-se os homens mais fortes mas foi esforço vão. O corpo estava colado à superfície do rio. [...] Plácido, o rio foi ficando longe, a rir-se da ignorância dos homens. E num embalo terno foi levando Ernesto Timba, corrente abaixo, a mostrar-lhe os caminhos que ele apenas tinha aflorado em sonhos" (COUTO, 2013, p. 56).

 

Água, rios e humanidade são inseparáveis. O rio age como um refúgio existencial. Como consolo único para vidas que desconhecem um agir. O rio reforça a imobilidade temporal, visceral das personagens.

No conto “A despedideira”, o cansaço que o tempo traz. O tempo da estagnação e que nada promete às pessoas. A rotina que entedia por sua inelutável repetição. Tudo é cansaço. Tudo é regido por uma espécie de mormaço que reforça o marasmo das personagens:

 

"O único intruso era o tempo, que nossa rotina deixara crescer e pesar. Ele se chegou e me beijou a testa. Como se faz a um filho, um beijo longe da boca. Meu peito era um rio lavado, escoado no estatuário do choro.

Era essa tarde, já decaída em escuro. Ressalvo. Diz-se que a tarde cai. Diz-se que a noite também cai. Mas eu encontro o contrário: a manhã é que cai. Por um cansaço de luz, um suicídio de sombra. Lhe explico. São três o bichos que o tempo tem: manhã, tarde e noite. A noite é que tem asas. Mas  são asas de avestruz. Porque a noite

as usa fechadas, ao serviço de nada. A tarde é a felina criatura. Espreguiçando, mandriosa, inventadora de sombras. A manhã, essa, é um caracol, em adolescente espiral. Sobe pelos muros, desenrodilha-se vagarosa. E tomba, no desamparo do meio-dia.

Deixem-me agora evocar, aos goles de lembrança. Enquanto espero que ele volte, de novo, a este pátio. Recordar tudo, de uma só vez, me dá sofrimento. Por isso, vou lembrando aos poucos. Me debruço na varanda e a altura me tonteia. Quase vou na vertigem. Sabem o que descobri? Que minha alma é feita de água. Não posso me debruçar tanto. Senão me entorno e ainda morro vazia, sem gota" (COUTO, 2009, p. 52-53).

 

No romance Antes de nascer o mundo um pai e seus dois filhos, além de mais três personagens, moram em lugar chamado Jerusalém. Isolam-se na busca de anular o tempo. Praticamente em toda a trama a tentativa é de anular memórias passadas. Novamente a marca fundamental que marca presente, passado e futuro é o rio:

 

"Meu velho, Silvestre Vitalício, nos explicara que o mundo terminara e nós éramos os últimos sobreviventes. Depois do horizonte, figuravam apenas territórios sem vida que ele vagamente designava por “Lado-de-Lá”. Em poucas palavras, o inteiro planeta se resumia assim: despido de gente, sem estradas e sem pegada de bicho. Nessas longínquas paragens, até as almas penadas já se haviam extinto. [...] À nossa volta, apenas o bichos e as plantas morriam. E, nas estiagens, desfalecia de mentira o nosso rio sem nome, um riacho que corria nas traseiras do acampamento". (COUTO, 2009, p. 12-13).

 

O isolamento espacial e geográfico age como um verdadeiro espelho. O isolamento das almas. A busca desesperada de isolar e de se exilar do passado. De toda e qualquer memória. O velho Silvestre procura apagar suas memórias de qualquer maneira. Viver em um presente sem relações. Sem projeções.

 

"Somos criaturas diurnas, mas são as noites que medem o nosso lugar. E as noites só cabem bem na nossa casa de infância. Eu nascera  na morada que agora ocupávamos, mas não era esta a minha casa, não era aqui que o sono me descia com doçura. Tudo nesta residência me causava estranheza. Todavia, o meu sono parece ter reconhecido algo familiar nesta quietude. Talvez por isso, uma certa noite sonhei como se nunca o tivesse feito antes. Porque tombei num abismo profundo e fui por águas e dilúvios. Sonhei que Jerusalém ficava submersa. Primeiro, choveu sobre a areia. Depois sobre as árvores. Depois, choveu sobre a própria chuva. O acampamento se converteu em leito de rio e nem os continentes chegavam para se deitar tanta água.

