REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


NS | número 59 | julho-agosto | 2016

 
 


Luís Costa
escreve poesia e mais algumas coisas. Nasceu numa Sexta - Feira Santa.
 Já teve o prazer de participar em várias revistas digitais e também (com 4 poemas) no primeiro número da Revista Objeto Surrealista DEBOUT SUR L'OEUF. mas até agora continua inédito em livro. Para além disso pouco há a dizer. Ah!Diz que a biografia do poeta é a sua poesia, pois, a seu ver, fora do poema o poeta não existe. Ama a poesia, mas também a odeia. Sim, poetar é para ele uma questão de ódio e amor. Uma violência amorosa. Talvez mesmo o ( des ) contínuo assassinato do eu para que o poeta se faça. 
LUÍS COSTA

The cruel dog ou da desglória (XI poemas)

Com que então, coração,

poesia-aflição!

Antes poesia-cão

que é melhor posição.

 

               Alexandre O’ Neill

 

voltando o focinho a cada esperança

ainda sem dentes para as piores surpresas

mas avançando a passo firme

ao encontro dos alimentos

aqui estás tal qual

és bem tu o cão jovem que ninguém esperava

 

                                     António José Forte

 

(Imagem: Cristo carregando a cruz, Bosch ou um imitador)

 

Cão rafeiro que me olhas nesta tarde

de inverno, no dia mais curto do ano, e vês

como bebo a minha bica e como uma nata

 

cão sentado à esquina obscura

na liberta claridade dos que não se interessam da pecúnia

ainda que precisem dela e gostem de a esbanjar por esbanjar

pois todo o cão, seja rafeiro ou elitista, precisa de comer

 

(e também cagar e foder)

 

comer, porém, não é tudo, é preciso também

uma certa aristocracia de cão rafeiro para que os joelhos

não tremam nem se dobrem perante as poderosas estátuas

que nos olham sempre de cima para baixo

na sua perspetiva inflexível

 

cão rafeiro que me olhas, enquanto bebo a bica,

gosto dos teus olhos melancólicos,

mas rebeldes, mas espertos, mas maliciosos

e do modo como levantas a perna

e mijas altivamente aos pés das estátuas dos heróis

 

há de facto entre nós uma irmandade fiável

 

que se fodam as estátuas e os títulos

e as coroas e os honores e os heróis

pois com gravata ou sem ela

todos os homens se mijam e cagam

e, mais cedo ou mais tarde, enfim, hão de bater a bota

 

cão rafeiro que me olhas nesta tarde

de solstício de inverno,

quem sabe, talvez dos cães rafeiros seja o reino dos céus.

Aquele cadáver que plantaste o ano passado

no teu jardim já começou a despontar?

dará flor este ano?

                                             T.S. Elliot

Morreu no outono, um outono translúcido

como o da poesia de Trakl.

 

conforme o seu último desejo foi enterrado ao

canto mais belo

- onde crescem a rosas de Shakespeare -

do seu tão amado jardim,

                  o English Garden

onde costumava ler e escrever,

ler e escrever

até que os olhos lhe adoecessem de alegria.

 

enterraram-no com uma mão de fora

para que quando chegasse a primavera desse flor

e as andorinhas lhe cagassem em cima.

Os deuses, de facto, ainda vivem,

mas lá nas alturas, num outro mundo.

                                            Hölderlin

 

 

Esta exsudação que se aclima nas tuas entranhas

Dura como a pedra negra no vaso frágil

Que tua avó transportava ao colo em dias de festa

Esta exsudação que te acalma o fígado e os rins

Como um chuto de heroína,

De facto, uma monstruosidade de bestas noturnas

Que nada de sublime te pode oferecer

A não ser uma fronte ferida pela coroa do nada;

Esta ferida que te corrói…

Mas que seria de ti sem essa ferida, sem essa indigência

Que te leva ao abismo?

O meu coração tem frio. estremeço.

Da caverna do desespero, evoco-te.

Como uma hemorragia monstruosa.

Como se, lúcido, enlouquecesse.

 

Afagas-me como uma blasfémia.

Amo a tua crueldade jubilosa.

Não te considero agonizante

És formosa, formosa como uma rosa.

 

Em ti todos os gestos conservam

A etérea justeza do garrote.

As nossas carnes, hoje: sãs, sensuais e belas

(Que fazem estremecer os espelhos),

Hão-de um dia ser minadas p'la putrescência.

 

E o seu cheiro roxo, nauseabundo há-de

Cativar (estes são os desígnios da beleza)

Miríades de varejeiras e vermes.

 

Digo: também a putrescência da carne,

Com as suas varejeiras e vermes, é digna do poema.

 

A face relampeja a velha cicatriz

Ilumina-se é uma tentação lá dentro

Os murmúrios das gárgulas o dilúvio da noite

 

Ó mineral das têmporas!

 

Relinchos

Um martelo sobe pelas noras dos ventrículos

Explode na garganta

Outrora ali existiu um mar

A sede é um cântaro

 

As pupilas dilatam-se

São elmos de amor e raiva, delírios!

Os dentes rangem

As entranhas descarnam-se

A boca bebe a água do Averno

Deus quebra-se de encontro ao espelho

Dos charcos

Estremece perante a sua própria

Inexistência

 

                     De repente

 

A película do filme rompe-se

O ator já não aguenta

Seu coração é um piston negro

Pelos quintais

 

O rosto queda-se de encontro à máscara

A lâmina relincha

O sangue negro beija o chão.

Debruço as mãos na lucidez do Crime

E quando as retiro são húmidas

De tão lúcidas

 

(Laranjas completas

Negras

Atravessadas

Pela luz da podridão)

 

E tudo é concreto

Sob a lucidez do Crime

 

No bisturi

A morte

A morte

A morte vivamente

Borbulhante

 

(Ó flash da ascensão,

ruína!)

Sentiu a braquialgia de Deus dentro da alma

E por um momento ergueu os olhos e nada viu.

Sabia agora que já nada havia a chorar.

 

Era a hora do sarcasmo teologal:

Os caminhos

Não tinham começo nem fim.

 

Só restava relinchar, relinchar, relinchar,

E esperar...

 

E roncantes as feras rodeavam-na

                                  e esperavam também.

Hoje subirei ao trono da minha cave

Matarei o pássaro eterno

As bonecas da minha infância

Degola-las- ei

Contemplarei as coisas

Com a suavidade de um dogma

Talvez diga:

Cogito ergo sum

Depois cortarei os pulsos

E o sangue escorrerá negro

Mas belo

Sobre a cocaína.

Naquele dia resolveu tirar a máscara

Desejava sentir as cavilhas da luz nas entranhas

Ver as coisas tal como elas são

 

Mas assim que a tirou nada viu

Pois por trás da máscara era a noite

                A noite terrível o vazio

(A noite da máscara na máscara)

 

Naquele dia descobriu que: para lá

Da máscara nada pode existir.

 

Só. estou só. somente só.

O terror abrasa as veias

O zunido interior do sangue

Inquina os ventrículos.

Só. encontro me só. sem

Compromissos com os homens

ou com a vida.

As mãos atadas à benevolência

Da teoria do suicídio.

As mãos, uma arte de paixão.

Por onde o crime pode dar flor.

E os barcos da derrota singram.

Gloriosos, singram.

Olho-os. respiro para dentro.

Dou gargalhadas. Peido-me.

Cultivo a altivez do escarro.

 

*

 

A meus pés uma velha ratazana.

Morta. já nada me resta.

 

Estou só. um vaso sem flores. só.

Ao centro, as insígnias do cadafalso.

 

Vocifero. Venho-me.

 
 

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