|
|
Foto: Valter Vinagre |
Júlio Conrado (Olhão, 26.11.1936,
Portugal). Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica
literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro),
centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez
crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de
Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista
Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de
Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de
Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação
Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos
Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios
literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão,
inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010),
Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido
no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha
casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia:
Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009). |
|
JÚLIO CONRADO
Revistas com literatura dentro, em
revista
|
|
|
Vai prolongado o luto pelas velhas
páginas literárias dos anos sessenta/setenta, nos jornais, segue
um guião próprio a crítica e a divulgação manipuladas pelos
poderosos cartéis da edição, tornam-se omnipresentes os esforços
bloguistas para se substituirem ao primado do “papel” como
suportes de comunicação e de difusão da actividade literária.
Todavia, o “papel” resiste. Quando menos se espera, o “papel” dá
sinal de si. Umberto Eco profetizava, três ou quatro anos antes
de falecer, que o livro em papel estava para durar e que os
cibernautas incondicionais teriam de aguardar pelo colapso do
formato tradicional durante muito tempo. Não estou em condições
de formular um juízo a favor ou contra esta teoria; confio, sim,
em que as duas modalidades possam convizinhar colocando ao
serviço das causas culturais o que de melhor as caracteriza: a
utilidade de uma ferramenta universal quando criteriosamente
usada; uma certa forma de afecto leitor / livro através de uma
intimidade que se cultiva página a página e de cuja penetração
no imaginário receptor se colhe o conforto de um valor
acrescentado.
|
|
|
DELPHICA, Letras & Artes
|
Mas não é esta “guerra” o que me traz
hoje ao ciberespaço e sim a sensação agradável de poder
comentar, sem qualquer prurido judicativo, a importância de que
se reveste o facto de umas quantas revistas em “papel”
alimentarem a ideia de que a literatura (neste caso de
literatura se trata) é capaz de achar espaços para se impor fora
dos limites de um certo establishment bem identificado no
panorama cultural português. Começo por me referir à
delphica, letras & artes que vai no seu nº 3 e tem o nº 1
com data de 2013, o que leva a crer que a sua periodicidade será
anual. Traz a chancela da Crescente Branco, Associação
Cultural e Recreativa sedeada em Braga. Sem ainda ter
consultado a revista mas atendendo à localização da mesma, disse
para comigo: anda aqui a mãozinha do Vergílio Alberto Vieira. E
não me enganei. VAV é presença constante posto que,
conjuntamente com José Manuel Vasconcelos, Rui Vieira e Jorge
Fernandes integra o trio de editores. Vergílio mostra a sua
faceta de dramaturgo assinando a peça Por nada deste mundo,
publicada na íntegra.
O leitor decerto terá percebido que
comecei pelo número mais recente da revista. É visível a
acomodação de figuras de nomeada a par de outras menos
celebradas mas de reconhecido gabarito intelectual. Todavia,
algumas dessas personalidades são-me caras e congratulo-me por
vê-las abraçar tão cativante projecto: Fernando J. B. Martinho,
Manuel Frias Martins, Manuel G. Simões, Emerenciano, Maria
Leonor Nunes (que conheci nos meus tempos de colaborador do JL)
e outros como Alberto Lacerda (merecedor de que a sua obra seja
mais bem estudada), António Vieira, Albano Martins, Amadeu Lopes
Sabino, Helder Macedo, Rui Zink, Fernando Lapa e Rui Madeira. A
revista contém várias traduções e inclui um Caderno
dedicado a Trieste no qual participam João Barrento,
Manuel G. Simões, José Manuel Vasconcelos, Gianluca Miraglia,
Ilse Polack e Serecko Kosovel.
Recuando até ao nº 2, encontro uma
Memória do meu querido amigo João Rui de Sousa, notável
poeta, o José Manuel Vasconcelos agora poeta (fora das funções
de editor e tradutor) e gente conhecida de outros ramos das
artes como Ricardo Pais (encenador) e José Luís Tinoco (músico
instrumentalista), e um Caderno sobre surrealismo
confiado a António Cândido Franco, de quem terei oportunidade de
falar mais adiante. Percebe-se que de um número para o outro a
revista deu um salto significativo, ainda mais notório quando
consultamos o nº 1. Realce para a arrumação criteriosa das
secções: Ensaio, Poesia, Música, Teatro, etc., mas sempre
cabendo à literatura a parte do leão.