Meus papéis soltaram-se do esconderijo e ascenderam à superfície para, depois, flutuarem nas revoltas águas do rio". (COUTO, 2009, p. 227-228).

 

Não existem relógios nos universos do escritor africano. Cronologias explodem numa busca cautelosa e, ao mesmo tempo, caudal, caudalosa ao encalço da apreensão de um outro tempo. O tempo existencial do ser. O verdadeiro tempo, na verdade, visto que o tempo em si, conforme se sabe, escapa ao homem.

2. Tempo-memória-rio: passado

           

Segundo  Mia Couto, para o povo africano de um modo geral, o passado cheio de derrotas e opressões dos mais variados níveis tem sido uma dimensão fundamental para as pessoas. Entretanto, faz com que as pessoas apenas o lamentem e congelem possíveis ações que promovam um futuro para os africanos. Neste sentido, de acordo com o escritor africano, o passado age de forma negativa para o povo. Sabe-se que Moçambique foi um país colonizado pelos portugueses e que sofreu muitos transtornos internos. O peso de tais acontecimentos congela e desmotiva os africanos que se colocam numa postura de despojados em sua própria história e identidade.

 

Sabemos, também, que em muitos países, como por exemplo, a Grécia, o passado é cultuado enquanto uma dimensão rica e exemplar, para o presente, porque cheio de lutas e glórias, desta forma, há uma espécie de simultaneidade entre o presente e o passado, mas que age, de maneira saudável.

As fronteiras movediças entre a vida e a morte é uma outra proposta de Mia Couto na maioria de sua literatura e com a imagem do rio:

 

"É uma verdade: os mortos não devem aparecer, saltar a fronteira do mundo deles. Só vêm desorganizar a nossa tristeza. Já sabemos com certeza: o tal desapareceu. Consolamos as viúvas, as lágrimas já deitámos, completas.

Ao contrário, há desses mortos que morreram e teimam em aparecer. Foi o que aconteceu naquela aldeia que as águas arrancaram da terra. Nem ficou a cicatriz do lugar. Salvaram-se os muitos. Desapareceram Luís Fernando e Aníbal Mucavel. Morreram por dentro da água, pescados pelo rio furioso. A morte deles era uma certeza quando uma tarde apareceram mais outra vez". (COUTO, 2013, p. 117).

 

Na verdade os dois personagens reapareceram. Uma outra dimensão de tempo proposta por Mia Couto, na concepção de passado, seria o tempo enquanto cíclico ou circular. Entende-se por um tempo-memória circular fatos e acontecimentos que retornam, como, de certa forma, entendiam os gregos antigos em sua cosmologia. As coisas vão e voltam. Para Mia Couto a dimensão de um tempo circular e que se repete ainda está bastante presente na cultura africana. Nas palavras de Mia Couto (2011, p. 124): “A ideia de que a felicidade se alcança não por domínio mas por harmonias; a ideia de um tempo circular; o sentimento de gerir o mundo em diálogo com os mortos”. Em  síntese: passado divisível, lacunar, com descontinuidades preenchidas por uma dimensão de circularidade do tempo-memória.

No conto “Inundação”, o rio, literalmente, encarna o tempo:

 

"Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança" (COUTO, 2009, p. 25).

 

O tempo é um fluir de lembranças passadas, como no seguinte trecho:

 

"Todas as roupas flutuando na corrente serão sempre de Marcelo. A própria substância dos rios todos do mundo será feita de lembranças contrariando o tempo. Mas os rios da portuguesa eram cada vez mais os de África: mais de areia do que de água, mais de telúricas fúrias do que dos suaves e educados caudais". (COUTO, 2009, p. 224).

 

O mesmo acontece em outras passagens: "Reencontramos os nossos amores num próximo luar. Mesmo sem lagoa, mesmo sem noite, mesmo sem Lua. Dentro da luz, eternos eles regressam, roupa flutuando na corrente de um rio (COUTO, 2009, p. 250).

O passado das personagens de Mia Couto adquirem uma materialidade densa e pesada: “E foram momentos espessos de um rio escoando” (COUTO, 2009, p. 274). No entanto o passado “dura” por usar um conceito de Bergson (2006, p. 47) .A duração para Bergson é todo o passado acumulado que recai, sem piedade, sobre o próprio passado. Força. Um passado que se conserva por si mesmo. Não há como subtrair o passado da existência humana. Por isso Mia Couto (2009, p. 277) afirma que “eternos eles regressam, roupa flutuando na corrente de um rio”:

 

"Fiquei olhando o meu irmão desvanecendo-se no escuro, enquanto me ressurgiam memórias do tempo em que apagávamos caminhos para proteger o nosso solitário reduto. E me veio à lembrança a penumbra onde decifrei as primeiras letras. E recordei o estrelinhar das luzes por sobre o rio. E o riscar dos dias no negro muro do tempo". (COUTO, 2009, p. 277).

 

O tempo-memória jamais ressurge como alegria. Ressurge do fundo de uma existência que conhece apenas as angústias de um ser. Mas o passado teimosamente retorna.

Lembremos, mais uma vez,  Bergson (2006, p. 50): “Quanto mais refletirmos menos entenderemos como a lembrança poderia alguma vez surgir que não fosse criando-se conjuntamente com a própria percepção”. Para Bergson o presente se desdobra a cada instante. Há uma espécie de jorro. Um jato para o passado e um outro que se lança para o porvir (BERGSON, 2006).

3. Tempo-memória-rio: futuro

De acordo com Mia Couto (2011, p. 123), “para uma grande maioria, o porvir tornou-se um luxo. Fazer planos a longo prazo é uma ousadia a que a grande maioria foi perdendo o direito”. Prossegue o autor: “Fomos exilados não de um lugar. Fomos exilados da actualidade. E por inerência, fomos expulsos do futuro” (COUTO, 2011, p. 123).

A dimensão do tempo presente subtrai o futuro. Na maioria das vezes, enquanto um eterno mergulho na interioridade humana, como no seguinte trecho do conto "Peixe para Eulália":

 

"A seca durava há anos. Sem pingo, sem lágrima, sem gota. Estranhava-se a tanta agrura daquela estiagem. [...] Sinhorito diz que a chuva estaria do outro lado do céu.

- Senhores, eu vou ser pescador! Digo, quem sabe...

E adiantou: não houvesse mais aflição de peixe e não-peixe. As panelas iriam, muito próximo, rever esse bicho escamoso, já preparado em postas, mesmo antes de sair das águas.

- Das águas? Quais elas?

Mais risos. Pescasse ele em seu próprio suor. Pois não havia nem rio nem lagoa que restasse. Sinhorito apontou os céus, acima da cabeça.

- Vou lá, vou subir às águas de lá.

Entrou no barco e ajeitou-o em posição vertical, proa virada ao firmamento. Face ao espanto geral, Sinhorito começou a remar. Os remos cruzavam o ar, vincados no vazio. As bocas abertas, em multidão de exclamações, se inexplicavam: o barco subia em invisível afluente de nuvem. Os remos, mais e mais, semelhavam asas. E o barco transparecia em ave. Então, alguém gritou:

- Venham ver: Vejam, Sinhorito que sobe!

Mas já ele se extinguia, gradualmente nulo. Depois, se apagou, ponto no infinito.

[...]

Mas quando ainda se debruçava, o céu se abriu em relampejos. E choveu, chuva gorda, farta, despenteada trança de água no colo do universo. E peixes, aos cardumes, resvalaram dos céus (COUTO, 2009, p. 141-142-143).

 

Neste trecho Mia Couto revela um tempo-memória-rio-voador (1). Fantasticamente, o rio flui nos céus. Uma temporalidade que segue para os céus, ou seja, que sugere a infinitude do tempo. Infinitude e incerteza. O personagem Sinhorito some em meio aos rios voadores.

Sugere o autor que pode haver um futuro. Que há a possibilidade de sonhar com um futuro. E como tal sempre será incerto, no entanto, ele existe.