Neste último (que é o primeiro) o
homenageado principal é Raúl Brandão, mas mais alguns nomes
estimáveis se me atravessaram no caminho: Ernesto Rodrigues,
Pires Laranjeira e Mário Cláudio. Em suma: por aqui se via
nitidamente o que estava para surgir. E o nº 3 tem já a
supervisioná-lo um emérito Conselho Científico composto por 11
académicos. Isto é a delphica na era da Internet. Uma
raridade de saudar pela capitosa concepção gráfica, pelo
ecletismo e pelo esforço que representa enquanto presença
dinâmica num contexto adverso através da qual um certo modo de
tratar a cultura e especialmente a literatura faz vigorosa prova
de vida.
|
|
A IDEIA
|
A revista A Ideia é uma
verdadeira singularidade nos dias de hoje. Em três linhas, na
capa, revela a sua atitude programática: “revista de cultura
libertária”. Em boa verdade trata-se de um conceito aberto a
vários tipos de frequentadores e sensibilidades as mais
diversas. A periodicidade é anual. É seu fundador e proprietário
João Freire que em boa hora confiou a António Cândido Franco a
direcção e a edição. No número duplo 73/74 está bem patente o
metier do renomado medievalista que é, simultaneamente, um
conhecedor profundo da “onda” surrealista em Portugal, à qual o
referido número é consagrado. A revista não tem preço de tabela.
Há, porém, encargos fixos. É preciso pagar, por exemplo, à
tipografia. Para os que a desejam foi criado um atalho que a
torna acessível a todas as bolsas: “preço voluntário”. E esse
preço voluntário é cumprido sob a forma de donativo. Todavia,
dada a excepcionalidade de um número duplo tão rico de conteúdos
e de tão dispendiosa produção foi estimado, para cobrir
exclusivamente estas despesas, o donativo de 20 euros.
Fixemo-nos, porém, neste sólido livro (sempre são 258 páginas em
formato A4) e atentemos nalgumas das novidades do seu denso
recheio.
Recorra-se, a abrir, à DECLARAÇÃO da
página 3, que desenvolve o lamiré da capa: “O surrealismo em
tempos do Café Gelo ou o Gelo em tempos de surrealismo, eis o
tema deste novo número da revista A Ideia. Pretendemos
com ele dar um contributo de fundo ao conhecimento dum nicho
desconhecido, mas de rara pertinência, da cultura portuguesa da
segunda metade do século XX, a furiosa geração que se reuniu no
Café Gelo entre 1956 e 1962. Reputamos esta geração a mais
irreverente do seu tempo português.” E adiante: “A quem se
interrogue por que motivo uma revista com o passado da nossa,
que nasceu há quarenta anos como órgão específico de propaganda,
se interessa por aspectos da vida portuguesa e internacional tão
marcados pela criação poética e artística, lembramos que a
revista não rompeu com o seu passado, mesmo o mais antigo, mas
elegeu um contexto próprio para nele se situar, o anarquismo
cultural. A geração que passou pelo Café Gelo é, entre as que se
afirmaram na segunda metade do século XX, a que melhor expressou
um entendimento libertário da cultura.” O conjunto de
colaborações é pluralista, numa vastíssima afirmação de
solidariedade com o tema proposto, recaindo o enfoque sobre a
figura de alguém de quem pouco se sabe mas a quem o mito do
Gelo muito deve: Manuel de Castro. À volta deste poeta quede
nós se despediu na flor da vida (1934-1970), tendo deixado
publicados apenas dois livros, predominam as trocas de
correspondência com os contemporâneos, porventura o eco que
melhor clarifica a personalidade do homenageado. A variável
epistolar, com efeito, traça com acerto o perfil psicológico de
MC pelos seus coevos e abre perspectivas aos estudiosos do
movimento.É bastante eloquente o binómio quantidade/qualidade de
nomes e documentos que ACF logrou reunir: de Maria Estela Guedes
a Fernando Grade, de Vasco (desenhador) a Nicolau Saião, de
Herberto Helder a António Barahona, de Mário Cesariny a Luiz
Pacheco, de Vergílio Martinho a Helder Macedo, de António José
Forte a Manuel Villaverde Cabral, de Pedro Oom a Ricardo
Ventura, de Miguel Filipe Mochica a Jorge Telles de Menezes, de
Alfredo Margarido a Agostinho da Silva, de D’Assumpção a José
Carlos Gonzalez, toda uma elite surrealista (virtual ou real)
“marcou” encontro em A Ideia para recordar o
malogrado poeta, evincar a inestimável achega que a recolha
representa na caracterização do grupo que deu “nome” a um
singelo café do Rossio lisboeta.