O povo africano, de um modo geral, não consegue vislumbrar um futuro, entre outras coisas, como observa o escritor, porque está entretido com a sobrevivência do presente. Desta forma, como sonhar um futuro? Como fazer planos? Tal acontecimento seria um verdadeiro luxo. O autor ressalta, especialmente, que o futuro se apresenta para as sociedades africanas como um processo fluido e líquido. Não há materialização efetiva. Nessa medida, o tempo presente escraviza e esvazia  o conceito de uma temporalidade futura. Sintetizando: futuro esvaziado, fluido e inexistente.

Entretanto, ao mesmo tempo que o rio carrega memórias é a única promessa de um futuro não determinado:

 

"No rio me demorava em espraiados sonhos. Aguardava por meu irmão que, ao fim da tarde, se vinha banhar. Ntunzi despia-se e ficava assim, desprotegido, olhando a água exactamente com a mesma nostalgia com que o via contemplar a mala de viagem que ele fazia e desfazia todos os dias. Uma vez, me perguntou:

- Já esteve debaixo de água, miúdo?

Neguei com a cabeça, ciente de que não entendia a fundura da pergunta dele.

- Debaixo de água - disse Ntunzi - enxergam-se coisas impossíveis de imaginar.

Não decifrei as palavras de meu irmão. Mas, aos poucos, senti: a coisa mais viva e verdadeira que acontecia em Jerusalém era aquele rio sem nome. Afinal, a interdição de lágrima e oração tinha sentido. Meu pai não estava tão alienado como pensávamos. Se houvesse que rezar ou chorar seria apenas ali, na margem do rio, joelho dobrado sobre a areia molhada (COUTO, 2009, p. 25).

 

O que poderia haver após a travessia de um rio?

 

"Ntunzi afundou os pés na lama e entrou no rio. Caminhou até a água lhe dar no peito e instigou-me a que me juntasse a ele. Senti a corrente revolteando em redor do corpo. Ntunzi meu deu a mão, com receio de que eu fosse puxado pelas águas.

- Vamos fugir, mano? - perguntei, com contido entusiasmo.

Custou-me que nunca me tivesse ocorrido: o rio era uma estrada bem aberta, um sulco rasgado sem interdição. Estava ali a saída e nós não fôramos capazes de a ver. Mais e mais acrescido de vontade fui construindo planos em voz alta: quem sabe regressávamos à margem e começássemos a escavar uma canoa? Sim, uma canoazinha seria o suficiente para nos afastarmos daquela prisão e desaguarmos no alto do mundo (COUTO, 2009, p. 27).

 

Do outro lado do rio existe uma promessa. "O rio me fazia ver o outro lado do mundo" (COUTO, 2009, p. 42). O tempo-memória-rio-futuro é, via de regra, apenas uma promessa. Um fio, muito fino, de alguma projeção.

 

Considerações finais

Predominam, como muitos estudiosos já afirmaram, na era contemporânea,    dimensões de tempo-memória que escorrem, escoam em estado líquido, que esvaziam o presente, visto que a velocidade das transformações (entre outros fatores) nunca conheceu precedentes na história da humanidade. O passado busca se sobrepor ao presente. As temporalidades individuais soam como processos divergentes, praticamente sem rumo. Tentáculos, desordenadamente, enroscados. Mesclam-se, de maneira completamente confusa, às temporalidades sociais e a outras memórias justapostas, mas desintegradoras. As memórias que regem a era atual se dão de forma solitária. Como pequenas ilhas perdidas e jogadas aos acasos dos mares. A Física nunca buscou com tanta avidez os mecanismos que regem o tempo. Teorias e mais teorias nunca brigaram tanto em busca de conceitos mais universais que possam estruturar a realidade. Porque o tempo em si mesmo escapa ao homem. Lembremos, uma vez mais, os relógios e demais marcadores existentes não dão materialidade ao tempo. Apenas medem o tempo. Mas... onde se encontra o tempo? Onde estão as memórias? Como pegar o tempo? Como isolá-lo? Mas sabe-se: o tempo passa. Paolo Rossi sempre nos alerta: há na contemporaneidade a coexistência de diversos tempos. O tempo cíclico que se manifesta: o dia e a noite. As estrelas, nessa medida, tornam-se visíveis ou não, assim como o luar. As estações do ano. As camadas geológicas mais profundas da Terra. Os rios que ora podem ser transitórios, ora podem retornar com mais profundidade.