O tema Café Gelo
coexiste,naturalmente, com outros motivos ligados ao
surrealismo. O volume impresso está compartimentado em quatro
blocos, o primeiro dos quais agrega a memória do Gelo e o
tributo a Manuel de Castro; no segundo bloco, Cronologia,
o destaque vai para a literatura internacional, cabendo ao duo
de escritores brasileiros Cláudio Willer e Floriano Martins
incursões críticas sobre o estado actual do surrealismo no seu
país, bem como para Pietro Ferrara, natural de Itália mas a
viver nos Estados Unidos, fundador do CIRA (Centre International
de Recherches sur l’Anarchisme). O bloco seguinte, o III,
Documenta, irrompe pela criação pura com poemas de Antonio
Saez Delgado (Paisage), Paulo Borges (Mãe, Irmã e Amante Nossa),
Amadeu Baptista (Viagem Nocturna), (José Rui Teixeira (poema),
Nuno Mangas Viegas (Semente-Boca), Valter Nogueira (Três
Poemas), José Emílio-Nelson (Aflição e Cinza), Paulo Jorge Brito
e Abreu (Soneto, na Verve, à guisa de Bocage) e Alexandre Vargas
(Boa Noite Senhor Fernando Pessoa). Deste bloco consta ainda uma
troca de cartas entre Fiama e António Telmo, com
comentários de António Carlos Carvalho e do mesmo António Telmo
um fragmento de livro, inédito. No que respeita a entrevistas
Carlos Loures aceitou responder a algumas perguntas (a sua
relação com o surrealismo conheceu altos e baixos, até se
concretizar em ruptura) e Isabel Meyrelles que vive em Paris
desde 1950 e se considera “como a única mulher portuguesa que
enquanto artista se define puramente como surrealista” expõe as
razões que, a seus olhos, justificam esse estatuto.
O IV bloco, Leituras & Notas
tem a abrir um texto de Luís Amaro: “Lembranças avulsas de
Gonçalves Correia e seu Filho Ferrer”, além de outro lote de
ensaios, agora de tipo mais experimental mas sempre rodando em
torno da temática axial. Num artigo desta índole, que pretende
apenas gerar informação acerca de um número da revista A
Ideia para guardar e consultar quando for preciso, pela
sua extensão, são omitidos muitos nomes e obras tão relevantes
como os mencionados. De aí a vantagem na aquisição deste número
duplo que, sem dúvida, combina em dosagem perfeita o acto formal
da escrita com o ideário da publicação, abertamente anunciado.
|
|
UM BOM VENTO DE ESPANHA
|
Um vento (benigno) proveniente de
Badajoz com passagem por Évora, trouxe-nos a Suroeste,
uma revista que se distingue pelo esmero gráfico e excelência de
colaborações. É dirigida por António Saez Delgado e proclama-se
como “uma revista anual com vocação de diálogo entre as
diferentes literaturas ibéricas. Publica textos inéditos de
autores que escrevem nas diversas línguas peninsulares assim
como um escaparate de livros em que os críticos da publicação
recomendam algumas das suas leituras favoritas do ano anterior.
A Península Ibérica é um mosaico de culturas, uma babel de
línguas de extraordinária cultura.” A Universidade de Évora
surge como âncora fundamental do projecto do lado de cá da
fronteira, cuja dinâmica muito deve ao entusiasmo dos
professores escritores António Cândido Franco e do director da
revista, ambos docentes na Instituição.