As memórias estão, mais do que nunca, por todas as partes. Nessa medida, há memórias individuais. Há memórias coletivas. Há memórias virtuais. Memórias impressas. Nunca houve tanto armazenamento de memórias.

A literatura, assim como ocorre em outras áreas, de alguma forma, concebe uma perspectiva de tempo-memória. Mia Couto, escritor africano, bastante conhecido nos dias atuais, especificamente em sua obra E se Obama fosse africano?, livro de ensaios profundamente poéticos, propõe, dentre outras coisas que poderiam ser apontadas, dimensões de tempo-memória particulares, ligadas ao povo africano, que, muitas vezes, mostram-se bastante singulares.

As categorias propostas por Mia Couto são: um presente que se fixa, verticaliza-se, porque o povo africano, de um modo geral, mostra-se sem perspectivas e sem vontade  de agir, de maneira efetiva. As pessoas possuem uma atitude de imersão no presente. Presente contínuo e verticalizado. Um presente marcado pelo marasmo.

O escritor concebe o passado como uma verdadeira sombra para a sociedade africana, porque ele age de forma quase destrutiva e a todo momento presentifica-se através, inclusive, da comunicação com os mortos e outros rituais. Passado  divisível, descontínuo que possibilita um tempo-memória, inclusive,  regido pela circularidade.

O futuro, para o povo africano, de acordo com Mia Couto, não existe.  O povo não consegue se desprender do presente e do passado. Nessa perspectiva, não consegue imaginar um futuro. Logo, a categoria de futuro deve ser concebida como um processo inexistente, fluido e regido pela imaterialidade.

Mia Couto registra personagens regidos pelo movimento dos rios. Contudo, ao mesmo tempo, seus personagens vivem em cápsulas de temporalidades.  Aprisionados dentro de um tempo. Há uma tentativa, digamos, de se neutralizar o tempo. Intemporalidades solitárias. Não há espaço para intersubjetividades. Seres que trituram suas próprias temporalidades e memórias.

Em diversos momentos, em muitas obras refletindo a respeito de tempo-memória, Deleuze menciona que somos “tempos pobres”. Quais são seus graus de comparação? As imagens das aves. Em geral possuem, segundo ele, círculos e espirais alcançando, desta maneira, um presente “desmesurado”. Ou seja, temporalidades  inalcançáveis pelos humanos, visto que as aves, por exemplo, conseguem ampliar seus próprios presentes em termos de qualidade. Possuem seus próprios intervalos.

A temporalidade humana é pobre em representações. A literatura de Mia Couto é uma possibilidade intensa de enriquecermos nossas próprias temporalidades. Mia Couto materializa, quando expõe, de certa maneira, a temporalidade africana, que existem outras formas de se representar o tempo e a memória. Contudo, os africanos são, via de regra, exilados, em diversos graus, do planeta.

Pensando na esteira de Deleuze: somos seres, na verdade, regidos e determinados por  temporalidade e memória. O que é um ser? Um intervalo de tempo. Um intervalo de tempo que compartilha um presente total, talvez, um tempo total. Com Mia Couto, como pudemos ver, o tempo total materializa-se por meio de temporalidades e memórias isoladas. Exiladas. 

 

Referências bibliográficas

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AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo, Paulus, 1984.

ALEGRIA, J. et alii. L´espace et le temps aujourd´hui. Paris, Éditions du Seuil, 1983.

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* Doutora e mestra em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Pós-doutora em História das Ciências (PUC-SP). Professora e pesquisadora dos Programas de pós-graduação em Educação (PPGE e PROGEPE) e de graduação da UNINOVE. Líder de pesquisa do grupo Tempo-memória: Educação, Literatura e Linguagens (UNINOVE/CNPq). Membro do quadro de pesquisadores do CICTSUL (Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade) da Universidade de Lisboa.

(1) Consideremos que a terminologia rio-voador existe no contexto científico, devidamente argumentado.

 

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