Até agora foram publicados cinco
números, tendo o 5º sido lançado na Casa dos Bicos,
Fundação José Saramago, em 2015..
O projecto é generoso. O sedutor
grafismo lembra o requinte dos catálogos que servem de suporte
às exposições de artes plásticas do Museu de Badajoz, o MEIAC.
Os colaboradores são, por conseguinte, de procedência diversa.
Salta à vista a preocupação da Suroeste em procurar para
as suas páginas nomes de referência e juntá-los numa convivial
troca de experiências literárias, resultado de uma saudável
ausência de preconceitos e hábil gestão de modos tão distintos
de participarem na consolidação do projecto.
Suroeste: um bom
vento que veio de Espanha.
|
|
RELÂMPAGO
|
A existência da revista Relâmpago
resulta da vontade do malogrado poeta Luís Miguel Nava
(1957-1995) que estabeleceu como legado testamentário a criação
de uma revista e de um prémio, ambos de poesia e administrados
por uma fundação com o seu nome. O poeta Gastão Cruz tem sido o
executor da parte correspondente à publicação da Revista,
dirigindo a Relâmpago, de que acaba de ser publicado o
número duplo 36/37 consagrado a Herberto Helder (homem e obra).
Gastão pôde reunir uma mão cheia de contemporâneos de HH cujas
posições se revelam de extrema utilidade para os futuros
biógrafos do autor de Os Passos em Volta. Em depoimentos
redigidos especialmente para este número da revista abundam as
pistas, sugestões, factos e memórias cuja pertinência
indiscutível muito ajudará quem se disponha a investigar a
portentosa obra do homenageado. Eduardo Lourenço, Armando Silva
Carvalho, Fernando J.B.Martinho. N.Júdice, António Barahona,
António Fournier e um devaneio brasileiro de Maria Lúcia Dal
Farra, dão consistência a este desígnio.
Também aqui, tal como aconteceu na
evocação de Manuel de Castro, a epistolografia me parece
indispensável para se chegar mais fundo na compreensão da
enigmática genialidade herbertiana. Bem andou Gastão Cruz ao
publicar as vinte e cinco cartas (inéditas) que lhe foram
enviadas por Herberto entre os anos 70 e Janeiro de 2015.
Completam a revista uma auto-entrevista, poemas inéditos de
outros poetas, recensões críticas e informações várias.
|
|
A PÁGINA DA EDUCAÇÃO
|
Neste olhar desprendido por revistas
com literatura “dentro” A Página da Educação, do Porto,
merece especial atenção. Sendo uma publicação especializada na
abordagem de temas relacionados com o Ensino, há sempre lugar
para uma ou outra referência ao que se vai publicando em ficção,
poesia e ensaio, paralelamente aos criteriosos textos sobre as
matérias específicas para que foi criada.
O nº 206 desta revista bianual, que
já foi jornal, hoje sob a direcção de Isabel Baptista, apresenta
um conjunto de conteúdos em que as Artes não são negligenciadas.
Ombreando com os assuntos de maior actualidade da esfera
educacional, a literatura, por exemplo, dispõe nela de um
precioso canteiro.. Livros de autores portugueses – Teolinda
Gersão, Fernando Dacosta e Lídia Jorge – são recenseados. Uma
crónica de Salvato Teles de Menezes – mestre do género –
intitulada Jesuítas, plena de humor e sabedoria, adoça
este número integrada na série Textos Bissextos (criada
por Luís Souta).
Igualmente o Cinema e, como sempre, a
Fotografia, são objecto de grande realce.
Uma saudação especial para o escritor
/ colaborador Leonel Cosme extensiva ao seu excelemte trabalho
Emanações da Selva (de recorrência angolana), selva “onde
é sabido que o elefante, quando se afasta da manada, ainda com
energia suficiente para se considerar “orgulhosamente só” é para
terminar os dias da sua vida.”
Enfim, concedo não ter pesquisado em
profundidade a existência “resistente” de mais revistas em papel
nas quais a literatura, designadamente a portuguesa, seja
regularmente acompanhada. Certamente as haverá.
Delas, seguramente, me chegarão
notícias.
Estou sempre disposto a deixar-me
surpreender.
Primavera de 2016
|
|
|